LITCULT

Revista LitCult
ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





OLGA: PERSONAGEM FEMININA NA LITERATURA E NO CINEMA – Aline de Castro Costa Martins, Luciana Genevan da Silva Dias Ferreira e Patrícia Sá de Almeida Tavella




 

Aline de Castro Costa Martins

Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora

 

Luciana Genevan da Silva Dias Ferreira

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

 

Patrícia Sá de Almeida Tavella

Universidade Federal de Juiz de Fora

 
RESUMO: Este artigo tem por objetivo estabelecer uma reflexão comparativa entre literatura e mídia, por meio de análise da obra literária Olga, do autor Fernando Morais, baseada sobre a vida da mulher do líder político Luís Carlos Prestes, Olga Benário, e do filme homônimo do diretor Jayme Monjardim, confrontando as diferenças de abordagem – transposição do hipotexto (texto de partida) para o hipertexto (filme de chegada), ou seja, a transposição da obra literária para o cinema – e a noção de fidelidade. Buscar-se-á também evidenciar os planos de montagem utilizados no filme. O embasamento teórico do trabalho pauta-se, principalmente, em Yannick Mouren que, ao discutir sobre tal transposição, evidenciou três diferentes tipos: a diegética, a pragmática e a de personagens, as quais serão abordadas na presente análise. Percebeu-se que, apesar de literatura e cinema serem artes diferentes, a contribuição que uma suscita à outra é expressiva, permitindo o hipertexto manter uma relação de interdependência com o hipotexto, conservando, no entanto, cada uma das artes características e motivações próprias.
 
Palavras-chave: Olga. Literatura. Cinema.
 
RÉSUMÉ: Cet article a pour objectifs établir une réfléxion comparative entre la littérature et les médias, par le moyen de l´analyse de l´oeuvre littéraire Olga, de Fernando Morais, basé sur la vie de la femme du politique Luís Carlos Prestes, Olga Benário, et du film homonyme du réalisateur Jayme Monjardim, en affrontant les différences d´abordage – transposition de l´hypotexte (texte de départ) pour l´hypertexte (arrivée du film), c´est à dire, la transposition de l´oeuvre littéraire pour le cinéma – et la notion de fidélité. On cherche aussi mettre en évidence les plans de montage utilisés dans le film. La base théorique du travail est guidé, principalement, par Yannick Mouren que, en discutant sur telle transposition, a évidencé trois types différents: la diégétique, la pragmatique et celle des personnages, auxquelles seront abordées dans l´analyse présente. On s´est apperçu que malgré que la littérature et le cinéma soient des arts différents, la contribution de l´une vers l´autre est significative, permettant l´hypertexte de maintenir une interdépendance avec l´hypotexte, tout en conservant chacun des arts leurs caractéristiques et motivations.
 
Mots-clé: Olga. Littérature. Cinéma.
 
Minicurrículos:
Aline de Castro Costa Martins: Graduada em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES/JF; Pós Graduada em Revisão de Textos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG; Mestre em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES/JF – SMC.
 
Luciana Genevan da Silva Dias Ferreira: Graduada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES/JF – SMC. Doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG.
 
Patrícia Sá de Almeida Tavella: Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Pós Graduada em Gestão de Recursos Humanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Mestre em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES/JF – SMC.
 
OLGA: PERSONAGEM FEMININA
NA LITERATURA E NO CINEMA
 
Aline de Castro Costa Martins
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
 
Luciana Genevan da Silva Dias Ferreira
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
 
Patrícia Sá de Almeida Tavella
Universidade Federal de Juiz de Fora
 
 
Introdução
O cinema, hoje, desponta como a arte que agrega o maior número de interessados, assim como a literatura o fez nos séculos XIX e XX (GALDA, 2010). Nesse cenário, percebe-se que muitos filmes produzidos são adaptações de romances. Uma análise comparada dessas artes permite visualizar a contribuição que uma suscita à outra, pois, mesmo sabendo que elas são independentes, mantêm também uma relação.
Apresenta-se, neste artigo, uma reflexão comparativa entre estas duas artes: literatura e cinema, tendo como objetos de discussão o livro Olga, de Fernando Morais, publicado em 1985 e relançado em 1994, e o filme homônimo, dirigido por Jayme Monjardim, cuja estreia data de 2004. Colocam-se em evidência fatores como noção de fidelidade, espaço e tempo, narrador e personagens, planos de montagem. O embasamento teórico do trabalho pauta-se, principalmente, em Yannick Mouren, que discute a transposição do hipotexto (texto de partida) para o hipertexto (filme de chegada), ou seja, a transposição da obra literária para o cinema.
O livro e o filme são uma biografia, porque a atenção, segundo Bakthtin (2003), concentra-se nas façanhas, afazeres, méritos como também na organização do destino e felicidade/infelicidade de Olga Benário.  Ambos, apesar das diferenças que serão discutidas a seguir, contam a história dessa mulher que, nascida em Munique, na Alemanha, em 1908 e filha de pais judeus, ainda com 16 anos, saiu de casa e tornou-se uma ativista comunista.
Percebe-se, no entanto, que o livro e o filme apresentam a trama de forma diferenciada, pois enquanto o hipotexto (obra literária de partida) tem como abordagem principal a história de Olga com o comunismo, enfatizando ideais políticos e sociais, o hipertexto (filme de chegada) foca a relação amorosa de Olga e Prestes.
 
Noção de fidelidade x adaptação
Serão abordadas as relações entre literatura e cinema, considerando a teoria de Yannick Mouren (1993), para mostrar os elos e as diferenças entre as obras literária e fílmica. A transposição do livro Olga, de Fernando Morais, ao filme homônimo, dirigido por Jayme Monjardim, é considerada pelo teórico francês como “adaptação”, pois o cineasta e/ou o roteirista partem de uma biografia única e fazem dela um filme de ficção (MOUREN, 1993).
O filme de chegada assim como o texto de partida são narrativos, porque produzem uma mensagem multíplice, apresentando uma série de circunstâncias, de eventos e de ações conciliados na unidade de um enredo (GUALDA, 2010). Quanto ao gênero, são épicos, pois há, de acordo com Cunha (1979), distanciamento entre sujeito (narrador) e o objeto (mundo narrado). Há, ainda, a abordagem da história de um povo (judeu) ou de uma nação (Alemanha à época do holocausto), envolvendo aventura, guerras, viagens, gestos heróicos e um tom de exaltação, valorizando a heroína Olga e seus feitos.
Autor e diretor, no livro e no filme respectivamente, colocam-se diante do objeto, segundo determinado ponto de vista de observação, para registrar, apontar, mostrar, apresentar, caracterizando uma narração em terceira pessoa, uma vez que o narrador não está presente na história. Esse tipo de posicionamento (distante), segundo Cunha (1979), vem corroborar o enquadramento dos textos em estudo como pertencentes ao gênero épico. Os fatos são narrados no passado, inclusive no filme (apesar de parecer que as ações estejam desenrolando-se no presente).
Ainda que tenham características comuns, são obras autônomas, uma vez que a obra fílmica não é mera cópia da literária. Nesse sentido, apesar de tais abordagens manterem relação entre si, o hipertexto conserva características e motivações próprias, rompendo, assim, com a noção de “fidelidade”. Isso ocorre, principalmente, por levar em consideração as diferenças entre os meios que veiculam essas obras (o livro é veiculado por um meio verbal, e a obra fílmica é veiculada por um meio multifacetado); a não subordinação do texto-resultante (hipertexto fílmico) com relação ao texto que lhe “deu origem” (hipotexto); e o fato de que qualquer texto, seja ele literário, fílmico, ou de qualquer outra natureza, configurar, segundo Sbrissa e Harris (2013), uma “construção híbrida”, resultado da confluência de muitas vozes “ouvidas” por seu autor (SBRISSA E HARRIS, 2013).
A questão da adaptação, de um ponto de vista narratológico, precisa considerar, segundo Mouren (1993), a exploração de diferentes tipos de transposição do livro ao filme: a transposição  diegética, a transposição pragmática e a transposição de personagens, as quais abordaremos em seguida.
 
Transposição diegética: tempo e espaço
A biografia de Olga Benário contextualiza-se no período dos regimes totalitários na Europa e, posteriormente, da ditadura varguista no Brasil. Para Bakhtin (2003), o tempo biográfico corresponde ao real, pois todos os seus momentos estão vinculados ao conjunto do processo global e, por isso, a biografia traz períodos longos e opera com partes orgânicas do todo de uma vida, como idades, por exemplo (BAKHTIN, 2003). O espaço, por sua vez, reveste-se de um caráter particular, deixando de ser apenas pano de fundo para o herói (neste caso para a protagonista Olga – heroína). A protagonista insere-se no mundo e os lugares onde se passam as ações são significativos para a trama. O espaço é funcional na biografia.
O conjunto de acontecimentos narrados, levando-se em conta a dimensão espaciotemporal, por Morais, na biografia, e retratados, no filme, por Monjardim, apresenta diferenças e semelhanças que serão versadas aqui, considerando-se a teoria de Yannick Mouren (1993) que aborda o texto de partida (romance biográfico Olga, escrito por Fernando Morais) como hipotexto e o filme de chegada (homônimo, de Jayme Monjardim) como hipertexto.
De acordo com Mouren (1993), a transformação de um hipotexto escrito em um hipertexto fílmico requer que o autor dessa operação pratique certo número de escolhas. Procurar-se-á demonstrar como a biografia levada à tela apresenta modificações nos quadros espacial e temporal, ou seja, adaptações.
O livro começa com espaço e tempo bem marcados no subtítulo: “BERLIM, ALEMANHA, ABRIL DE 1928” (MORAIS, 2008, p. 17). O narrador relata aquilo que já aconteceu, conta a façanha de Olga, ao resgatar Otto Braun da prisão de Moabit, no centro de Berlim. Após o fato (o resgate), Olga e seu namorado ativista viajam para Stettin, uma cidade na fronteira entre Alemanha e Polônia. “De lá embarcam num trem rumo a Moscou”, na União Soviética (MORAIS, 2008, p. 21).
O filme, por sua vez, tem início também com uma proeza de Olga, mostrada em flashback, em que ela quando ainda criança, em uma noite de inverno, durante uma nevasca, pula por cima de uma fogueira. Posteriormente, após a cena da menina pulando a fogueira, aparece o rosto da protagonista em uma janela, no campo de concentração de Ravensbrück, na noite que antecede sua morte em 1942. Para marcar local e tempo, há, no filme, uma legenda com as seguintes palavras: “CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DE RAVENSBRUCK, ALEMANHA, 1942”. Olga, ao esperar pelo fim de sua vida, pressentindo o que acontecerá, traz à lembrança imagens de sua própria infância, e isso a remete à infância de sua filha.
Distanciando-se do livro, que se inicia em 1928, o filme narra o que está acontecendo em 1942. Segundo Gualda (2010), o tempo cinematográfico apresenta-se com imagens de ações concretas e é percebido como análogo ao tempo real, em que notamos ação e movimento, e não o tempo. Enquanto o tempo, no livro, é codificado linguisticamente.
Na filmagem do texto literário, Olga, na véspera de sua morte, começa a pensar na carta que escreveria para Prestes, seu esposo, e para Anita Leocádia, sua filha: “– Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda a minha vontade”. Com papel e lápis em mãos, dentro do alojamento do campo de concentração, ela começa a escrever sua última carta. Ao redigir, olha para duas “companheiras” que estão na cama à frente e verifica que uma delas bordava em um pano branco uma maçã. A imagem da maçã remete Olga mais uma vez ao passado, levando-a a lembrar-se da cesta com maçãs que carregava (para esconder a arma que utilizaria em sua façanha) quando resgatou Otto Braun da prisão de Moabit, em Berlim, na Alemanha, em 1928.
Essa cena do resgate de Braun marca o início do livro, sendo, portanto, um ponto de contato entre as obras. A cena seguinte do filme é um recorte da viagem de Olga e Otto de trem para Moscou, semelhante ao livro. Todavia, no livro, entre o resgate de Braun e a viagem, há outros fatos.
Durante a viagem da Alemanha para União Soviética, na obra fílmica, Olga relembra seu passado: suas participações nas manifestações comunistas, o dia em que saiu da casa de seus pais, que pertenciam à classe média, para viver em um bairro pobre, de operários, em Berlim. Essa retomada memorialista do passado não acontece no livro na mesma sequência em que ocorre no filme, pois no livro ela relembra os mesmos fatos quando entra no hotel em que se hospeda em Moscou.
Há, na obra de Fernando Morais, um recorte espacial feito pelo narrador, o qual remete o leitor a outro continente, da Europa à América, mas o tempo é preservado: “BUENOS AIRES, ARGENTINA, ABRIL DE 1928” (MORAIS, 2008, p. 22). Isso não ocorre no filme. O narrador do livro contextualiza, no tempo (1928) e no espaço (América), Luís Carlos Prestes, mostrando sua militância, aproximando-o ideologicamente de Olga, apesar da distância continental entre ambos.
No filme não há esse recorte para mostrar a vida de Luís Carlos Prestes. A sequência fílmica, após a viagem de Olga junto com Otto para Moscou, é um discurso que ela faz para várias pessoas, no qual ela exalta a revolução e narra sua vontade de realizar um treinamento militar para se capacitar e, somente assim, participar efetivamente do que está por vir, da revolução. No final desse discurso, Otto rompe com ela no filme, diferente do livro, no qual o rompimento vem após o treinamento militar, quando ela segue para sua primeira missão na França.
O narrador, do livro, após contar os feitos da Coluna Prestes, transporta o leitor à capital soviética, retornando a 1928. Olga e Otto chegam a Moscou. Quando Olga preenche a ficha de entrada no Hotel Desna, nota que exatamente cinco anos antes ela entrara pela primeira vez em uma organização comunista (1923). No livro, há o flashback nesse contexto, quando o narrador marca essa retrospectiva feita pela personagem, da seguinte forma: “Foi no verão de 1923, em Munique, sua cidade natal, poucos meses depois do seu 15º aniversário” (MORAIS, 2008, p. 29). Diante dessas informações, concluímos que Olga, em 1928, estava com 20 anos. O narrador retoma os anos anteriores, como Olga conheceu Otto e seu envolvimento com o comunismo, além de sua ascensão no partido. No filme, esse flashback acontece durante a viagem de trem.
De 1928 a 1931, Olga realizou vários trabalhos em Moscou relacionados à sua militância comunista, participou de um treinamento paramilitar, aprendeu a usar armas, a cavalgar, incorporada a uma unidade regular do Exército Vermelho. “No final de 1931, Olga seria escalada para sua primeira missão internacional” (MORAIS, 2008, p. 55). Olga e Otto estavam se afastando por causa dos compromissos com o Partido Comunista, “os dois vinham se encontrando cada vez menos” (MORAIS, 2008, p. 55). Então, Olga propôs a separação. Mais uma vez diferente do filme, como já citado, foi Otto quem rompeu com Olga antes do treinamento paramilitar, alegando que ela não teria tempo para ser mulher, devido ao empenho.
No final de 1931, Olga viaja para a França. Ao voltar a Moscou faz um curso de paraquedismo e pilotagem de aviões na Academia Zhukovski da Força Aérea, onde encontrou jovens de vários países do mundo. Foi onde ouviu, pela primeira vez, um jovem latino-americano narrar a aventura revolucionária na América do Sul, cujo líder seria Luís Carlos Prestes. Esse último fato (ouvir falar sobre Prestes) é semelhante nas duas obras.
É relevante observar que há, no filme, um recorte, durante as cenas da viagem de navio, para mostrar que os fatos são lembranças de Olga, pois aparece seu rosto com lágrimas, no campo de concentração, retomando o espaço e o tempo iniciais da obra fílmica, lembrando ao espectador que a heroína está recordando fatos vividos.
Olga viveu durante pouco tempo no Brasil, junto com Prestes. Após derrota do movimento revolucionário, eles foram presos. Em 23 de setembro de 1936, Olga foi deportada para Alemanha, grávida de sete meses. Na madrugada de 27 de novembro de 1936, um ano após a frustrada revolta no Rio de Janeiro, nasce Anita Leocádia, na prisão em Lichtenburg, Alemanha.
A partir de janeiro de 1937, Olga e Dona Leocádia começam a se corresponder por cartas. Dessa forma é que Olga volta a se comunicar, ainda que precariamente, com Prestes no Brasil. Esse ponto também converge nas obras literária e fílmica.
Durante o período de amamentação, Olga pode ficar com a filha, mas em 21 de janeiro de 1938, Anita Leocádia foi tirada de Olga.  Quem passa a cuidar da criança é dona Leocádia, sogra de Olga. Após separação de mãe e filha, Olga é transferida da prisão de Lichtenburg para Ravensbrück (campo de concentração nazista), onde ficou de 1938 a 1942. Esse período é retratado tanto no filme como no livro.
O filme termina com a morte de Olga na câmara de gás. O livro não: o narrador remete o leitor a São Paulo, Brasil, em julho de 1945, para contextualizar o que havia acontecido com Luís Carlos Prestes. Relata que havia saído da prisão e que havia sido escolhido para secretário geral do Partido Comunista, e que, naquela ocasião, 15 de julho de 1945, faria um comício no Pacaembu, após dez anos de fechamento da aliança Nacional Libertadora, em 1935. Naquela mesma noite, em 1945, Prestes recebeu notícias de Olga. Tratava-se de um despacho curto, sem o acréscimo de muitos detalhes:
 
Berlim – As autoridades aliadas acabaram de informar que, entre as duzentas mulheres executadas na câmara de gás da cidade alemã de Bernburg, na Páscoa de 1942, estava a Sra. Olga Benário Prestes, esposa do dirigente comunista brasileiro Luís Carlos Prestes (MORAIS, 2008, p. 296).
 
Anos depois, Prestes recebeu a carta que Olga escrevera para ele e para a filha na véspera de sua morte, em 1942. Verifica-se, portanto, que o espaço apresentado relaciona-se ao tempo, como categorias narrativas de relevo para a ancoragem de personagens e ações, num universo referencial dado. Percebe-se, no entanto, conforme analisa Gualda (2010), que o espaço predomina no filme; em contrapartida, o tempo predomina no romance. O espaço é conceitual no romance, mas o tempo é expresso intensamente desde a sucessão dos episódios.
 
 Transposição de personagens
Conforme a abordagem teórica de Yannick Mouren (1993), relativa à transposição das personagens do hipotexto para o hipertexto, critérios objetivos e identificáveis precisam ser considerados, quais sejam: o número de personagens, a idade e o sexo. Abordaremos o número e a idade das personagens, pois com relação ao sexo das personagens não há alteração. O próprio Mouren (1993) diz que são raras as adaptações nas quais as personagens mudem de sexo ao serem transpostas para a tela. (MOUREN, 1993)
Quando se estuda uma adaptação cinematográfica, podem-se enumerar as personagens presentes no hipotexto e comparar o número assim obtido ao dos atores do hipertexto fílmico. O livro Olga, de Fernando Morais, descreve detalhadamente as personagen, que são muitas. Já o filme mostra mais superficialmente as personagens, visto que o foco deste é o casal Olga e Prestes. Segundo Mouren (1993) o cinema apresenta uma tendência geral de reduzir o número de personagens em relação ao hipertexto (MOUREN, 1993), conforme essa pesquisa constatou.
As personagens da obra de Fernando Morais foram, segundo Antônio Candido (2011, p. 71), “transpostas de modelos anteriores, que o escritor reconstitui indiretamente, por documentação ou testemunho, sobre os quais a imaginação trabalha”. Morais realizou uma pesquisa que se inicia em 1982 e só termina em 1985, para “recompor o retrato de Olga” (MORAIS, 2008, p. 9).
A obra literária enfoca personagens políticos como Filinto Müller, Getúlio Vargas, partidários comunistas como Miranda, Rodolfo Ghioldi, Victor Barron, Agildo Barata, Arthur Ewert e Elisabeth Saborowsky Ewert, militares da Coluna Prestes e militares do governo Vargas. No filme, há uma redução de personagens, além de enfoques diferentes. Um exemplo de redução do número de personagens no filme seria a ausência do irmão de Olga, que está presente no livro. No filme, ele aparece apenas em uma fotografia, quando Olga está relembrando o dia em que saiu de casa e pega um porta-retratos no qual há a foto da família.
Com relação à idade das personagens, no texto de Fernando Morais, nós acompanhamos a passagem do tempo por datas marcadas: 1928, 1930, 1934, 1942 e 1945. No filme, de Monjardim, há Olga menina, pulando a fogueira, depois jovem (imagem marcada pelo cabelo com tranças, quando a personagem relembra suas ações em manifestações comunistas), posteriormente Olga adulta, na viagem para o Brasil com Prestes. Há também a passagem do tempo marcada pela gravidez e pelo nascimento de Anita Leocádia (bebê), além de seu crescimento – a imagem de uma menina de mais ou menos cinco anos.
As personagens secundárias que estão ligadas diretamente à Olga e Prestes são mantidas no filme: dona Leocádia, Lígia (irmã de Prestes), Dr. Benário (pai de Olga), a mãe de Olga, Elisabeth Saborowsky Ewert (amiga de Olga), Getúlio Vargas, Filinto Müller, entre outros. Porém, no livro, a ênfase dada aos aspectos políticos e aos personagens políticos é maior, além da descrição e caracterização das personagens secundárias.
O romance e o cinema enfocam e constroem de modos diferentes as personagens, pois, enquanto no primeiro, as personagens são feitas de palavras escritas, no segundo, elas se constroem por imagens; os contextos são diferentes: escrito e visual (CANDIDO, 2011).
 
Transposição pragmática
A transposição que surge a nível pragmático, de acordo com Mouren (1993), constitui a maior parte do trabalho de passagem do hipotexto escrito para o hipertexto fílmico. Constatou-se essa característica na passagem da obra de Fernando Morais, Olga, para o filme homônimo de Jayme Monjardim, pois o filme coloca a história de amor entre Olga Benário e Luís Carlos Prestes em primeiro plano, universalizando a história. Essa abordagem amorosa aponta para um discurso emocional, ao passo que o discurso do livro é mais político e enfatiza questões históricas (nazismo e comunismo).
Olga, o filme, nos oferece o momento histórico simplificado. O espectador é envolvido pelo romance entre as personagens de tal maneira que a história fica em segundo plano. O livro faz o leitor refletir sobre o contexto político e histórico, construindo uma visão crítica. A narrativa do livro apresenta um espaço amplo, pois Olga vive na Alemanha, em seguida União Soviética, depois viaja por vários países europeus, entre eles a França, e, posteriormente, para o Brasil, retornando à Alemanha. O filme, no entanto, reproduz o espaço europeu em estúdio no Rio de Janeiro/RJ.
Para Mouren (1993), os exemplos de supressões e de permutações de ações são comuns. Pode-se mesmo dizer que são a regra na passagem do hipotexto ao hipertexto. As escolhas de Jayme Monjardim, relativas à transposição pragmática, serão discutidas ao serem abordados, brevemente a seguir, os planos de montagem.  Apesar de a questão da adaptação de um romance para o cinema sempre gerar discussão, é possível vislumbrar a contribuição que uma arte traz à outra.
A análise fílmica não é feita facilmente. Francis Vanoye (1994), ao tratar desse assunto, revela as dificuldades de analisar um filme, principalmente, devido à impossibilidade de citar a imagem. O contexto da ação é minuciosamente planejado, segue uma ideia preestabelecida, possui objetivos claros e revela determinada ideologia. As técnicas escolhidas pelo diretor e suas estratégias formais como a montagem, o distanciamento da câmera, o close-up, por exemplo, são alguns dos caminhos encontrados para reprodução cinematográfica (VANOYE, 1994).
O mundo que o diretor Jayme Monjardim reconstruiu no filme Olga é muito familiar à ideia que podemos ter daquela época. Apesar de ter sido totalmente rodado no Rio de Janeiro, o diretor conseguiu que os recursos técnicos possibilitassem a neve e uma fotografia sombria, por exemplo, que coincidem com a imagem que muitos têm do mundo europeu. A produção do filme conseguiu recriar as cidades de Moscou, Berlim, Munique e Ravesnbruck. As sequências foram rodadas nos estúdios “Renato Aragão”, da Rede Globo e em locações como a antiga fábrica Bangu, que se transformou no campo de concentração de Ravensbruck.
O filme Olga tem pouco mais de duas horas de duração e foi filmado praticamente todo da mesma forma. Muitos dos planos mais fechados da obra cinematográfica podem ser explicados por uma questão técnica, além da ênfase dada à emoção. Tendo sido filmado no Rio de Janeiro, sob forte calor, o diretor precisou evitar planos gerais, abertos, para conseguir transmitir uma ideia realista da localização geográfica: Alemanha e Rússia.
O filme parece, tecnicamente, bem construído, em questão de luz, cenário e figurino. Um excesso da utilização da linguagem visual-televisiva percebida no filme, pode ser devido ao fato do diretor do longa, Jayme Monjardim, ter vasta experiência com programas televisivos, e nenhuma com cinema, sendo Olga seu primeiro filme.
Outra influência relativa à televisão seriam os chamados planos “estourados”, em close-up ou primeiro plano, tão comuns nas telenovelas, por exemplo, e que foram empregados amplamente na maior parte no filme. O diretor valeu-se ainda dos recursos de plano de meio conjunto, plano médio e meio primeiro plano para algumas cenas sem recorrer aos planos ambientais durante as filmagens.
Essa escolha estética pode ter sido usada por dois fatores: pela experiência do diretor em televisão ou pode ter sido uma escolha estética e, dessa forma, a linguagem imagética seria de mais fácil absorção, não causando qualquer tipo de estranhamento.
 
Considerações finais
A literatura e o cinema são artes independentes, mas quando se tem um hipotexto como referência de um hipertexto, como foi o caso analisado nesse estudo sobre a obra literária Olga, de Fernando de Morais, e o filme homônimo de Jayme Monjardim, pode-se perceber que, apesar de se manter tal característica (autonomia), uma relação de interdependência é ressaltada. A personagem protagonista Olga também ganha interpretações e recortes diferentes na obra literária e no filme, naquela ressalta-se seu envolvimento com a política e neste o relacionamento amoroso com Preste. A análise comparada de ambos, pautada no referencial teórico de Yannick Mouren, possibilitou uma maior compreensão da complexidade da forma em que acontece essa passagem, além de uma visão da transformação do leitor em espectador.
 
REFERÊNCIAS
 
BAKHTIN, Mikhail. O romance biográfico. In: ______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 213 – 216.
 
CANDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011.
 
CUNHA, Helena Parente. Os gêneros Literários. In: PORTELLA, Eduardo et al. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasil, 1979. p. 107 – 115.
 
GUALDA, Linda Catarina. Literatura e cinema: elo e confronto. Matrizes. São Paulo: USP, Ano 3, n.2, p. 201-220, jan/jul. 2010.
 
MOUREN, Yannick. Le film comme hypertexte. Poétique, Paris: Seuil, n.93, p. 113-122, fev.1993.
 
MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
 
OLGA. Direção: Jayme Monjardim. Produção: Carlos Eduardo Rodrigues; Bruno Wainer e Marc Beauchamps. Intérpretes: Camila Morgado; Caco Ciocler; Fernanda Montenegro. Roteiro: Rita Buzzar. Brasil: Europa Filmes, 2004. 1 DVD (140 min.), drama, son., color.; NTSC.
 
SBRISSA, Fernanda de Souza; HARRIS, Peter James. O conceito de fidelidade na adaptação cinematográfica de obras de literatura: uma comparação entre o romance Enduring Love, de Ian MCEWAN, e o filme de mesmo título. Disponível em: <http://prope.unesp.br/xxi_cic/27_36854746850.pdf.>. Acesso em: 20 set. de 2013.
 
VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 5 ed. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papyrus, 1994.
 
 
 
 
 




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