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UMA INFINIDADE DE SÓIS, texto de William Soares dos Santos




RESENHA

LIVRO: Três sóis.

AUTOR: William Soares dos Santos.

Dados: São Paulo, Patuá, 2019. 142 p. Ilustrado.

ISBN: 978-85-8297-554-1

Resenha publicada na Revista da Academia de Letras do Brasil, n. 9, jan./jun. 2023: p. 154-156. Brasília, D.F., Editora Opção/Cajuína.

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                                          UMA INFINIDADE DE SÓIS

Luiza Lobo

da ALB

Professor e tradutor de italiano da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor de Linguística Aplicada na sua pós-graduação, especialista em Shakespeare, com Dissertação de Mestrado sobre o autor, exímio desenhista, mestre em artes marciais, autor dos livros de poesia Rarefeito (Ibis Libris, 2015), Poemas da meia-noite (e do meio-dia), (Moinhos, 2017), Raro – poemas de Eros (Urutau, 2018), e autor do livro de contos Um Amor (Ibis Libris, 2016), além de diversos livros de ensaios, é difícil acompanhar a ampla atividade de William Soares dos Santos, que parece girar num eixo de 360 graus, incansavelmente. A tal ponto que percebeu que há três sóis no céu, o que ninguém ainda sabia, um segredo que agora nos revela no seu belíssimo livro lindamente ilustrado com figuras da arte clássica, renascentista e pré-rafaelita. O autor conseguiu unir aí, com apoio da cuidadosa edição da Patuá, artes gráficas e da escrita. Seus poemas vão além do tema sentimental e individualista, com um certo descuido da forma, que tem grassado em nossas Letras ultimamente – se é que ainda podemos falar de “Letras” num mundo tão desconexo e multifário como o em que vivemos, no qual agora descobrimos que não há só um, mas três sóis.

O tema de William lembra-me o da magistral trilogia de romances de Haruki Murakami, 1Q84, autor que merecia ter recebido o prêmio Nobel em lugar de outro japonês, Kenzaburo Oe, este sediado na Grã-Bretanha e seguindo a linha mais conservadora possível da literatura ocidental, além de tratar de temas pacifistas. Em 1Q84, num jogo simbólico com o famoso 1984, de George Orwell, o longo romance de 1.300 páginas se inicia com a capacidade de alguns habitantes de Tóquio de verem duas luas, em lugar da singela e prosaica Lua habitual, já tão despida de mistério e explorada ultimamente.

Sinal dos tempos pós-modernos, nos quais a literatura se torna essa arte de encontrar o insólito, o inusitado, o original num cotidiano tornado globalizado e previsível em quase todo o mundo. William busca essa linha de pesquisa sobre o nosso modo de (re)ver as coisas, não de forma desorganizada e mal-acabada, como tantos textos da atualidade, sem técnica, mas partir de um princípio desconstrutor da realidade. No início do livro, ela é vista à luz da metafísica, com a epígrafe de Henrique VI e o quadro O Parélio, ambos sobre o fenômeno da ilusão dos três sóis. Mas essa leitura renascentista já não corresponde mais o que as pessoas – pelo menos os poetas – esperam, na Terra.

Como afirma o crítico e poeta Adriano Espínola, nas orelhas do livro, essa multiplicação dos sóis representa, para o autor, um espaço “cósmico” e “epifânico”. Pouco importa que esse fenômeno ocorra real e raramente no hemisfério nórdico. Prefiro ver nessa temática uma retomada simbólica da revolução copérnica, desconstruindo as certezas e verdades de um mundo até agora organizado, com suas afirmações  insofismáveis, e que vêm sendo desconstruídas desde Nietzsche. A proposta do autor, desde o Livro 1, Três Sóis, é romper com um mundo racional, num mergulho nas novas incertezas da atualidade, não despidas do temor do desconhecido: “Os três sóis / dançavam no etéreo / da galáxia / atraindo o planeta mais cheio de vida a / girar ao redor de / seu contrapasso. // O parélio que / fez-se claro / no horizonte / leva-nos à vertigem / do ocaso (Santos, 2019, p. 20). O parélio é o fenômeno em que cristais de gelo criam a ilusão da multiplicação dos sóis – explica o autor, em nota (p. 137).

O protagonista do livro é o Sol, em todos os momentos do dia e da noite, até o sol da meia-noite, em Reykjavík (p. 31), anunciando a aurora boreal (p. 32), e prenunciando a “Cobrança”, quando “A Terra cobra o seu preço / no clangor do verão.” (p. 35), e finalmente os Eclipses (Livro 2) Essas imagens, que terminam numa atmosfera apocalíptica, inserem o eu narrativo num universo muito mais profundo e gótico que o do simples eu poético – como ocorre nos poemas e nos desenhos de William Blake para o Paraíso perdido de Dante, bem conhecidos de William, sem sombra de dúvida.

É este “Over-soul” (p. 44) e a sempre ameaça de um apagar do sol, após seu multiplicar-se, que dão a dimensão telúrica a esse livro, inserindo o ser humano aí como um fantoche frágil e manipulável, ao bel-prazer das forças universais. Na epígrafe de Henrique VI, o rei Eduardo IV afirma: “Meus olhos me enganam, ou vejo três sóis?” e Ricardo II explica: “Três gloriosos sóis, /cada um perfeito, / Mas separados em um claro e límpido céu.”. Já na visão poética de William esse fenômeno atmosférico parece, antes, prenunciar um céu sombrio e apocalíptico de fim de mundo.

Nessa trajetória, as imagens e texto das três últimas partes do livro, num total de cinco, minimizam a figura humana, com toda a sua prepotência destrutiva em relação ao planeta, focando num histórico da cultura da arte através dos tempos: desde a pintura do parélio, em Estocolmo, de 1636, que sobreviveu apenas numa cópia de Elbfas, até esculturas da arte clássica grega, representando Apolo e Prometeu, que foi punido, justamente por querer dominar o fogo, ou quadros pré-rafaelitas.

O que me pareceu instigante nesse original livro de William Soares dos Santos foi a sua capacidade de mostrar nossas míseras vidas como “amantes de Kairós” (p. 128), “sem pudor”, // enquanto se comprimem / em desejo de saudades / transtornadas de passado”, numa total inconsciência da passagem do tempo, de Cronos. Na nossa insaciedade de cobiça e poder, ignoramos a passagem da água pela clepsidra da Terra.




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