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RECOLLECTIONS OF MY LIFE AS A WOMAN COMO SER MULHER E BEAT LIVRO DE MEMÓRIAS DA POETA BEAT DIANE DI PRIMA – Isaura Maria Rigitano de Limas




 

Isaura Maria Rigitano de Limas

Tradutora

“O autor não cria simplesmente um texto; em vez disso um texto – ou mais precisamente uma forma particular de ler o texto – cria um autor” (Rita Felski).
 
 
Resumo: A escritora e poeta beat Diane Di Prima possui uma extensa lista de publicações, mas no Brasil ela é praticamente desconhecida, pois só um livro de sua autoria foi publicado. Este artigo tem como objetivo divulgar Diane Di Prima ao leitor brasileiro por meio de seu livro de memórias e iniciar um diálogo entre a sua produção criativa e as diversas fases da sua vida, refletindo sobre como a poeta reagia criativamente ao que acontecia no seu contexto social e em sua vida pessoal. Para esse propósito, lancei mão de outras obras escritas por ela no mesmo período em que relata suas memórias, buscando referenciais, inquietações e eventos relacionados.
 
Palavras chave: escritoras, Geração Beat, Di Prima, feminismo, poemas.
 
Abstract: The beat poet and writer Diane Di Prima has an extensive file of publications, but she is unkown in Brazil due to the fact that only one of her books had been published. This paper aims to bring Diane Di Prima to light for the Brazilian reader through her memoir book, and to initiate a dialogue between her creative production and different stages of her life, speculating how creatively the poet reacted to what happened in her social context and in her personal life. For that purpose, excerpts from her memoir and other poems published on several works were interspersed, on a search for references, concerns and related events.
 
Key words: Writers, Beat Generation, memoirs, feminism, poems.
 
Currículo: Isaura Maria Rigitano de Limas é bacharel e licenciada em Dança pela PUC-PR. Professora da ESL e tradutora.
 
 
RECOLLECTIONS OF MY LIFE AS A WOMAN
COMO SER MULHER E BEAT
LIVRO DE MEMÓRIAS DA POETA BEAT
DIANE DI PRIMA
 
Isaura Maria Rigitano de Limas
 
Introdução
O pós-guerra consolidou os Estados Unidos como líder global nos anos 1950. Internamente, foi um período próspero, marcado pela busca por conforto e bens materiais. A mídia reforçava o “estilo americano de vida” para distinguir a sua opção capitalista em oposição ao bloco socialista. Mas nem todos os americanos concordavam com o American way of life.
Inseridos na contracultura, os escritores da geração beat se opunham a esse modelo de vida. Entre eles, Di Prima incorporaria a esse movimento a sua experiência familiar que ia contra os valores sociais de então. Ela conviveu desde criança com os princípios do anarquismo.
Pierre J. Proudhon, um dos precursores do anarquismo, comenta sobre esses ideais:
 
“Ser governado é ser observado, inspecionado, espiado, dirigido, regimentado, numerado, regulado, registrado, doutrinado, controlado, revisado, estimado, avaliado, censurado, ordenado por homens que não têm direito, sabedoria nem virtude para fazê-lo” (Proudhon,1969, p. 294).
 
 
Viver em plena liberdade física, social e econômica. Mas como fazê-lo sendo mulher e vivendo sua juventude no pós-guerra dos anos 1950? Diane Di Prima parece ter conseguido. Ela vivia sob essa premissa. Desde muito jovem conviveu com o seu avô, o imigrante italiano Domenico Mallozzi, um ativo militante anarquista.
Di Prima nutria por ele grande admiração e respeito. Eles ouviam ópera juntos, dividiam xícaras de café expresso. Ele lia Dante Alighieri para ela. O avô disse que a levaria à Itália, mas morreu antes do fim da guerra. Di Prima recorda um de seus primeiros contatos com os ideais anarquistas:
 
“Eu estou no parque com o meu avô, e é noite. Eu quase nunca saio de casa à noite, e eu adoro. Amo a cidade à noite, as luzes e os sons. Cheira a mistério. No parque, Bronx River Park, as estrelas aparecem claramente. Elas são bem brilhantes, elas queimam. Há algum tipo de reunião. Um ‘comício’ é a palavra. Meu avô me levou com ele. E eu sei de alguma forma que é sem a permissão de meus pais. Eles não estão lá para contestar, eu fui visitar meus avós sem eles. Tem um comício no parque – não tenho certeza que tipo de comício. Era de fato uma ocasião particular – talvez um protesto contra a guerra iminente? (Isto deve ter sido no final dos anos 1930). Era rotina? Uma reunião anarquista? Eu não conhecia essa palavra então, é claro, somente que havia muitas pessoas, a maioria delas homens, e a maioria delas não era jovem. (…) Em um certo momento meu avô começa a falar. Todo mundo fica parado para escutar. Isso se passa por um certo tempo, as pessoas falam e outras ouvem, mas essa hora eu escuto também – é o meu avô. Não tenho certeza sobre o que ele está falando, e aí então no fim eu tenho certeza. No fim ele está falando sobre amor” (Di Prima, 2001, p. 13).
 
Apesar da influência anarquista do avô, foi através do íntimo contato com a avó, Antoinette, que ela obtém suas primeiras percepções do universo feminino.
“Minha primeira percepção do que significa ser mulher foi aprendida com minha avó Antoinette Mallozzi, no seu colo. Era uma casa de iluminação escura e branda, como se houvesse lâmpadas de querosene, mas em minha lembrança havia luz elétrica, como em todo lugar… Havia um ar de mistério sutil. A luz recaía sobre as mãos da minha avó, enquanto ela sentava se balançando, rezando o seu rosário. Ela cheirava a limões e óleo de oliva, alho e cera e ervas misteriosas. Eu amava tocar a sua pele” (Di Prima, 2001, p. 1).
 
 
O universo feminino no pós-guerra, quando Di Prima era adolescente, se restringia a alguns estudos controlados pelos pais e, por volta do ensino médio, encontrar um “bom partido” para constituir família. As mulheres viviam às voltas com os afazeres domésticos e dificilmente tinham outro destino. E os imigrantes, como a família de Di Prima, restringiam seu círculo de relacionamento entre os seus. Mantinham suas tradições como um lugar à parte, as regras de conduta norte-americanas contavam pouco. Ela descreve no seu livro de memórias sua experiência aos 12 anos nesse universo:
 
“Como mulher, como filha, segurando a raiva no limite – a dos homens, a nossa própria. Mantendo a alegria no ar. A alegria de viver da família italiana, os homens me apalpando enquanto dançávamos, as mulheres apertando meus seios sob o pretexto de elogiar meu ‘desenvolvimento’” (Di Prima, 2001 p. 53).
 
Esperava-se das mulheres submissão às regras de uma sociedade controladora e baseada na centralização do poder masculino. E isso refletia intimamente nelas, que de alguma forma reagiam. E se se revoltassem, poderiam ser presas, encarceradas em instituições. Essa realidade foi descrita por Phyllis Chesler em seu livro Women and Madness:
 
“Desde que clínicos e pesquisadores, e também seus pacientes e sujeitos concordem com um padrão masculino de saúde mental, mulheres por definição são vistas como psiquicamente comprometidas – enquanto aceitem ou rejeitem o papel feminino – simplesmente porque são mulheres. Dado a esse fato, não surpreende que muitos estudos reportem maiores ‘neuroses’ ou ‘psicoses’ femininas do que masculinas” (2015, p.173).
 
Era esperado das mulheres um comportamento padrão na sociedade. Diane Di Prima quis mais. Ou melhor, quis diferente. Quis ser livre e viver a sua verdade, como o grande ideal anárquico. Ela descreve em seu livro de memórias o que vivenciou e observou do ponto de vista de uma mulher nos círculos boêmios dos anos 1950 e 1960.
Narra com detalhes a construção de sua identidade como escritora e poeta, o que suas escolhas significaram para ela, como era vista pelos demais e como isso influenciava em sua produção criativa. A sua experiência pessoal nos primeiros anos da formação escolar no Brooklin fez com que Di Prima começasse a construir sua subjetividade de uma forma peculiar.
Esse artigo tem como objetivo oferecer à leitora e leitor brasileiros uma primeira aproximação do extenso material produzido pela escritora e poeta Diane Di Prima por meio de seu livro de memórias e de iniciar um diálogo entre a sua produção criativa e as diversas fases de sua vida. Também tem a finalidade de demonstrar como a escritora transformava em produção criativa o que acontecia no seu contexto social e em sua experiência pessoal.
Para tais propósitos, utilizo trechos traduzidos por mim de seu livro de memórias e intercalo com outros poemas e contos publicados em diversas obras de sua autoria, traçando assim um diálogo entre eles. Procurei ressaltar pontos marcantes da sua trajetória, com o objetivo de mostrar as várias facetas de sua personalidade.
 
Escritoras beat: mais do que um acessório
Como aconteceu com outras escritoras que fizeram parte dos ciclos beat, como Joyce Johnson, Hettie Jones e Bonnie Bremser, Di Prima também rompeu com os laços familiares. Ela deixou os estudos no último ano da faculdade e saiu da casa dos pais em busca de autonomia para escrever, quebrando o paradigma da menina branca de classe média. Chegou até mesmo a morar nas ruas, a dividir moradias precárias com outros jovens que também aspiravam uma vida dedicada às artes e à liberdade.
Os ícones da geração beat, que era formada quase sua totalidade por homens, como Kerouac, Ginsberg e Burroughs, viviam de forma a desafiar os costumes da época. Negavam sua participação no “ideal americano”, considerado falso por eles. Tinham como premissa a autonomia, a independência e a liberdade que os permitiam experimentar a vida até o limite. No ir e vir da estrada, cruzavam o país e assim acumulavam experiências que eram transmitidas através de seus escritos.
E as mulheres? Elas também estavam lá, construindo suas trajetórias, lidando com o preconceito ou mesmo o papel secundário que lhes era sutil ou abertamente imposto por parte de seus colegas escritores. Décadas depois, Di Prima seria frequentemente questionada sobre essa condição acessória:
 
“Lendo um dos poetas dos anos 50, seu prefácio para uma antologia, o que ele inadvertidamente revela, eu percebo que existia realmente essa comunidade determinantemente masculina de escritores à minha volta nos anos 50. Eu sou constantemente questionada sobre isso, como: ‘Como você sobreviveu? Onde estavam as mulheres?’ Era realmente essa conspiração masculina: vaidosa, competitiva, glorificando em pequenas aclamações. Postura de ‘Um Homem É O Que Ele Faz’ (Charles Olson)” (Di Prima, 2001 p. 107).
 
 
E como ela lidava com a tensão do relacionamento entre os gêneros, mesmo dentro de um grupo que era supostamente regido pela quebra de paradigmas, pela liberdade?
 
“Eu via esses caras, eu e os outros, como artistas simplesmente. Todo o esforço era pelo Trabalho, e eu os amava por isso. Eu os amava pelo seu melhor, e além do seu melhor como grandes companheiros da Estrada. Minha escolha: ignorar sua supremacia, sua eterna necessidade de estarem certos. Ou eu levava isso como algo sem importância. Uma menor parte dos seus Atos” (2001, p. 107).
 
Viver e escrever como poeta mulher e rebelde naquela época era quase como ser definida como um homem. Mas a negação do padrão de binarismo então vigente não incomodava Di Prima. Ela não pretendia estar inserida em nenhuma categoria. Não se prendia a rótulos. Preferia estar às margens, como uma “outsider”. Talvez porque o que mais importasse em sua trajetória era viver. Viver a experiência, a estrada.
 
“Amava-os ainda. Queridos amigos e companheiros da arte sagrada – a sagrada tarefa de empurrar o contêiner: até que distância ele irá, a língua, a forma, a mente? As possibilidades inseridas no sonho? Como a teoria da bolha da física. Até onde irá sem quebrar, isso o que somos? O quanto conseguimos esticar o corpo, esticar o espírito? Com drogas, com arte, com visão, sexo ou amor. Com risco à nossa própria saúde, além da rima ou razão” (2001, p. 108).
 
A expressão criativa diante das questões sociais
Diane Di Prima passou por grandes revoluções sociais americanas e isso se refletiu em seu trabalho como escritora. Segundo Anthony Libby, ela é a rebelde que estava imersa nas três maiores revoluções culturais americanas do século:“O modernismo, através de sua associação com Pound, os Beat dos 50 e começo dos anos 60, e então a explosão do LSD e os protestos dos anos 60 e 70, quando o romantismo chega às ruas. Três revoluções, com polaridades políticas descontroladamente diferentes, cada uma criou o futuro em uma forma diferente; poucos escritores ou figuras públicas duraram tanto quanto Di Prima no difícil terreno da contracultura sem se queimar” (Johnson e Grace, 2002, p. 45).  No auge da Contracultura e da Guerra Fria, em 1971 ela publicou a sua primeira versão de Revolutionary Letters (Cartas Revolucionárias), que tinham um grande apelo social, ressaltando seu caráter anárquico, uma das mais marcantes características da sua escrita. Posteriormente, foi acrescentando mais e mais cartas e poemas, com sua última versão publicada em 2007, com mais 23 poemas políticos escritos nas últimas duas décadas. Carta Revolucionária n°19Para a campanha dos pobres se o que você quer é empregospara todos, você ainda é o inimigo,você ainda não pensou direito, claramenteo que isso significase o que você quer é moradia, indústria (GE na reserva Navaho)carro para todos, garagem, refrigerador, TV, mais encanamento, via rápidas científicas, você ainda é o inimigo, você escolheu sacrificar o planeta por poucos anos de uma utopia de ficção científica , se o que você querainda é, ou pode ser, escolasonde todas as crianças podem ser moldadas de uma só forma, são ensinadas que é melhor ser americano do que negroou indiano, ou japonês ou porto-riquenho, onde Dick e Jane se tornaram e são o sonho, você se parece como o pai do Dick? não acha que seu filho secretamente desejaria que você fossese o que você quersão clínicas onde a Associação Médica Americanapode te encher de pílulas pra te manter acordado, ou estéril, injetar germes nos seus filhos, enquanto a Merck e Companhia enriquecese o que você queré ajuda psiquiátrica para todosonde terapeutascafetões dessa decadência, podem fazerflorescer para nós, se você quiserse você ainda quer um pedaço um pequeno pedaço do subúrbio, grama verdeespalhada pelo metro quadradoTV a cores, onde a energia radiantemata as células do cérebroonde mensagens subliminaresfazem lavagem cerebral nos seus filhoslevaram seus sonhostítulos de universidades que não são nada além do que senhorios da pocilga, pias purulentas de mentiras, para que você possa ir em frente e mentir para outros em algum campo esverdeadoENTÃO VOCÊ AINDA É O INIMIGO, você está se subestimando, lembre que vocêpode ter o que pedir, peça tudo.
Esse poema mostra a interpretação de Di Prima sobre a sociedade de classe média americana da época, e de como sua visão a levava a pensar que o crescimento social acarretava em uma série de consequências destrutivas para as relações sociais e para a natureza em geral.Segundo Anthony Libby, por baixo da superfície de libertina existia nela o puritanismo tradicional. Em suas primeiras prosas, ela parece ter dúvidas sobre a sua visão de que o universo é basicamente bom, de que a fertilidade é natural, o ritmo do sexo é natural, que são características do puritanismo. O texto a seguir foi publicado no livro Dinners and Nightmares e retrata como, em uma sociedade distópica pós-apocalíptica, as pessoas perdiam o que lhes era de mais humano, a especificidade da espécie em si. “Sem Título (2003, p. 131)
Eles falam dela como a era do ouro, e existem muitos que não acreditam no conto. Eles dizem que naqueles dias, todos os homens eram feitos iguais. Seus membros eram os mesmos em número e moldados da mesma forma, e eles andavam eretos sobre dois deles. Alguns dizem que quase todos podiam falar e andar, e que suas peles eram inteiras e nenhuma parte de seus corpos se torcia e enrugava no nascimento.Muitos não entendem essas coisas. No meu país cada criança é examinada ao nascer por fraquezas e deformações. Existem algumas que são completamente retorcidas e inúteis e essas são deixadas pra morrer.Quando eu era jovem eu não conseguia entender essa lei. Chorei sobre minha irmã recém-nascida e lutei contra os lobos por ela. Finalmente fiquei exausta e dormi, e aqueles do meu vilarejo vieram suavemente e me carregaram para casa. Quando acordei, meu pai me olhou tristemente e falou, e eu concordei e aceitei as regras e o jeito amargo da minha tribo.Meu pai me fez entender que essas leis são necessárias se a tribo quiser permanecer. Cuidamos dos parcialmente cegos, dos coxos e dos muitos que não podem falar, mas aqueles que não serão capazes de fazer nada devem morrer. É a única maneira.Foi então que meu pai me falou da lenda. Ele disse que os anciãos tinham ouvido de um tempo quando todos os homens eram eretos, e as mulheres a se admirar. Não era como hoje quando os líderes da tribo são os que podem falar e ouvir as palavras ditas e ver além. Naqueles dias todos os homens podiam fazer essas coisas. E a terra toda podia suportar o cultivo, meu pai me disse. Não existia o Solo Negro para trazer a morte àqueles que andassem sobre ele, e nem crianças condenadas por aqueles que chegassem muito perto.
Essas pessoas bonitas cresceram em força e entendimento. Elas chamavam nosso Solo Negro de Mãe Terra e cruzaram o grande oceano. Eles entendiam de todas as coisas, mesmo na distância das estrelas brancas. Mas, eu não entendo como aconteceu. Eles ficaram com medo. E os líderes se reuniram e destruíram todas as pessoas bonitas. E a terra se tornou o Solo Negro, e aqueles que sobreviveram à grande destruição apareceram das cavernas e esgotos e tiveram crianças. E as crianças eram retorcidas e estranhas, e muitas morreram.E agora existe uma lei tribal que nos faz sustentar as crianças, embora muitos delas alimentem os lobos. Estamos exaustos, e acasalamento não é uma alegria pra nós. Mas meu pai diz que a tribo deve continuar, porque somos diferentes de outros animais: alguns de nós podem falar, e isso é um dom dos deuses.”  A maternidade como metáforaA exemplo de suas manifestações de forte conotação revolucionária, Diane Di Prima tratava de questões do universo feminino de forma direta e pontual. A maternidade era para ela uma consequência natural da evolução do ser. Quis filhos, e quando os quis, os teve.Em uma entrevista concedida a Toni Moffeit, em 1989, ela disse: “Eu decidi que queria um bebê, mas eu não queria nenhum homem por perto.” Ela se opunha fortemente a todas as formas de controle de natalidade, e quando foi questionada sobre como sustentar uma criança, respondeu: “Consiga pensão, pare de trabalhar, fique em casa, fique chapada e transe” (2002, p. 106).Seu tom era sempre provocador. Quando soube que estava grávida da sua primeira filha, Jeanne, que depois até morou na rua com ela por um período, Di Prima escreveu o seguinte poema, publicado no livro Dinners and Nightmares, em 2003.
Canções para Baby-O, ainda não nascido (2003, p. 126) CorpoDe quem é carneQue cruzou meu destino?Qual noiteComum ou abençoadaSe forma agoraA andar pela terra?
CorpoQual mão Abriu o soloPara aquela cabeça romper?Nos olhosBrotando à vistaQuem eu vou ver?
CorpoSegredo em vocêNasceu esse choro da carne
Agora conto o conto
QueridaQuando você chegar encontraráUma poeta aquiNão bem o que alguém escolheria.
Não prometoQue você nunca sentirá fomeOu que nunca ficará tristeNesse evisceradoQuebradoGloboMas posso mostrar a você BabyAmor suficiente Para partir seu coração Pra sempre. No poema ela exprime como, apesar de não saber e nem se importar quem era o responsável pela paternidade, o desejo de gerar um filho se fazia presente. Sua visão de como deveriam ser as relações afetivas e sociais antecipava o movimento que surgiu na década seguinte, do amor e sexualidades livres, enfatizando quão transgressor era o seu comportamento. Depois de Jeanne Di Prima, nascida em 1957, Diane Di Prima ainda teve outros quatro filhos, Dominique Di Prima, Alex Marlowe, Tara Marlowe e Rudi Di Prima. Ela vivenciava a ideologia da “maternidade natural”, que embora tivesse elementos românticos como se vivesse em uma outra época na qual algum tipo de ‘comunidade orgânica’ fosse possível elevava a sexualidade feminina livre a um lugar central.  As relações afetivas e a produção criativaNos primeiros anos após deixar a casa dos pais, Di Prima conviveu com todo tipo de gente: pintores, atores, escritores, viciados, cafetões. Muitas vezes ela os sustentava e em outras ocasiões era sustentada por eles. Formavam grupos e se dissolviam a todo momento. Os papéis sociais se modificavam à medida da necessidade. Moravam todos juntos e acolhiam a todos que necessitassem. Era o ideal de liberdade plena: “Aqueles primeiros anos em Manhattan foram repletos de fanfarronice e ludicidade. Aprender as leis da sobrevivência ou inventá-las. Antigos e novos amigos entravam e saíam da minha casa. Frequentei a escola. Estudei grego agora, como queria, e cálculo, teoria e números. Estudei italiano e existencialismo. Li insaciavelmente, escrevi quase todos os dias” (2001, p. 109). Alguns desses amigos se transformaram em material para sua produção criativa. Um desses exemplos foi Bret Rohmer, que Di Prima acolheu em seu apartamento em 1955.“Bret era um amigo um pouco recente, um ator infantil que cresceu para se tornar um pintor. Ele estudava agora na Liga de Alunos de Artes e pintava às tardes em frente ao fogo. Ele cobriu nossas paredes com unicórnios e estranhas donzelas no estilo Matisse” (2001, p. 128).  Amigos da estrada acabavam se tornando fonte de inspiração para seus escritos. Por meio de seus poemas ela também resolvia conflitos nos relacionamentos, externava seus descontentamentos e explorava suas relações afetivas. O poema a seguir foi escrito depois de um conflito com Bret Rohmer, o amigo pintor. “Conto para um unicórnio (2003, p. 145)Era uma vez uma poeta e um unicórnio que viviam em uma cidade horrível. Eles eram amigos por muito tempo.Agora para entender sobre poetas e unicórnios, você deve saber que eles pertencem ao reino mítico, que é diferente do reino animal. Todas as criaturas no reino mítico podem se ver mesmo quando são invisíveis à outras espécies e isso faz deles muito ligados entre si.Agora a poeta era uma poeta muito boa, e ela fazia café, tomava pequenas pílulas, e sempre recebia unicórnios e outras criaturas míticas como uma poeta deveria fazer. Entretanto, ela tinha uma falha não muito poética que não deixava os unicórnios muito felizes. A poeta tinha cãibras.Isso acontecia porque ela não dormia muito. Às vezes ela tinha uma cãibra no joelho, ou no seu dedo, o que não era tão ruim, de fato o unicórnio nem ligava quando ela tinha cãibras no pescoço, mas de vez em quando ela tinha cãibras no seu cérebro, e isso deixava o unicórnio realmente muito triste, porque ele não sabia o que fazer para ajudar com tais cãibras, e nem queria, especialmente.(Se você já viu uma poeta com cãibras no cérebro, você entende como o unicórnio se sentiu. Uma cãibra no cérebro de um poeta não é uma coisa com que qualquer um saiba lidar.)Agora, uma noite eles estavam passeando de carro com outros membros dos reinos mítico e animal e a poeta, que estava realmente muito cansada, teve uma cãibra em seu cérebro sobre os amigos do unicórnio. Na verdade, os amigos do unicórnio eram na maioria muito legais, exceto pelo fato de que alguns deles eram híbridos, e pertenciam parcialmente ao reino animal e parcialmente ao reino mítico. Tais criaturas tinham o hábito de aparecer e desaparecer no mundo de uma maneira muito impertinente, e isso aborrecia a poeta, que como todos os poetas pensava que o jogo mítico de reconhecimento secreto era sagrado e não deveria ser interferido.(Poetas tem certas particularidades e na maioria das vezes eles levam coisas muito a sério e outras coisas despreocupadamente, mas sempre todas as coisas invertidas.)De qualquer forma, nesta noite em particular, como eles estavam indo da Terra da Segurança, que eles chamavam de lar, para a antiga Terra da Aventura, que tinha sido assolada na longa guerra entre os reinos animal e míticos, e que ainda usava o nome arcaico de Greenwich Village, a poeta, que tinha uma grande cãibra em seu cérebro, começou a provocar e repreender o unicórnio sobre seus amigos híbridos e sobre um em particular, que eles iriam encontrar naquela mesma noite.Agora unicórnios, qualquer que sejam suas falhas, são criaturas leais, e o unicórnio em questão ficou muito magoado e então muito brabo quando ele ouviu um de seus amigos repreendendo o outro. Enquanto ele ficava mais brabo ele começou a olhar para frente e manteve sua cabeça bem alta, e os músculos da sua mandíbula de sobressaíram, o que é um sinal certo para um unicórnio de que ele estava Realmente Muito Brabo.Entretanto, a poeta, que tinha uma cãibra extraordinariamente grande, disse a si mesma que não se importava e quando todos saíram do carro ela foi pisando forte rua abaixo, com aquela caminhada peculiar que é uma marca característica dos poetas.E o unicórnio, levantando a cabeça mais alto que nunca, saltou para longe através da noite.E muitas horas mais tarde, quando a poeta chegou em casa, com a cãibra não mais em seu cérebro, se sentiu muito triste e arrependida, e muito tola. Tentou pensar em como se desculpar com o unicórnio, mas ela sabe que poetas são orgulhosos e unicórnios são orgulhosos e que desculpas não funcionariam mesmo. Então ela escreveu esse conto.”        No Conto para um unicórnio, Di Prima se utiliza da metáfora sobre seres míticos para externar sua visão sobre papel do artista na sociedade e de como se sentia pertencente a uma outra “categoria”, como se sentia diferente dos demais.
Uma “Outsider”Anthony Libby entende que a força de Di Prima vem em valorizar a experiência que rompe com as categorias comuns. Ela valoriza uma concepção do “self” (eu) que rompe com as formas de “agrupamentos” habituais. Entende a mentalidade de grupo como limitada, estreita, como na identidade política tribal, implícita em qualquer forma de nacionalismo.Por essa razão, ela preferia estar às margens, longe das formas de agrupamentos da sociedade tradicional. Apesar de ser considerada uma das heroicas precursoras da segunda onda do feminismo, sua solidariedade era primariamente direcionada às excluídas, como uma irmandade das “outsiders” (Johnson e Grace, 2002, p. 49).A escrita de Di Prima é contraditória e sagaz, nem sempre politicamente correta e muitas vezes mescla conteúdo político e sexual. Logo que se torna independente e ganha as ruas, sua percepção do forte poder sexual feminino e em como isso se reflete nas mulheres à sua volta é recebida por ela como o rompimento de um paradigma, como uma libertação: Foi mais ou menos nessa época que tomei o que penso como minha decisão de não ser bonita. Na verdade, eu não tinha a menor ideia de como eu aparentava. Muitos anos da programação cansativa nas mãos de Dick, Emma me deixaram cega de mim no espelho. Eu simplesmente não conseguia ver o que havia lá. Mas o que eu sabia era que obtinha resposta dos homens, na maioria homens, enquanto eu quisesse ou não. Eu havia observado o fardo que a beleza era para as mulheres e as garotas à minha volta. Observado como elas se viam, capturadas em um corredor de espelhos onde era difícil ver o fundo das coisas, para possuir a sua paixão. Capturadas em um tipo de auto amor. Via como elas eram observadas por seus amigos e amantes, e então que elas não eram vistas, não verdadeiramente presenças, mas as pinturas, filmes, estátuas do sonho de alguém. Uma peça da mobília. Eu não estou falando aqui somente de objetificação, embora era parte disto. Não somente o ‘eu não sou um objeto sexual’ que nós ouvimos tanto nos últimos dez ou vinte anos. Mas havia uma coisa mais, um véu de gaze, um verniz, entre os homens e mulheres verdadeiramente bonitos em meu mundo, entre eles e o mundo por si só. Formou-se uma barreira entre elas e os eventos das suas vidas. Seus sentimentos. A crueza da amizade ou do amor. Havia uma postura que elas nunca abandonavam.E também, não importando o quão verdadeiramente elas eram amadas, elas nunca eram verdadeiramente amadas. Ou então era o que parecia para mim. Talvez fosse minha cegueira. Minha necessidade de renegar toda e qualquer parte de mim que me levava o meu pai, tios, os homens da minha família a se comportar como faziam. Minha necessidade de renegar qualquer coisa que tivesse feito Emma chorar quando eu coloquei aquele primeiro batom. Talvez o que vi na vida dessas mulheres não foi nada além de projeção, minhas próprias neuroses, mas até hoje eu sinto alguma verdade nisso. Não importa o quanto elas eram amadas, elas nunca eram amadas” (2001, p. 114). Considerações finaisA trajetória de um escritor muitas vezes toma direções contrárias à sua vontade ou intenção. Muitos escritores beat acabaram “seguindo outra estrada”. Alguns encerraram suas vidas precocemente, por excessos ou simplesmente por falta de administração pessoal. Diane Di Prima não traçou seu caminho conscientemente, em busca de fama e reconhecimento. Mas tinha em mente a clareza de seu papel significativo no mundo como escritora, que seria influência para jovens e mulheres ao longo da vida. Que faria a diferença. E ela ainda segue fazendo. E escrevendo: “Quando falo, como às vezes o faço, para os outros sobre a minha vida, quando eles perguntam, ou buscam descobrir o que significou para mim decidir naquela época ser uma poeta e então como isso seguiu, me tornar ‘Uma Escritora’, eles normalmente dizem, ‘Bem, sem dinheiro, é claro, mas a fama, a fama precoce deve ter sido uma recompensa’. E eu olho pra eles estranhando, penso o que eles veem, como eles imaginam aqueles primeiros apartamentos, quartos vazios, caixas como mesas e cadeiras, e eventualmente um bebê em algum canto. Fama, eu digo hesitantemente, havia fama? Não sei, acho que não” (2001, p. 101).  O objetivo deste artigo foi oferecer à leitoras e leitores brasileiros uma primeira aproximação do extenso material produzido por Diane Di Prima, uma das mais prolíficas escritoras da geração beat, já que apenas um dos seus 34 livros foi publicado no Brasil. Também almejei iniciar um diálogo entre a sua vida pessoal e a sua produção literária, através do seu livro de memórias e de vários contos e poemas de outras publicações. Para esse propósito, busquei nessas publicações referencias, inquietações, eventos que pudessem estar relacionados aos relatos no livro de memórias.  BibliografiaCHESLER, Phyllis. Women and Madness. New York: Palgrave Macmillan. 2005.Di PRIMA, Diane. Dinners and Nightmares. Last Gasp of San Francisco. 2003.Di PRIMA, Diane. Recollections of My Life as a Woman: The New York Years. New York: Viking Press, 2001.Di PRIMA, Diane. https://theanarchistlibrary.org/library/diane-di-prima-revolutionary-lettersFELSKI, Rita. Literature after Feminism. Chicago: University of Chicago Press, 2003JOHNSON, Ronna and GRACE, Nancy M. Girls Who Wore Black: Women Writing the Beat Generation. New Brunswick: Rutgers University Press, 2002.PROUDHON, Pierre Joseph. General Idea of the Revolution in the Nineteenth Century. New York, Haskell House, 1969.




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