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ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





O erotismo poético de Gilka Machado: um marco na liberação da mulher




O erotismo poético de Gilka Machado: um marco na liberação da mulher

Angélica Soares
Universidade Federal do Rio de Janeiro

E que gozo sentir-me em plena liberdade,
longe do julgo atroz dos homens
e da ronda da velha sociedade.

Os três versos, em epígrafe, publicados em 1915 no primeiro livro de poemas, Cristais partidos, já nos transmitem (como tantos outros) o pioneirismo de Gilka Machado (Rio de Janeiro, 1893-1980) na abertura de espaços contra o paradigma masculino dominante, através da criação literária.
As imagens acima levam-nos também a repensar, em diálogo com a poesia gilkiana, o sistema super-repressivo no qual se inscreve e pelo qual se escreve a história da mulher.
Sendo assim, pareceu-nos bastante sintomático o título Meu glorioso pecado, dado ao livro de 1928, constituído integralmente de poemas eróticos, aos quais nos dedicamos neste ensaio. Isto porque, com uma linguagem desveladora de um processo de afirmação da identidade feminina, os ” – Amores – que mentiram, que passaram”, se por um lado estruturam-se como conquista e vitória da mulher (daí a marcação textual de “glorioso”), por outro lado mantém os índices de repressão, aparecendo como “pecado”. E, por isso, Gilka nos reconduz, obrigatoriamente, ao peso da “culpa original”, impressa no texto bíblico:
“A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligéncia, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. Então os seus olhos abriram-se, e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cinturas para si” (Génesis, 3, 6 e 7).
 
Quando Deus interroga o homem, este culpa a mulher dizendo: “A mulher que pusestes ao meu lado apresentou-me deste fruto e eu comi” (Génesis, 3, 12). E, embora a mulher se tenha dito, ao Senhor Deus, enganada pela serpente, ele impõe-lhe o castigo:
“Multiplicarei os sofrimentos do teu parto, darás à luz com dores; teus desejos tei impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.” (Génesis, 3, 16)
 
O domínio masculino passa a se justificar e a ser vivenciado pela mulher cristã como castigo pelo pecado, que envolve culpa e sexo. Acrescente-se a isso a garantia da supremacia do homem pelo ato de criação que, em várias versões da Bíblia, apresenta a mulher surgida de uma costela de Adão.
A “moral sexual cristã” veio historicamente sustentando a negatividade do prazer físico e da sexualidade e, conforme nos relata Foucault, veio enfatizando, embora já objeto da “moral sexual do paganismo antigo”, “a proibição do incesto, a dominação masculina e a sujeição da mulher”. A estrutura familiar patriarcal, por sua vez, reproduziu essa situação. E, ainda nas lições de Foucault, vemos que o poder, o saber e o prazer sempre estiveram juntos; “que as relações de poder não se encontram em relação de exterioridade com respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimentos, relações sexuais) mas lhe são imanentes”; e que:
“Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias.”
Diferentes mecanismos de dominação uniram a sexualidade feminina simplesmente à procriação e reservaram para a mulher uma função exclusivamente materna, retendo-a no espaço doméstico e, como figura secundária, vivendo à margem do processo, sem autonomia para traçar os seus caminhos – realidade também impressa poeticamente por Gilka Machado, em seu primeiro livro:
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida: a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea
e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida trsite, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e oh! Atroz, tantálica tristeza!
Ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
(“Ser mulher”, p. 56)
 
O poema constrói-se com base na antítese entre o desejo de liberdade da mulher e a prisão que lhe oferece a sociedade machista; entre a busca da completude no “companheiro” e o encontro da sustentação da incompletude, na figura de “um Senhor” (dono, proprietário, amo, patrão, repressor e agente do isolamento).
Embora ainda ligado à idealista matriz romântica (principalmente nas imagens do “infinito” e na retórica sentimental e exclamativa), os versos trazem, em imagens vigorosas, a crítica social.
A situação de dependéncia e o sentido de punição, caracterizadores da realidade que se oferece à mulher, são enfatizados pelo jogo das aliterações de “… atroz, tantálica tristeza”, jogo que ressalta a opção poética pela imagem rara, como forma de melhor simbolizar a impossibilidade de realização feminina, na referéncia mítica a Tântalo.
“… cujo suplício, por haver roubado os manjares dos deuses para dá-los a conhecer aos homens, era estar perto da água, que se afastava quando tentava bebé-la, e sob as árvores que encolhiam os ramos quando tentava colher os frutos.”
Gilka Machado parece-nos querer mostrar nas entrelinhas que, além da auto-repressão (interna) resultante da ação do superego, auto-repressão que caracteriza o psiquismo humano (conforme postulou Freud), além dos efeitos de uma repressão externa, imposta a todos pelo conjunto de preceitos religiosos e sócio-econômicos; a mulher sofre ainda uma carga repressiva maior, pelo fato de que as leis sempre foram feitas pelo homem.
Lembra-nos Lúcia Castello Branco que o elemento feminino, impulsionado pelo vigor de Eros, ameaça sempre veladamente a ordem social, remetendo essa referéncia ao discurso de Aristófanes, no Banquete, de Platão, ao narrar a partição dos andróginos:
“Dos seres bipartidos de Aristófanes, a mulher foi aquele que conservou maior parentesco com sua situação anterior de androginia. Durante a gestação, a mulher revive, ainda que temporariamente, a totalidade que lhe foi roubada por Zeus: é completa e “redonda” como os seres originais de Aristófanes. Alem disso, a gestação lhe permite o contato íntimo com a origem e, paradoxalmente, com a morte: é somente através da “morte” do óvulo e do espermatozóide que se origina nova vida; é somente através da “morte” de seu estado de completude que o filho pode nascer. A mulher carrega, portanto, a capacidade natural de experienciar a totalidade e a fusão com o universo e de viver temporariamente sob os desígnios de Eros.”
Não devemos nos esquecer também, conforme nos adverte Marcuse, de que “… no mundo de Prometeu, Pandora, o princípio feminino, sexualidade e prazer, surge como maldição – desintegradora, destrutiva” –, observação que reflete, simbolicamente, a depreciação, pela sociedade patriarcal, da capacidade construtiva da mulher, como forma, entre outras, de defesa de um espaço, que o homem sempre quis reservar para si próprio – estratégia de manutenção do seu domínio.
Com a crescente participação da mulher no trabalho assalariado e em outros setores da vida pública (decorréncia da expansão das chamadas liberdades burguesas), ela vem, no entanto, progressivamente conscientizando-se de sua própria força; o que se dá, simultaneamente, pela progressiva descoberta de uma nova relação com o corpo e com o prazer. Essa simultaneidade fica mais clara quando compreendemos, com Bataille, que, pelo erotismo se transforma a atividade meramente sexual (esta concernente a todo animal) em “uma busca psicológica”, em um momento de questionamento do ser, configurando-se, assim, o erotismo, como um aspecto da vida interior do ser humano, que é sempre vivenciado como transgressão e como uma experiéncia de crescimento e enriquecimento.
No exercício erótico de sobreposição da transgressão à proibição, a mulher vai investir, fortemente, na busca de constituição de sua identidade. Isto porque, como já tivemos oportunidade de ressaltar, “O autoconhecimento (erótico) leva ao conhecimento do outro e do mundo e à consciéncia do poder de transformá-lo com vontade própria”. Assim, a ruptura com o modelo dominante (da superioridade do masculino), ao se dar no espaço da experiéncia erótica (no direito ao prazer e não na obrigação de procriar), dá-se também no espaço social (na ação da mulher, enquanto construtora da sociedade).
A libertação do corpo feminino vem agenciando uma liberação da linguagem. A transmissão poética do erotismo feminino, através de uma percepção também feminina, vem-se impondo como uma manifestação da face contestadora da literatura. Poeticidade e emancipação feminina, poesia erótica e denúncia social tém-se associado, “no projeto de construção individual e social da mulher, des-mitificando o condicionamento redutor”, projeto fortemente alicerçado, no Brasil, por Gilka Machado, de cuja obra, a partir daqui, ressaltaremos Meu glorioso pecado, conforme anunciamos no início deste ensaio quando, motivados pelo título, decidimos antecipar em diálogo com a poetisa, algumas observações teóricas.
No poema de abertura do livro já se configuram, nitidamente, imagens da conexão erótica, da fusão dos corpos e o forte desejo de conhecimento, aparecendo-nos este desejo como inquietações próprias de um “eu” feminino, desafiado ainda pela presença incógnita do outro:
Quem és tu que me vens, trajando a fantasia
do meu sonho sonhado em vinte anos de dor?!
Quem és tu cujo olhar de chama desafia
todo o meu raciocínio e todo meu poder?!
De tal modo teu corpo ao meu corpo se alia,
que chegamos agora a um só todo compor;
e em vão te olho do rosto a máscara sombria,
na ânsia de te sentir a verdade interior.
Quem és tu? – nada sei! Nesta paixão de um dia.
As eterizações do ambiente embriagador,
perco-me a te buscar, numa doce agonia…
Quem me dera, nesta hora, a ti mesmo transpor,
e ver, de ti no fundo, esse alguém que me espia,
dentro do carnaval desta noite de amor!…
(“Quem és tu que me vens, trajando a fantasia”, p. 159)
 
De início convém ressaltar, na primeira estrofe, a presença de um dos sinais anunciadores do erotismo mais valorizados no discurso poético gilkiano: o “olhar”; aqui aparecendo como símbolo do desafio vivido pelo “eu”, para conhecer a “verdade interior” do parceiro, que se mostra através de uma “máscara sombria”. É nítida, portanto, a busca de conhecimento de si mesmo e do outro que integra a atividade erótica. E também por isso vem sendo o erotismo tão explorado na poesia de autoria feminina, em nossos dias.
A segunda estrofe, mantendo o posicionamento da primeira, ressalta o desejo de completude e unidade caracterizador da atuação de Eros e negado à mulher, como forma de controle social.
Para além do caráter individualizador da cena amorosa poematizada, os dois tercetos finais do poema remetem-nos para a ânsia de “transpor/e ver…” ações fundamentais no feminismo nascente.
Do soneto seguinte, assomam, principalmente, dois ângulos da questão feminina. Ainda se marca textualmente a superioridade masculina, porém já se projeta a consciéncia das potencialidades femininas reprimidas – um pequeno avanço, embora apoiado em idealizações:
 
Mal assomou à minha ansiosa vista
o teu perfil que invoca o dos rajás
senti-me mais mulher e mais artista,
com requintes de sonhos orientais,
Do teu amor à espléndida conquista,
minha carne e minha alma são rivais:
far-me-hei a sempre inédita, a imprevista,
para que cada vez me queiras mais.
Feitas de sensações extraordinárias,
aguardam-te em meu ser mulheres várias,
para teu gozo, para teu festim.
Serás como os sultões do velho oriente,
só meu, possuindo, simultaneamente,
as mulheres ideais que tenho em mim…
(“Mal assomou à minha ansiosa vista”, p. 159-150)
 
A possibilidade de ser “mais mulher”, através de uma maior exploração dos sentidos, nos aparece como o eixo condutor das imagens do poema.
Não apenas ser conquistada, já é uma mudança de ponto de vista. A fragilidade desse projeto se enuncia, no entanto, quando o “gozo” e o “festim” são tão-somente ofertados ao homem (veja o possessivo “teu”) e não textualizados como experiéncia compartilhada. O “serás… só meu” se vé enfraquecido, pelo fato de que o parceiro mantém os direitos do possuidor.
Se por um lado a mulher procura libertar as suas múltiplas faces no ato da conquista amorosa (“aguardam-te em meu ser mulheres várias”), por outro lado guarda os traços da submissão (“Para teu gozo, para teu festim”). Habituada à sujeição masculina e à obediéncia aos ideais de castidade, o fazer-se “sempre inédita” e “imprevista” pode hoje ser lido por nós como um contraditório avanço. Daí, tantas vezes, em que o erotismo se registra poeticamente por formas mais audaciosas, ele se apresentar em sonho. E não é este, segundo Freud, “a realização de desejo… sob a dominância do princípio do prazer…”? Vejamos como essa atitude se estrutura liricamente em um trecho do poema “Há lá por fora um luar:
 
(…) Não é noite nem dia,observo, com surpresa,
uma triste alegria
em toda a natureza
medita bem que paradoxo no ar,
que dolorosa orgia
em que a alma peca com vontade de chorar!
Em que há quanto prazer, em que há tortura quanta,
em que, sem te possuir, sou toda tua…
O meu amor por ti é uma noite de lua
misto de ódio e paixão com que repilo e quero
todo o teu ser do modo mais sincero,fugindo-te e sonhando, a cada instante,palpitante de gozo
meu corpo amado e amante
ao teu abraço cálido e nervoso.
(“Há lá por fora um luar”, p. 161)
 
Alicerçadas no romântico emblematismo da natureza, as imagens desenham uma mulher dividida entre o desejo e a sua rejeição. Por isso, como “em toda a natureza”, ela localiza em si mesma uma “dolorosa orgia”, que reúne, contraditoriamente, o “prazer” e a “tortura”, a “alegria” e a “tristeza”, o “ódio” e a “paixão”. Por isso, também, é no sonho que ela ousa viver as palpitações do “gozo” e a participação ativa do seu corpo “amado e amante”. Fica, entretanto, nas origens daquela divisão, o sentido do pecado, a que Gilka Machado refere-se, explicitamente, no sétimo verso citado.
A consciéncia poética da sofrida divisão se constrói mais fortemente em:
A que buscas em mim, que vive em meio
de nós, e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio,
trago-o no sangue assim como uma tara.
Dou-te a carne que sou… mas teu anseio
fora possuí-la – a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio,
essa que tão somente astros encara.
Porque não sou como as demais mulheres?
sinto que, me possuindo, em mim preferes
aquela que é o meu íntimo avantesma…
E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival que os dias me acompanha,
para ruína gloriosa de mim mesma!
(“A que buscas em mim, que vive em meio”, p. 164)
Numa sociedade que tem, como um dos pilares, a dessexualização da mulher, com a experiéncia da castidade e ataque aos comportamentos considerados imorais, é perfeitamente inteligível que a carne e o espírito não se conciliem. E que, como vimos poetizados acima, os desejos do corpo feminino sejam observados, sentidos e tratados como “tara”.
O poema imprime, com nitidez, uma supervalorização do espírito, ressaltando-se, na segunda estrofe, a figura da mulher ideal, moldada pelo patriarcalismo: a que só deve ter olhos para as coisas do céu, deixando que, na terra, decida e governe o homem.
O fato de não corresponder ao modelo machista aparece, então, como “ruína gloriosa”, que liga, mais uma vez, paradoxalmente, os sentidos de vitórias e derrotas, avanços e recuos da mulher, na luta pela constituição de sua identidade.
Em vários outros momentos, porém, o discurso poético traz-nos a assunção, sem restrições, de um “erotismo ardente”, vivido ativamente pela mulher.
Embora dos teus lábios afastada
(Que importa? – tua boca está vazia…)
Beijo esses beijos com que fui beijada,
Beijo teus lábios, numa nova orgia.
Inda conservo a carne deliciada
pela tua carícia que mordia,
que me enflorava a pele, pois,
em cada beijo dos teus uma saudade abria.
Teus beijos absorvi-os, esgotei-os:
Guardo-os nas mãos, nos lábios e nos seios,
numa volúpia imorredoura e louca.
Em teus momentos de lubricidade,
beijarias outros lábios, com saudade
dos beijos que roubei de tua boca.
(“Embora dos teus lábios afastada”, p. 170-1)
 
Aí, não mais se leva em conta a aprovação da sociedade nem, como no poema anterior, o que o parceiro repressor espera ou não da mulher; textualizando-se, então, o intenso gozo experimentado por ela, com todo o transbordamento, o desequilíbrio e a desordem, caracterizadores da paixão. E não falta, sequer, a inscrição da volúpia, favorecida pelo esgotamento, na vivéncia do excesso.
A figura feminina, tantas vezes submissa e arrependida de uma pequena ousadia, é agora substituída por outra, que sabe o que quer e age por vontade própria.
Gilka Machado já projeta nos seus versos, apesar dos preconceitos de toda ordem, uma nova mulher, capaz de deixar, no parceiro, as marcas de sua passagem. E é importante notar a mudança de perspectiva, ao apresentar-nos ela o homem como objeto de desejo. Vejamos um exemplo:
(…)
Teus cabelos embriagam-me o desejo
e são tão úmidos e doces
como favos de mel para meu beijo.
(…)
Dá-me tua cabeça e me persuade,
tendo-a, que tenho nos meus braços presa
a carne flâmea da Felicidade!
pois se no teu cabelo as mãos deponho,
sinto nele palpitar, entre meus dedos,
a plumagem das asas do meu Sonho.
(“Negra, desse negror belo e medonho”, p. 173-4)
 
Merece destaque, no trecho selecionado, o fato de estar ligada a imagem da realização erótica à vivéncia da liberdade (na simbologia das “asas” do “sonho”); ligação bastante sintomática, quando nos reportamos ao fato de que as restrições impostas à mulher pelas correlações de forças repressivas foram sempre feitas, principalmente, a partir de um controle do corpo e suas sensações. É ainda, por isso, também muito significativo que a “Felicidade” (grafada com maiúscula) se apresente corporificada e chamejante (“a carne flâmea da Felicidade!”) a remeter para o clímax do erotismo.
A entrega total da mulher à prática amorosa e à fruição dos prazeres, que constituem os momentos de maior liberação no discurso gilkiano, ganham grande intensidade literária, ao se constituírem através da recriação da comunhão cósmica, que elimina os limites entre o ser humano e a natureza, como no último terceto de:
 
Beijas-me tanto, de uma tal maneira,
boca do meu Amor, linda assassina,
que não sei definir, por mais que o queira,
teu beijo que entontece e que alucina!
Busco senti-lo, de alma e corpo, inteira,
e todo o senso aos lábios meus se inclina:
morre-me a boca, presa da tonteira
do teu carinho feito de morfina.
Beijas-me e de mim mesma vou fugindo,
e de ti mesmo sofro a imensa falta;
no vasto vôo de um delíquio infindo…
Beijas-me e todo o corpo meu gorjeia,
e toda me suponho uma árvore alta,
cantando aos céus, de passarinhos cheia…
(“Beijas-me tanto, de uma tal maneira”, p. 175-6)
 
As imagens gilkianas, ao unirem “alma e corpo” e ao registrarem a derrota da razão pela emoção, nos remetem, mais uma vez, para as lições de Georges Bataille: a conexão erótica, que não pode ser confundida com a busca animal da reprodução, é uma experiéncia do espírito, provocada pela matéria humana, pela carne, através de libertação dos órgãos pletóricos:
 
“(…) cujos cegos movimentos prosseguem para lá da vontade reflectida dos amantes. A essa vontade reflectida sucedem-se os movimentos animais dos órgãos entumecidos. Uma violéncia, que a razão já não controla, anima esses órgãos, conduzindo-os ao orgasmo e à imensa alegria de ceder à força dessa tempestade.”
Inscritos nos versos, o excesso e o transbordamento, aos quais conduz o erotismo, já não configuram a carne com inimigo, o que ocorre sempre que se é obcecado pela proibição cristã. A escrita literária, centrada na vivéncia da liberação do corpo feminino, aponta, então, para um dos caminhos de construção da identidade e de afirmação social da mulher: o caminho da fruição do prazer, como forma de descobrir-se e de descobrir o mundo, fortalecida pelo respeito à sua individualidade e à igualdade de direitos. Esta igualdade já se estrutura, quando a mulher é recriada por Gilka Machado como amada e amante (veja o poema antes abordado: “Há lá por fora um luar”). E bem pode ser a responsável pela visualização do homem e da mulher através de uma mesma metáfora. A imagem da “árvore”, por exemplo, do poema citado anteriormente, retorna para a figuração masculina:
 
Meu amor, como sofro a volúpia da terra,
atravessada pelas raízes!…
É s minha árvore linda,
aos céus abrindo as asas de esperança,
na gloriosa ascensão da mocidade.
Ninguém compreenderá a delícia secreta
das nossas núpcias profundas.
Quanto mais avultares, mais subires,
mais mergulhares em mim.
Aguardei-te longos anos,
com a mesma avidez da gleba pela semente…
tive-te em minhas entranhas, transfigurei-te:
és folha, és flor, és fruto, és agasalho, és sombra…
Mas vem do meu querer inviso e obscuro,
quanto prodigalizas ao desejo
dos que te gozam pela rama.
(…)
(“Meu amor, como sofro a volúpia da terra”, p. 182)
A metaforização telúrica, que sustenta a construção do poema, começa por compor a imagem do gozo feminino e prossegue desenhando a figura do amante, na qual se ressaltam não só a beleza física, mas as qualidades espirituais (“agasalho”, “sombra” – na última estrofe citada).
A terceira estrofe remete-nos para a indicação batalliana da abertura para a continuidade, no erotismo, através de “comportamentos secretos que nos dão o sentimento da obscenidade”, entendida esta como uma “perturbação que tranforma um estado dos corpos conforme a posse de nós por nós mesmos, à posse da individualidade durável e afirmada.”
No poema, esse aspecto do erotismo se projeta na imagem da “delícia secreta”, que se realiza pela vivéncia do esbanjamento o qual, na última estrofe do trecho citado do poema, guarda a marca do excesso, mobilizador de Eros.
O querer mais dos amantes é também a referéncia implícita na quarta estrofe, referéncia estruturada no jogo dialético entre elevação e penetração. Amplia-se a intensidade do gozo, ao se ampliar o afastamento entre os corpos, uma vez que este afastamento será promotor de um mergulho mais profundo, de uma conexão mais completa.
Outra marca gilkiana, que nos exige registro crítico, é a aproximação entre o exercício erótico e o fazer poético. No poema a seguir, essa aproximação agencia o trabalho, com um elemento-imagem comum a ambos: a “língua”, enquanto fonte de prazer e de poesia, ora “sensação”, ora “idéia”.
 
Lépida e leve,
em teu labor que, de
expressões à míngua,
o verso não descreve…
lépida e leve,
guardas, ó língua, em teu labor,
gostos de afago e afagos de sabor.
É s tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesma acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente
como rítmica serpente,
e se faz menos rudo
o vocábulo, ao teu contato de veludo.
Dominadora do desejo humano,
estatuária da palavra
ódio, paixão, engano, desengano,
por ti que incéndio no Universo lavra!…
É s o réptil que voa
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes, solta, à toa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de teu agrado.
Sol dos ouvidos, sabiá do tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato
te hão deixado o louvor, a exaltação!
– Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
– Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
(…)
Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me vestes quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha…
(…)
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
Amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases que proferes
nos silêncios de Amor!…
(“Lépida e leve”, p. 178-179)
Com apoio em forte recorréncia sonora (o poema se constrói através de aliterações e rimas), vai-se estruturando musicalmente o erotismo, ao mesmo tempo em que se inscreve, nos versos, a autoconsciéncia do trabalho terário, interando-se o prazer de sentir e o prazer de construir.
Esses prazeres, atiçando todos os sentidos, começam por fazer confundir, na imagem central do poema, a “língua”, ora o paladar e o tato (“gostos de afago e afagos de sabor”), ora o tato e a audição (“Sol dos ouvidos”, “sabiá do tato”). Em sua configuração, são também convocados, isoladamente, o táctil (“tateio de alucinação”) e o visual (“réptil que voa”) ou, simultaneamente, o visual e o auditivo (rítmica serpente” e “carne de som”). Com essa simultaneidade, intensifica-se a tensão entre a consciéncia terária do erotismo e a consciéncia erótica do terário, aparecendo a “língua”, no poema, como elemento criador dessa tensão, uma vez que é responsável tanto por “formosos poemas”, quanto por “carícias supremas”.
Possuidora de todos os sentidos, a “língua” detém ainda o poder de transmitir sentimentos opostos (“ódio, paixão, engano, desengano”), quer no contato físico, quer na omissão da palavra.
Na sexta estrofe citada, intensifica-se a reflexao sobre o ato de criar poesia, ressaltando-se, aí, o poder de sedução da palavra e a confecção do texto como um tecido, que deve ter a perfeição da teia de “habidosa aranha”, para isso resultando de um total envolvimento do criador com a coisa criada, de uma relação amorosa do poeta com o poema. E é importante observar que, no ato de confundir-se com a palavra, a mulher, através do “eu” do discurso, projeta-se como “frase”, capaz, portanto, de comunicar-se inteira, de ter um sentido completo. Parece-nos essa referéncia estar gada, sutilmente, à marcação explícita do feminino, integrante da última estrofe transcrita (“amo-te como todas as mulheres”), unindo-se, assim, o “eu” do discurso ao de todas as mulheres, gadas por uma causa comum: o direito de desfrutar, como todos os homens, inteiramente, do prazer, o direito de ser “frase” e não fragmento desta.
A poesia aparece também erotizada em Meu glorioso pecado, quando o elemento privilegiado do prazer são as “mãos”, ao fazerem “vibrar”, na “pele nua”, “inéditos poemas”:
 
Meu corpo todo, no silêncio lento
em que me acaricias,
meu corpo todo, às tuas mãos macias,
é um bárbaro instrumento
que se volatiza em melodias…
e, então, suponho,
à orquestral harmonia de meu ser,
que teu grandioso sonho
diga, em mim, o que dizes, sem dizer.
Tuas mãos acordam ruídos
na minha carne, nota a nota, frase a frase;
colada a ti, dentro em teu sangue quase,
sinto a expressão desses indefinidos
silêncios da alma tua,
a poesia que tens nos lábios presa,
teu inédito poema de tristeza,
vibrar,
cantar,
na minha pele nua.
(“Tuas mãos são quentes, muito quentes”, p. 177)
 
Aproximando, mais uma vez, a experiéncia do erotismo a uma realização musical (como em “Lépida e leve”), o poema liga a imagem da criação literária à da vivéncia da liberdade erótica. E valoriza, em ambas, a linguagem dos corpos e o “silêncio”, como o não dizer para dizer mais.
A ligação dos corpos e a participação da alma favorecem a expressão e ampliam o “vibrar” e o “cantar” da pele – ações que se complementam na opção poética de vida, textualizada. Essa opção é, antes de tudo, a da saída do isolamento e da busca de continuidade no outro; o que é favorecido pela ação de desnudar-se. A “pele nua” é a imagem da nudez dos corpos, mas é também e sobretudo a do desnudamento psicológico e existencial, a da abertura do ser, na vivéncia do “ser com”, identificador da humanidade, que só se realiza, plenamente, no existir compartilhado.
Essas reflexões sobre o fazer poético aliadas à temática erótica revelam, na poesia de Gilka Machado, a constituição da consciéncia crítica voltada não só para o ato de produzir versos, mas também para a construção da identidade da mulher que, pela livre fruição do prazer, dá um passo importante para a sua emancipação.
Meu glorioso pecado, como procuramos mostrar, embora ainda marcado pelo paradoxo entre a conquista da liberdade feminina e a permanéncia da submissão (contradição já indiciada no próprio título do livro), em muitos momentos aponta para uma nova mulher, capaz de sobrepor a transgressão à proibição, a fim de uma vivéncia real do erotismo e socialmente mais justa.
Gilka Machado, como poucas poetisas de sua época, faz da liberdade de expressão uma forma de libertar-se e de libertar a mulher, pela conscientização erótica, impressa, ousadamente, no verso. Revisitá-la, hoje, torna-se imprescindível, se quisermos investigar as limitações e os avanços do tema do erotismo na produção literária de autoria feminina, bem como reconstruir a caminhada da mulher, na luta pela emancipação.
 
Referéncias Bibliográficas
ALVES, Branca Moreira et alii. “Sexualidade feminina: algumas considerações sobre identidade sexual e identidade social”. Escrita/Ensaio, São Paulo, 5: 104-7, 1979.
AUGUSTA, Nísia Floresta Brasileira. Direito das mulheres e injustiça dos homens, trad. livre do original: Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft, 4. ed. Atualizada com intr., notas e posfácio de Constância Lima Duarte. São Paulo, Cortez, 1989.
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