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PRÁTICAS CULTURAIS E O PÓS-COLONIAL EM A VARANDA DO FRANGIPANI, DE MIA COUTO – Artinésio Widnesse Saguate




 

ARTINÉSIO WIDNESSE SAGUATE

Universidade de São Paulo

 
 
Resumo: Este artigo analisa a temática do romance A varanda do frangipani, de Mia Couto, sob o ponto de vista teórico dos debates em torno do pós-colonial no campo cultural. À luz desse quadro teórico, foi possível observar três aspectos essenciais na temática do romance de Mia Couto: a desconstrução da visão colonialista residual na sociedade moçambicana, o resgate das identidades culturais amplamente abaladas pela pesada herança colonial, a crítica contra as práticas da nova elite política pós-colonial.
 
Palavras-chave: A varanda do frangipani; Mia Couto; temática; cultura; pós-colonial.
 
Abstract: This article examines the theme of the novel A varanda do frangipani, by Mia Couto, departing from the theoretical discussions around the “postcolonial” in the cultural field. In the light of this framework, we can observe three essential aspects in the theme of this novel by Mia Couto: the deconstruction of a residual colonialist vision in Mozambican society, the rescue of cultural identities which have been widely shaken by the heavy colonial heritage, and the criticism against the practices of the new post-colonial elite policy.
 
Keywords: A varanda de frangipani; Mia Couto; theme; culture; postcolonial.
 
Minicurrículo: É doutorando no Programa de Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (2013-2017). Possui Mestrado em Estudos Linguísticos, Área de Análise Linguística, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – São José do Rio Preto (SP) (2012), Tem Licenciatura em Ensino do Português pela Universidade Pedagógica – Delegação de Nampula/Moçambique (2008), Bacharelato em Ensino do Português pela Universidade Pedagógica – Delegação de Quelimane/Moçambique (2007). Exerceu atividades de docência na Universidade Pedagógica – Delegação de Nampula, entre 2008 e 2009 e em 2012. Tem experiência nas áreas de Linguística/ Sociolinguística e Análise do Discurso, atuando principalmente em temas como ensino do português como língua segunda; variação linguística; política linguística; escrita; letramento; discurso.
 
 
PRÁTICAS CULTURAIS E O PÓS-COLONIAL
EM A VARANDA DO FRANGIPANI, DE MIA COUTO
 
ARTINÉSIO WIDNESSE SAGUATE
Universidade de São Paulo
 
Introdução
Neste artigo, examino a temática do romance A varanda do frangipani (1996), de Mia Couto. A ideia é demonstrar que essa temática se enquadra dentro de tensões ideológicas que surgem quando da necessidade de, ao mesmo tempo, desconstruir a visão eurocêntrica sobre África e construir/reconstruir as identidades do continente no campo cultural, negativamente afetadas por essa visão.
Para tanto, oriento-me de um quadro teórico ligado a discussões sobre o pós-colonial no chamado “Sul global” (África, Ásia, América Latina), tendo como autores de referência Ella Shohat (1992) e esta e Robert Stam (2013), que defendem práticas discursivas capazes de desencadear aspectos positivamente profundos sobre as identidades dos povos do Sul global, em oposição aos moldes da visão eurocêntrica, caracteristicamente negativos e estereotipados sobre esses povos. Em termos metodológicos, discutirei, portanto, a perspectiva epistemologicamente ideológica do pós-colonial, seguida de uma análise temática do romance.
 

  1. Perspectiva ideológica do pós-colonial em África

O termo pós-colonial é ambíguo, conforme reconhece Shohat (1992). Desse modo, para este artigo, deve sê-lo entendido como o antagonismo entre duas visões que se encontram em constantes embates na representação e explicação dos aspectos cosmopolíticas: eurocêntrica e antieurocêntrica.  Por visão “eurocêntrica”, se entendem as manifestações discursivas que, por si só, representam de forma positiva o “mundo ocidental” em detrimento ao “mundo não ocidental”, particularmente, a África, incluindo Moçambique. Em oposição, por visão “antieurocêntrica”, se denotam as manifestações discursivas que se posicionam no sentido de desconstruir a visão eurocêntrica sobre o continente. Portanto, a expressão “dimensão pós-colonial” sugerida no título deste artigo diz respeito à inserção da abordagem presente no romance A varanda do frangipani, de Mia Couto, nesse embate ideológico entre o eurocêntrico e o antieurocêntrico, particularmente no campo cultural, por entender que há um entrecruzamento irresistível entre cultura e imperialismo/colonialismo/pós-colonialismo (cf. SAID, 2011).
Em uma entrevista, Shohat (2013, p. 706) defende que o pós-colonial deve ser visto “como um discurso potencialmente policêntrico e aberto, a ser definido por múltiplos lugares e perspectivas”. É neste âmbito que, talvez, ideologicamente, uma análise sobre o pós-colonial deve ter como ponto de partida o período histórico das expedições europeias nos anos 1490. Conforme observa Stam (2013), com as expedições europeias a partir de 1492, começa a conquista da África (incluindo as Américas e parte de Ásia). O discurso ideológico desse período se materializava em atos de “descobertas”, de expulsão dos mouros, em inquisições (Stam, 2013). Entretanto, o pós-colonial “só adquire, enquanto noção, substância conceptual a partir dos anos 1980” (MATA, 2014, p. 27).
Embora não seja um período efetivamente de ocupação colonial em África, o primeiro contato que se estabelece entre os ocidentais e os africanos, particularmente entre os portugueses e os moçambicanos, representa um marco bastante importante para os períodos subsequentes. No período anterior às “descobertas”, a relação que reinava entre os moçambicanos e outros povos (árabes, chineses) era estritamente de trocas comerciais: o chamado mercantilismo. Assim, os portugueses, também se fazendo passar por mercadores, entraram em contato, pela primeira vez, com os moçambicanos.
No entanto, a relação entre os portugueses e os moçambicanos, que parecia pacífica, começou a tomar outros contornos quando aqueles (os portugueses) se empenharam, primeiro, pela monopolização das trocas comerciais (entrando em guerra e expulsando os tradicionais parceiros comerciais dos moçambicanos: árabes e chineses) e, segundo, pela subalternização das relações de poder (através da escravização dos moçambicanos). É a partir dessa relação que se constrõem noções como, por exemplo, “gente superior” versus “gente inferior”, “gente civilizada” versus “gente selvagem”, “culturas superiores” versus “culturas inferiores” etc.
Atualmente, os discursos “pós-coloniais” opostos à visão eurocêntrica são consensuais no sentido de que as noções tradicionalmente usadas para identificar o tipo de sociedades africanas são “ideológicas” (HOUNTONDJI, 2008). Expressões como sociedades “primitivas”, sociedades “arcaicas”, sociedades “tradicionais”, povos “indígenas” etc., são, em si, pouco claras e, portanto, tendenciosas. Portanto, esses discursos antieurocêntricas se esforçam no sentido de explicar exatamente o que essas sociedades são em termos de identidade.
Adicionalmente, essas sociedades têm sido caracterizadas pela visão eurocêntrica como “iletradas”. Em contrapartida, a visão antieurocêntrica tem sinalizado para a necessidade de se prestar atenção aos modos e dispositivos concretos através dos quais o conhecimento é transmitido nessas sociedades sem recurso à escrita tal como ela é usada no Ocidente. Portanto, constitui erro caracterizar negativamente essas sociedades por algo que não possuem: a literacia (HOUNTONDJI, 2008). Por essa razão, autores antieurocêntricos como o linguista francês Maurice Houis (1971) sugerem que essas sociedades devem ser chamadas sociedades de civilizações da oralidade.
Com a expulsão dos árabes e chineses, o mercantismo toma outro rumo, passando a configurar-se num comércio transcontinental de escravos. Nesse período, os discursos sobre os africanos (e, também, sobre os judeus, muçulmanos e indígenas) foram demonizados (STAM, 2013). Aqui, os temas marcadamente dominantes giram em torno do antissemitismo, islamofobia, racismo; sob a justificativa da edificação da civilização cultural, religiosa e do purismo racial.
Esses temas têm seu ponto mais alto nos anos de 1882, através dos acordos de partilha e ocupação efetiva de África, cujos efeitos se resumem no colonialismo propriamente dito. Conforme observa Meneses (2013, p. 45), “a missão colonial de civilizar tornou-se, a partir de meados do século XIX, a peça central da doutrina colonial europeia em relação aos territórios ultramarinos africanos, com as fronteiras da civilização a serem agora estabelecidas a partir dos referenciais europeus de ser e de estar”.
O colonialismo não se traduziu apenas numa ocupação de territórios geográficos, mas, também, num apagamento total ou parcial do tecido social, cultural e cognitivo dos povos colonizados. É nesse âmbito que, após a II Guerra Mundial, começam a emergir, na maioria dos países africanos, organizações nacionalistas, para lutar contra as condições sociais, políticas e, particularmente, culturais em que estavam submetidos. Portanto, conforme destaca Meneses (2013), a luta nacionalista, libertadora, era acima de tudo um ato cultural e um ato de cultura.
De acordo com Cabral (1973, apud MENESES, 2013, p. 46), o estudo da história das lutas de libertação nacional mostra que geralmente essas lutas são precedidas por um aumento da expressão da cultura, consolidada progressivamente através de tentativas com sucessos e insucessos, na afirmação da personalidade cultural dos povos oprimidos, como forma de negociar com a cultura do opressor.
A cultura, nas diversas formas de sua manifestação, ocupa um lugar privilegiado nos discursos do pós-colonial, isto porque, quaisquer que possam ser as condições dos povos, dos fatores políticos e sociais implicados na relação de dominação, é, geralmente, na cultura que se encontram as sementes da oposição, o que conduz à estruturação do desenvolvimento dos movimentos de libertação (cf. MENESES, 2013). Assim, socorrendo-se da herança cultural dos povos que haviam sofrido a violência colonial, esses movimentos apelavam à liberdade da cultura a partir da amplificação da imaginação, da improvisação e da palavra oral, ao mesmo tempo em que questionavam as razões da manutenção da escravatura e do genocídio trazidos pela relação colonial.
É neste cunho que Césaire escreveu o seu manifesto contra o colonialismo (CÉSAIRE, 1978, apud MENESES, 2013, p. 47):
 
Falam-me de progresso, de ‘realizações’, de doenças curadas, de níveis de vida elevados acima de si próprios.
Eu, eu falo de sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas. (…) Falo de milhões de milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à sabedoria. Falo de milhões de homens a quem inculcaram sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo. (…)
Falam-me de civilização, eu falo de proletarização e de mistificação (Césaire, 1978 [1955]: 19-21).
 
Portanto, aqui vemos uma tentativa de construção do conceito de liberdade criativa e a profunda admiração pelos modos de pensar e práticas das sociedades pré-coloniais africanas. Do mesmo modo, o que vemos em Mia Couto é a luta pela possibilidade de combinar saberes e experiências. Portanto, essa luta não se restringe no uso do conhecimento para o desenvolvimento e emancipação dos povos colonizados; visavam também trazer o direito das diferentes formas de conhecimento, a uma existência sem marginalização ou subalternidade por parte da ciência oficial, defendida e apoiada pelo estado colonial.
De acordo com Meneses (2013), esse debate consolidou nos movimentos a importância do ‘retorno às fontes’, para a (re)conquista do poder de narrar a própria história e, portanto, de construir a sua imagem, a sua identidade. Esse processo passou necessariamente por um diálogo crítico sobre as raízes das representações, questionando as geografias e semânticas associadas a conceitos que insistem em manter os países africanos como espaços de atraso. No outro patamar, obrigou a uma reflexão e diálogos sobre a articulação entre os problemas e características locais, africanos, e os projetos nacionalistas globais, nem sempre articulados da melhor forma.
 

  1. A varanda do frangipani a dimensão pós-colonial”

A temática em A varanda do frangipani, quando analisada sob o ponto de vista da abordagem teórica dos autores citados neste trabalho, ajuda a entender o entrelaçamento de alguns aspectos conflitantes no discurso das personagens. É de acreditar que a pesada herança colonial tem e continua a ter consequências nefastas em variadas esferas da vida dos moçambicanos, algumas das quais sem soluções previsíveis a curto, médio ou longo prazo.
No caso desse romance de Mia Couto, os conflitos no discurso das personagens parecem denunciar a prevalência de algumas práticas ideológicas do colonialismo, negativamente contrárias ao próprio do espírito nacionalista inscrito na vontade libertadora do povo moçambicano. Portanto, a temática desse romance parece surgir de uma representação sintomática desses aspectos em conflito, nomeadamente: o novo poder político e o descontentamento social; a tensão entre o poder institucional e a tradição; a “desvinculação” do poder político vigente aos propósitos nacionalistas; a questão da “nativização” do homem; a “ruptura” estética para com a prática literária colonial.
Desse modo, A varanda do frangipani seria um romance de cunho pós-colonial, que, entretanto, se insereria num momento de justaposição entre o colonial e o pós-colonial. Aliás, as diversas tensões inscritas no romance servem de suporte a esse posicionamento, conforme mostram os exemplos a seguir:
 
(1)  Me faltou cerimônias e tradição quando me enterraram (p. 9).
 
Essa é uma fala da personagem Ermelindo Mucanga, que, longe de sua terra natal, morre e é enterrado sem o cumprimento das “tradições” fúnebres da sua etnia. Em consequência, virou uma alma xipoco, isto é, sem paradeiro, sem um sossego que um defunto merece.
Esse trecho mostra a importância das “tradições” nas culturas africanas e suas consequências quando não elas não forem respeitadas. Por outro lado, o trecho pode constituir uma crítica à ideologia colonial e/ou pós-colonial. Sob o ponto de vista do pós-colonial, o trecho em (1) pode ser analisado fazendo o paralelismo como a tensão instalada no período imediato à proclamação da Independência em Moçambique (em 1975). Nesse período, alguns discursos adotados pelo governo moçambicano giravam em torno do combate ao tribalismo. Contudo, esses discursos foram entendidos, de certa forma, como uma tentativa de “homogeneização” cultural do povo moçambicano – uma continuidade da ideologia colonial –, uma vez que a diversidade das tribos no País significava, ao mesmo tempo, a diversidade cultural.
Porém, o governo parecia estar mais preocupado com questões políticas do que, necessariamente, culturais, pois, no entendimento, era necessário manter e fortalecer a “unidade nacional” dos moçambicanos, considerada a “arma” fundamental para a vitória contra o colonialismo. Essa unidade passava, primordialmente, pelo aniquilamente do tribalismo, que representava perigo de divisões e de conflitos entre os moçambicanos.
Portanto, é possível que o romance de Mia Couto constitua uma crítica a esse entendimento do governo, pois, em parte, o “aniquilamento” das tribos significava, de forma implícita, o aniquilamento das práticas culturais a elas associadas. De fato, o que se depreende nessa passagem pode ser uma tentativa de questionamento sobre esse apagamento das tribos e das tradições mais antigas.
A crítica à ideologia colonial portuguesa relativa à cultura africana, particularmente à moçambicana pode ser também observada no trecho em (2):
 

  • Não escreva, deixe esse caderno no chão.

Neste asilo, o senhor se aumente de muita orelha. É que nós aqui vivemos muito oralmente (p. 26).
 
Esse trecho foi produzido pela personagem Navaia Caetano em diálogo com a personagem Inspetor. Durante o diálogo, a personagem Inspector, que usa a escrita para documentar a conversa. Porém, a personagem Navaia desuade no sentido de o Inspetor não usar a escrita, pois, naquele meio, a vida era feita, sobretudo, da oralidade.
Portanto, os trechos em (2) mostram um dos símbolos de identidade cultural moçambicana – a oralidade. Conforme se pode depreender desses trechos, mais do que um simples apelo para a necessidade do uso da comunicação oral, temos a exaltação dessa prática social. Desse modo, a expressão, “é que nós aqui vivemos muito oralmente” (grifo nosso) não significa a ausência do traço escrito na tradição cultural moçambicana, como erradamente os colonos cunharam as línguas africanas como sendo línguas sem escrita; e sim, a predominância da oralidade com relação à escrita.
De fato, na relação entre a oralidade e a escrita, enquanto práticas sociais em Moçambique, a primeira tende a ser mais predominante do que a segunda dentro de eventos comunicacionais. Ademais, nesses trechos, o romance corrobora cientificamente com a ideia de que a relação que se estabelece entre oralidade e a escrita não é uma relação de oposição, nem tampouco de inferioridade e de superioridade. Por conseguinte, não existe uma relação de inferioridade e de superioridade para com as culturas predominantemente associadas a cada uma dessas práticas. Assim, apesar da predominância da oralidade na cultura moçambicana, não significa, de modo algum, inferioridade da cultura moçambicana, relativamente à cultura ocidental que, ao que parece, é relativamente dominada pela tradição escrita.
Vemos, então, que Mia Couto apresenta esta relação de oralidade e escrita no sentido de representar a primeira como igualmente importante quando comparada com a segunda. Além disso, vemos também aqui um esforço no sentido de desconstruir qualquer concepção que considere as culturas tradicionalmente associadas à oralidade como inferiores às culturas tradicionalmente associadas à escrita, apelando-se, desse modo, o respeito para com a diversidade cultural.
A questão do respeito para com os preceitos culturais é também retomada no trecho em (3):
 

  • A gente da aldeia suspeitava de castigo, uma desobediência às leis dos antigos (p. 27).

 
No romance, esse trecho é produzido pela personagem Navaia Caetano, que conta história sobre sua mãe, que dava à luz sempre o mesmo ser. Como tentativa de explicar esse fenômeno, foi evocada a desobediência às leis dos antigos.
Portanto, nesse trecho, pode-se observar um modo particular de organização social e estrutural das comunidades tradicionais moçambicanas. Portanto, o trecho oferece uma pista importante sobre a constituição das relações de poder tradicional nessas comunidades. Como se pode depreender, com base nessa passagem, as relações de poder são regidas pelos antigos, isto é, pelas pessoas mais velhas, pois simbolizam a sabedoria, por conta da experiência ao longo dos tempos. E, uma eventual desobediência aos apelos ou às normas regidas por essa camada social/etária desencadeia castigos, com consequências individuais ou mesmo coletivas.
Esse fato faz com que a questão da memória ocupe um lugar muito importante nas heranças culturais de geração para geração em Moçambique, sobretudo por via oral. Também faz com que se pense na importância das línguas nativas (em relação ao português) na manutenção das comunidades e de suas tradições, já que, geralmente, essas comunidades se comunicam, sobremaneira, através dessas línguas de forma oral, e que essas línguas continuam a desempenhar um serviço importante que o português não pode oferecer, apesar de essa língua ser oficial.
 

  • Pois, senhor inspector, eu sou essa árvore. Venho de uma tábua de outro mundo mas o meu chão é este, minhas raízes renasceram aqui. (grifo nosso). (p. 46).

 
Com relação a esse trecho, vale observar que um aspecto que se verificou no período imediato ao fim do colonialismo em Moçambique foi a tensão social com relação aos portugueses ou seus descendentes que tinham optado em permanecer em território moçambicano, enquanto grande parte optava em regressar a Portugal. Houve, no entanto, alguma percepção errada no seio de alguns moçambicanos que associava todo o indivíduo português ou seus descendentes aos colonialistas. Entretanto, esse problema só foi resolvido através de atos de consciencialização. Assim, o inimigo não era nem a raça, nem a origem dos indivíduos, e sim as práticas neocoloniais de indivíduos, quer brancos, quer negros; quer portugueses, quer moçambicanos etc.
Assim, nesta passagem do romance, encontramos, ao que acreditamos, um reforço a essa consciencialização.            Além disso, observa-se aqui então um esforço de “nativização” da identidade; e/ou de afirmação/reafirmação da identidade moçambicana.
 

  • O que está a passar aqui é um golpe de estado (…). Um golpe contra o antigamente. Há que guardar este passado. Senão o país fica sem chão (p. 98).

 
Na passagem acima, parece registrar-se certo questionamento quanto aos encaminhamentos sociopolíticos e culturais em que o País vinha conhecendo no período pós-colonial, que se contrastam ou contrastavam com o espírito libertário que se esperava que fosse “efetivo”. Paradoxalmente, parece haver certo “saudosismo” para com o passado colonial. Na verdade, trata-se de um passado que, apesar de situado no período colonial, é alheio ao próprio colonialismo e suas práticas. Portanto, trata-se, em nosso entender, de um passado que não se inscreve na pesada memória colonial, mas aquele passado inscrito nas típicas práticas tradicionais dos moçambicanos; aquele passado que foi capaz de sobreviver à opressão e à imposição coloniais, mas que, paradoxalmente, era destruído ou era colocado em situação de ameaça (no período pós-colonial). Por outros termos, temos aqui um questionamento aos propósitos do próprio espírito libertário que aparece como um dilema para a própria sobrevivência da identidade nacional.
 
Conclusão
Neste artigoo, tentamos mostrar como a(s) temática(s) apresentada(s) por Mia Couto constitui um verdadeiro embate ideológico no campo cultural. Tomando por base a visão os debates sobre o pós-colonial, foi possível analisar o ideológico do romance, que desencadeia aspectos profundos como, por exemplo, o respeito pelas “tradições” culturais e a (re)construção das identidades igualmente vculturais.
Desse modo, no romance analisado, três aspectos podem ser tomados como pilares de toda uma temática nela presente, quando analisada sob o ponto de vista dos debates pós-coloniais: a desconstrução da visão colonialista residual na sociedade moçambicana, o resgate das identidades culturais amplamente abaladas pela pesada herança colonial, a crítica contra as práticas da nova elite política pós-colonial.
 
 
Referências
COUTO, M. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia de Letras, 2007.
MATA, I. Estudos pós-coloniais: desconstruindo genealogias eurocêntricas, Revista Civitas, v. 14, no 1, Porto Alegre, 2014: p. 27-42.
MENESES, M. P. O olho do Furacão? A África Austral no contexto da Guerra Fria (década de 70). In: Meneses, M.P. e Sena, M. (orgs.). As guerras de libertação e os sonhos coloniais: alianças secretas, mapas imaginados. Coimbra: Almedina, 2013. p. 41-58.
HOUNTONDJI, P. J. Conhecimento de África, conhecimento de Africanos: duas perspectivas sobre os Estudos Africanos, Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 2008. p. 149-160.
SAID, E. W. Cultura e imperialismo. Trad. de Denise Bottmann, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SHOHAT, E. Notes on the “Post-colonial”, Social Text, 31/32, Durham: Duke University Press, 1992: p. 99-113.
SHOHAT, E. In: SANTOS, Emmanuele, e SCHOR, Patricia (Orgs.). Brasil, estudos pós-coloniais e contracorrentes análogas: entrevista com Ella Shohat e Robert Stam. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 21(2): 336, 2013, pp. 701-726.
STAM, R. In: SANTOS, Emmanuele, e SCHOR, Patricia (Orgs.). Brasil, estudos pós-coloniais e contracorrentes análogas: entrevista com Ella Shohat e Robert Stam. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, no 2, maio-agosto 2013: p. 701-726.
 




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