LITCULT

Revista LitCult
ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





NOTÍCIAS DE UMA POESIA LÉSBICA EM LÍNGUA PORTUGUESA – Tatiana Pequeno




 

Tatiana Pequeno

 Universidade Federal Fluminense

 

Resumo: O presente artigo tenciona cartografar e problematizar algumas das escritoras que buscam, em seus trabalhos poéticos, colocar em pauta o desejo de mulheres por outras mulheres. É de nosso interesse verificar em que medida a locução de uma poesia lésbica admite não apenas uma pulsão desejosa mas assume riscos, enfrenta poderes e desloca as hegemonias da tradição. Esta, confrontada, reexamina e reelabora outros espaços para fora da normatividade, ou, melhor dizendo, da heteronormatividade. Se por um lado será importante apontar a reduplicação de uma condição marginal, na medida em que a sexualidade não-usual é escrita através de uma lírica melancólica, é possível também verificar que as estratégias de humor também serão encontradas, uma vez que tais modos de condução poética parecem ser utilizados como subversão de uma gramática afetiva. Serão utilizados como pressupostos teóricos as obras Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade (2012), de Judith Butler, Um corpo estranho, de Guacira Lopes Louro (2008), bem como outras obras fundamentais da teoria queer que puderem discutir a temática lésbica e suas representações na poesia de língua portuguesa.
 
Palavras-chave: poesia lésbica, literatura lésbica, estudos de gênero, literaturas de língua portuguesa.
 
Abstract: This paper aims at mapping and discussing some writers who to seek the desire for other women in their poetic work. It is our interest to verify to what extent the expression of lesbian poetry admits not only a personal drive but also that it takes risks, faces powers and displaces hegemonic tradition. The latter, when confronted, re-examines and re-elaborates other spaces beyond normativity, or rather, heteronormativity.  If on one hand it will notice the importance of reduplication of a marginal condition, when unusual sexuality is described through melancholy lyric poetry, on the other hand it is verifiable the existence of humor strategies that instigate new forms of poetry that subvert an affective grammar. This article will employ as its theoretical bases in the works by Judith Buther Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade (2012), by Guacira Lopes Louro in Um corpo estranho, de (2008), and others dealing with queer theory that discuss the lesbian theme and its representations in the poetry in the Portuguese language.
 
Keywords: poetry, lesbian literature, gender studies, Portuguese-speaking literatures.
 
Minicurrículo: Tatiana Pequeno é professora do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, onde coordena o grupo de pesquisas: “Corpo, gênero e sexualidades no contexto das literaturas de língua portuguesa”. É doutora, mestra e bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Também é autora de dois livros de poesia, tendo publicado Réplica das urtigas (2009) e Aceno (2014).
 


 
NOTÍCIAS DE UMA POESIA LÉSBICA
EM LÍNGUA PORTUGUESA
 
 
 
Tatiana Pequeno
 Universidade Federal Fluminense
 
Mas quem aceita como saber que se difunda
palavra de mulher que, ainda mais, é pesada?
 
Novas cartas portuguesas
 
 
Lidar com a perspectiva de uma literatura lésbica – isto é, uma literatura cuja temática é a representação da homossexualidade feminina – no âmbito luso-afro-brasileiro é significativamente complexo. Primeiro porque as três referências locais anteriormente mencionadas dizem respeito não apenas a um mapeamento geográfico, mas sobretudo porque mencioná-los obriga a uma responsabilidade cultural, isto é, expõe diferenças na própria concepção harmoniosa e bem-intencionada da lusofonia, uma vez que a expressão literária em língua portuguesa exibe uma tensa rede de problemas endógenos nos variados contextos africanos, no contexto brasileiro e no português. Segundo porque mesmo sob o tronco da ideia de Nação, seria inapropriado e inverídico acreditar que a lesbiandade pode ser representada de uma única forma mesmo porque – e aqui já se verifica a terceira dimensão da complexidade dessa representação – especialmente a homossexualidade feminina redobra a marca de silêncio que recai sobre tudo o que compõe a própria história da mulher.
A essa história coube e cabe a posição demérita de estar fora ou articuladamente inapropriada ao universo das epistemologias: a ausência, a anulação ou a diminuição dos papéis femininos nas instâncias que permeiam e fazem a cultura e seus saberes. Judith Butler, em entrevista às holandesas Meijer e Prins (BUTLER, 2002, p. 3), entende tal assujeitamento como uma forma de “viver nas regiões sombrias da ontologia” e que, por essa razão, é chegado o tempo de reelaborar as estratégias discursivas de tratamento do gênero e da sexualidade. Diz a pesquisadora americana:
 
Meu trabalho sempre teve como finalidade expandir e realçar um campo de possibilidades para a vida corpórea. Minha ênfase inicial na desnaturalização não era tanto uma oposição à natureza quanto uma oposição à invocação da natureza como modo de estabelecer limites necessários para a vida gendrada. Pensar os corpos diferentemente me parece parte da luta conceitual e filosófica que o feminismo abraça, o que pode estar relacionado também a questões de sobrevivência. A abjeção de certos tipos de corpos, sua inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade, manifesta-se em políticas e na política, e viver com um tal corpo no mundo È viver nas regiões sombrias da ontologia. Eu me enfureço com as reivindicações ontológicas de que códigos de legitimidade constroem nossos corpos no mundo; então eu tento, quando posso, usar minha imaginação em oposição a essa ideia (BUTLER, 2002, p. 3).
 
Será, portanto, fundamental, ao menos para este trabalho, verificar em que medida a poesia escrita por mulheres, ao tratar de representar algo que desafia o paradigma da heteronormatividade, pode assumir novos espaços no discurso, bem como protagonizá-lo na sua formulação simbólica crendo numa aposta de reinvenção desses mesmos códigos de inteligibilidade.
Para esta apresentação não pretendo, no entanto, enfrentar tais questões no contexto das literaturas africanas, uma vez que a referida complexidade assumida no início deste texto é potencializada pelos procedimentos culturais de velamento da lesbiandade nas culturas de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, o que acaba por exigir uma argumentação mais demorada, o que o tempo da presente oportunidade não pleiteia. A meu ver, entretanto, a poesia de Paula Tavares abriria brechas para um enfrentamento literário desses problemas, por exemplo, mas, aqui, não trataremos de tais procedimentos. Nesse sentido, gostaria de apontar que o presente texto é, também, fruto de meu trabalho de pesquisa desenvolvido na Universidade Federal Fluminense, cujo objetivo principal é ler criticamente a literatura produzida a partir de 1969 com temáticas de gênero e sexualidades femininas em questão.
Considero 1969 um ano decisivo porque não só é uma consequência cronológica imediatamente ao turbulento ano de 1968 e suas revoluções culturais, mas também porque é o ano de publicação, em Portugal, de Maina Mendes, de Maria Velho da Costa, livro que, dentre outras coisas, ficcionaliza o problema do silêncio no/para o universo feminino e obra que estabelece relação direta com o algo que leio obsessivamente há quatro ou cinco anos: as Novas cartas portuguesas. Entretanto, em conversas com colegas da área de Literatura Portuguesa, costuma aparecer uma pergunta que penso ser delicada: “Mas você não acha que as Novas cartas portuguesas são um texto empenhado demais, o que faria com que a Literatura perdesse espaço para um ativismo exacerbado?”
Mas e as Novas cartas portuguesas? E a poesia que pretendo discutir? Minha proposta teórica é de que a escrita das Novas cartas portuguesas funcionaria, em alguma medida, como texto estruturante no processo reivindicatório do lugar do feminino no universo da literatura luso-afro-brasileira. O que compreendo por inovador e singular nas NCP é exatamente a sua proposição ativista que sugere uma reconfiguração do conceito de literatura a partir de uma escrita reivindicatória no feminino, o que não quer dizer que não se reconheça a monumentalidade de obras de Júlia Lopes de Almeida, Judith Teixeira, Gilka Machado, Noémia de Sousa, Alda do Espírito Santo, Ana Cristina César, Paula Tavares, Luiza Neto Jorge e Conceição Lima e Ana Luísa Amaral, por exemplo, no século XX. De todo modo, o que proponho, é que o livro das “três marias” operacionalizaria uma guinada histórica e objetiva que colocaria em xeque até mesmo o projeto de qualquer Literatura que se queira “Maior”, “Pura”, “Alta” ou “Depurada” ou que pressuponha a hipervalorização do significante em detrimento dos significados. Neste sentido, a importância das NCP se evidencia, pois ela atualiza o lugar da própria literatura no século XX. Ao hibridizar os gêneros em cartas, pequenas narrativas, poemas, textos de caráter ensaísticos ou de manifesto, as três autoras abrem um precedente literário (e inclusive jurídico) para que outras mulheres reivindiquem o local da autoria, estabelecendo um contraponto – um contradiscurso – em relação à especificidade do cânone e seus sentidos de representação.
Essa atitude de reivindicação costuma ser, no entanto, mal recebida. É neste sentido que a americana Annette Kolodny verifica, em seu livro Dancing Through the Minefields: Some Observations on the Theory, Practice, and Politics of a Feminist Literary Criticism  (1980), a dificuldade de compreensão da crítica feminina/feminista:
 
Ao invés de serem bem-vindas ao trem, entretanto, nós temos sido forçadas a negociar em um campo minado (…) se nós somos acadêmicas dedicadas a redescobrir um corpus perdido de textos escritos por mulheres, nossos achados são questionados esteticamente. E se nós somos críticas, determinadas a praticar leituras revisionistas, é dito que nosso foco é muito estreito, e que nossos resultados são apenas distorções de, ainda pior, más interpretações polêmicas (KOLODNY, apud AUAD, 2014, p. 153).
 
Com efeito, a argumentação de Kolodny demonstra que a crítica tradicional não só desprestigia a crítica feminista (e a crítica queer ou a crítica mais assemelhada aos estudos culturais) pelo fato de estas últimas desativarem o estatuto hegemônico de sua permanência, o que é evidentemente visto com antipatia pela maioria (no sentido sociológico) que o cânone representa: uma cultura ocidentalmente branca, de origem ou influência europeia, masculina e heterossexual, vide o ressentimento apontado por Harold Bloom a respeito do Cânone Ocidental. Ainda que pareça desnecessário dizer isso num ambiente acadêmico, é importante ressaltar que a proposta da crítica feminista/queer e ou da literatura feminista/queer não é a destruição irrestrita e radical da literatura e crítica canônicas. O que se deseja a partir dessas perspectivas de estudos e produções estéticas é questionar a singularidade da voz, isto é, procurar construir espaços mais plurais capazes de receber aquilo que se inscreve pela e/ ou na diferença.
 

  1. Da poesia Em nome do corpo

Quantos de nós já ouvimos falar de uma literatura feminina em língua portuguesa que pusesse em xeque a heterossexualidade ou até mesmo as tradicionais concepções de gênero? Seríamos capazes de listar ao menos cinco autoras para quem a dimensão da sexualidade ativasse uma crise ou o seu processo de criação?
Como se sabe, as Novas cartas portuguesas são um livro de constituição híbrida e plural em todos os seus aspectos: a sua concepção enquanto objeto textual evidencia, na autoria, uma construção de seis mãos, na medida em que três são as autoras, além disso, a potencialidade dos gêneros textuais presentes no livro é igualmente diversa. Estas proposições estéticas dialogam contemporaneamente com conceitos importantes do feminismo como o de sororidade, que seria a capacidade de mulheres serem solidárias a elas mesmas. A partir disso, caberia lembrar também que Maria Velho da Costa, Maria Tereza Horta e Maria Isabel Barreno parecem estar decididamente cientes, para o universo feminino, dos conflitos e problemas existentes nas ideias de herança e legado. Cito:
 
Por que me chamo de rebento extemporâneo e filosófico desta linhagem feminina? Por despeito, por raiva, por impotência? Que fizemos nós todas? Nada. Mariana começou; Mariana veio afirmar seus direitos? Duvido. Mariana apenas rompeu a hipocrisia e dela se queixou. (…).
Não, Mariana nem isto gritou; apenas disse “aqui estou eu, possuída pelo amor”. Levantou-se um murmúrio “que lindo é o amor de mulher, ah! mas porquê escondê-lo debaixo de tanto respeito e conveniência, não convirá mais aproveitá-lo? Quem teme esta mulher, tão à mercê do amor?” Desenhou-se, gigantesca, a figura de Mariana sobrinha; rebento extemporâneo também; onde foi buscar tal saber? Com ela me identifico; e apesar de seu saber e de sua palavra, que outra coisa foi senão mulher, que escreve diário e uma carta? Quanto ao resto bordou e teve filhos; com que solidão. O seu diário é uma rocha; não, é antes única quebra de seu silêncio, único local possível para a sua palavra, mas por isso, pedra. Que dizia ela? “A vida de uma mulher é toda como um parto; acto solitário e doloroso, escondido, arredado dos olhos de todos em nome do pudor. O pudor é uma nostalgia, serve para fingir que estão mortos os vivos demasiado incômodos (BARRENO, COSTA & HORTA, 1974, p. 177-178, negritos nossos).
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É disso que quero tratar. Dessa história da literatura no feminino e em língua portuguesa. É dessa forma que a compreensão do legado deixado pelos “rebentos extemporâneos” anteriores que vai se delineando e se reescrevendo uma nova tradição do feminino que prescinde dos silenciamentos. Creio, dessa forma, que foi só a partir da atividade desenvolvida pelas três figuras vivas demasiado incômodas que até hoje têm seu livro questionado pelos valores estéticos hipoteticamente perdidos que Manuela Amaral, Adília Lopes, Isabel de Sá, Helga Moreira, Maria Sousa, Ana Luísa Amaral e Margarida Vale de Gato, por exemplo, puderam publicar o que escreveram.
E indo ao encontro desta hipótese de legado, é que considero Em nome do corpo, livro de Isabel de Sá, de 1986, em que se verifica uma enunciação interessada em sugerir (às vezes evidenciar deliberadamente) relações entre mulheres, um texto fundamental para driblar as estratégias de construção e definição do cânone. Em outras palavras, estamos diante de uma poesia notadamente lésbica. Ciente da dificuldade dessa expressão em língua portuguesa, Isabel de Sá recorre a outros suportes estéticos para ensejar o seu lirismo lésbico.
Partindo daquilo que considero ser duas epígrafes (uma verbal e outra imagética), encontramos na primeira uma remissão à obra de Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, Le nouveau désordre amoureux, importante obra de 1977 que discorre sobre as revoluções afetivas e sexuais em curso a partir das revoluções culturais dos anos de 1960. A frase diz: “Hoje em que a pele é o que há de mais profundo, todas as exclusões são pronunciadas em nome do corpo” (SÁ, 1986, p. 7). Esta epígrafe, taxativa em sua proposta de deixar claro que o corpo e a pele serão, neste livro de poemas, de sujeitos excluídos. O que penso haver de mais interessante neste trabalho, para além da coragem de Isabel de Sá, é uma espécie de recado à crítica. Pois a segunda epígrafe desta obra nada mais é que um desenho de Graça Martins. Imagem que, a meu ver, parece querer dizer: “Caso não tenham entendido ainda de que tratará este livro, a ilustração talvez ajude a concluir.” E para finalizar sua introdução, sob o título de “Começar”, aí assinada pela autora, lê-se: “Na penumbra os corpos tocam-se antes da sílaba inaugural. Começar é sempre um escândalo, é desviar a instituição da sua verdadeira finalidade e da sua inocência” (SÁ, 1986, p. 11).
O presente texto, pelos limites da sua extensão, não permite que possamos discutir de maneira mais aprofundada o que parece estar em jogo no prólogo desta poesia mas, de antemão, é digno de nota que o texto aponta para uma prática anterior aos procedimentos de escrita. Trata-se, vamos concluir depois da leitura, de uma escrita bastante consciente de sua relação de desvio da heteronormatividade. Algo, entretanto, me incomoda neste começo, provavelmente porque leio este livro em 2014, 2015 e não em 1986, no contexto de sua produção. Falo sobre “desviar a instituição da sua verdadeira finalidade e da sua inocência” (SÁ, 1986, p. 11). A que instituição Isabel de Sá se refere? À Família? À Literatura, com L maiúsculo? De qualquer forma, fica a pergunta: qual seria a verdadeira finalidade das instituições? (Qual é a finalidade da crítica acadêmica? Por que as Novas cartas portuguesas não seriam Literatura?)
De todo modo, é importante que se diga que as tradições não foram de todo abolidas na poesia de Isabel de Sá. Os textos, organizados a partir da proposta dos poemas em prosa, apontam para uma certa narratividade em que se apresentam três instâncias nucleares que movimentam estas narrativas líricas: um “eu”, um “ela” e o nascimento de uma escrita urgente, capaz de tratar desse encontro fulminante e arrebatador. Como se a escrita estivesse a serviço de uma devoção ao sentimento que, conectada à sua tradição, sabe dos riscos de qualquer sistema de vassalagem amorosa.
Se vimos que em Isabel de Sá o desenho de Graça Martins alude à temática da poesia de Em nome do corpo, é preciso também reconhecer que a resistência da poesia, para lembrar Jean-Luc Nancy, está mantida. Porque apesar destes poemas estarem inscritos a partir de uma certa coloquialidade, aqui evidenciada por conta dessa narratividade lírica, é tensa e rara a dicção dessa arte erótica feminina: “(…) Aproximara de mim o gesto, vigoroso, ao prender-me a mão entre os seus dedos deixando uma impressão de queimadura (…). Ela tomava-me o corpo num abraço voluptuoso, feminino. Eu era a figura ambígua de encontro ao seio onde a palavra renascia” (SÁ, 1986, p. 19).
A rigor, é possível comprovar um lesboerotismo no trecho anteriormente lido? Não sei se a poesia precisa comprovar alguma coisa, mas minha experiência diz que ela se constrói a partir de uma estrutura subjetiva, e portanto pretensamente singular do humano. O abraço voluptuoso do poema é feminino. O que é esse feminino, nesse caso? Seria para caracterizar que neste abraço estão implicadas duas mulheres? Ou para dizer que nesta volúpia esse desejo é marcadamente feminino? De todo modo, o poema reitera de maneira tensa que o gênero é uma questão. “Eu era a figura ambígua de encontro ao seio onde a palavra renascia” (SÁ, 1986, p. 19) não é um final simples. Sugere ao menos duas possibilidades para a minha leitura: ser essa figura ambígua permitiria compreender uma dissociação da representação tradicional com que sujeitos do gênero feminino têm de passividade, doçura, sensibilidade, submissão. Digo isso porque a teoria queer nos ensina que para compreender as sexualidades é fundamental compreender os papéis sociais de gênero. E Isabel de Sá, em 1986, parece um pouco consciente dessas clivagens. A dimensão da ambiguidade aparece em outros poemas do livro, como por exemplo em “Sedução” e “Cumplicidade”, em que diz “Uma rapariga que pelo corte de cabelo e estilo de conjunto parecia um cavaleiro da Idade Média. No olhar foi-me dado entender que ela fazia a vassalagem do amor” (SÁ, 1986, p. 13). A outra possibilidade de leitura que entrevejo na categoria da “figura ambígua” seria exatamente no sentido da angústia da dicção. Como se esta imagem se opusesse ao peito eloquente onde a palavra opera. Neste sentido, a figura ambígua seria marca de um contradiscurso ou de uma subjetividade ainda incapaz de compreender a erótica em questão.
Por outro lado, é importante observar que nessa dificuldade, a poesia insiste. Insiste em tratar do desejo, sobretudo: “Eu morria de tanto desejo contido nesse corpo. Que fazer senão amá-la, expulsar meu desespero, ser mãe e amante na inconsciência total do momento? O poema surpreendia-me. Impossível esconder o rosto ou fugir ao tumulto” (SÁ, 1986, p. 28). Ou seja, verificamos nessa dialética (mostrar o rosto/esconder o rosto/sujar o rosto/dar o rosto) de Isabel de Sá, autora de um livro posterior chamado O avesso do rosto, que a dimensão do lesboerotismo e da homoafetividade lésbica acabam por resolver na tensão da poesia ou só a poesia pode(ria), inicialmente, dizer esta gravidade (ser mãe e amante na inconsciência total do momento) que é subverter a ordem dos discursos sobre a heteronormatividade.
Mas, e no caso da literatura brasileira, sistema que estabelece com a cordialidade um traço predominantemente cultural, em que medida seria possível falar de uma poética capaz de enfrentar a norma da submissão e a ética do pudor a que parte do trecho anteriormente citado das Novas cartas portuguesas nos lembra?
A rigor, seria conveniente apontar que na proto-história de uma poesia lésbica brasileira encontraríamos em A queda para o alto, de Herzer, um texto fundamental para a ativação de qualquer estrutura que deseje considerar o binômio gênero-sexualidade em sua crítica. Para tanto, seria importante lembrar do livro A queda para o alto, publicado pela Editora Vozes em 1982, que pode ser considerado um dos documentos mais relevantes para se pensar a relação entre escrita, gênero e sexualidade periférica no campo das literaturas de língua portuguesa. Isso porque a narrativa – uma autobiografia mesclada com poemas, trechos de cartas e bilhetes-, tem como objetivo principal compartilhar a experiência de Sandra Mara ou Anderson Herzer, escritor@ nascid@ no interior do Paraná, como sobrevivente de um longo e contínuo processo de exclusão. Para ler esta obra, elaborada a partir de uma consciência frágil da sua relevância para se problematizar os dispositivos que garantem a hegemonia e o poder do autor na literatura brasileira. Herzer, cujo sonho eram o livro e a possibilidade de uma quantidade maciça de seres humanos conhecerem a sua versão da história, escrevia poesia que, embora não seja apessoada a uma “Alta Literatura”, obteve muito raramente seu texto lido sob o escrutínio da crítica canônica, especialmente porque seu trabalho, embora escrito em versos, jamais foi alçado ao patamar da dignidade literária. Luiz Mott, importante estudioso da história e dos ativismos gays e lésbicos, no fundamental (ainda que hoje desatualizado) O lesbianismo no Brasil (1987) recupera um panfleto assinado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista de São Paulo na ocasião da morte de Herzer:
 
Esta carta é dirigida a todos os que repudiam a violência, desde a violência acintosa das ruas e da repressão policial ou a do estupro e espancamento de mulheres, àquela mais insidiosa do preconceito que interiorizamos e que também mata. O preconceito que empurra pessoas de cima das pontes, como empurrou a jovem mulher Sandra Mara Herzer, de um viaduto para a avenida 23 de maio. Sandra Mara amava as mulheres numa sociedade ultramisógina, onde apenas o masculino é positivo e tudo é feito para satisfazer as necessidades e anseios dos homens. Talvez por isso, supondo ser incompatível a força e o feminino, o valor e o feminino, tenha se transformado em Bigode – mas Sandra tinha sua essência no feminino, não o feminino de estereótipo, mas aquele que transcende e não se conforma preferindo até mesmo o suicídio.
Esta carta é dirigida a todos que repudiam a violência, o preconceito. Queremos, através dela, dizer a todas as Sandras Maras que o mundo mulher é lindo, e que continuaremos aqui lutando pelo direito de retirar nossas máscaras e amar a quem quisermos e como quisermos. Continuaremos aqui lutando pelo direito à felicidade, como companheiras solidárias que somos e devemos ser, contra todo tipo de preconceito, porque o preconceito também nos mata (MOTT, 1987, p. 213).
 
Com o intuito de finalizar esta apresentação, gostaria de sugerir a leitura da obra de Angélica Freitas, poeta de Pelotas publicada pela Cosac & Naify. Gostaria de ter a oportunidade e um tempo mais amplo para desta poesia aqui tratar pois, ao contrário de uma tradição que relaciona o lugar do feminino a imagens de silêncio e melancolia, a obra de Angélica Freitas parece esboçar uma crítica fundamental a despeito de alguns conflitos das mulheres, utilizando o humor como metodologia poética. Seu primeiro livro, Rilke Shake, procura desestabilizar a influência modernista europeia e americana, embora o lugar de fala do sujeito lírico esteja notadamente marcado por um (lugar no/ do) estrangeiro (destaque para o poema “Liz & Lota”). Já seu segundo livro, Um útero é do tamanho de um punho, de 2012, evoca muito mais frontalmente as questões de gênero, procurando subverter de maneira mais ou menos original os lugares comuns da condição feminina, transformando-se numa obra fundamental para a compreensão da lírica feminina e de uma poesia mais ou menos consciente de seu caráter revolucionário no que diz respeito ao tratamento de temáticas lésbicas, contribuindo para uma refrigeração original da poesia brasileira contemporânea.
Para encerrar, gostaria de recuperar Virginia Woolf, no artigo “Profissões para mulheres”, onde a inglesa observa o quanto é difícil matar o fantasma do Anjo do Lar, imagem atomizadora da mulher dócil e subserviente, frágil e passiva. Pois estes textos, apesar de nada garantirem a não ser os seus conflitos e dilemas, realocam as mulheres na participação do desejo e de uma reconfiguração social por meio, inclusive, das novas proposições de entendimento do gênero. O senso comum poderia objetar: “Todo mundo sabe o que é uma mulher.”. Ao que eu responderia: “Talvez o cânone literário (ainda) não saiba”.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AUAD, Pedro Henrique T. K. Teoria da Literatura e Teoria do cinema: a crise e o fantasma. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários. Faculdade de Letras, UFMG, 2014.
BARRENO, Maria Isabel; COSTA, Maria Velho da; HORTA, Maria Teresa. Novas cartas portuguesas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974.

BUTLER, Judith. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, jan. 2002, v. 10, no 1. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2002000100009&script=sci_arttext. Acesso

em 30 de maio de 2015.

MOTT, Luiz. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.
SÁ, Isabel de. Em nome do corpo. Lisboa: Rolim, 1986.
WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&PM, 2011.




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