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NO SILÊNCIO DE CLARICE: A PRODUÇÃO DE SENTIDOS A PARTIR DA OBRA ÁGUA-VIVA – Danielly Christina de Souza Mezzari, Rafael Siqueira Guimarães




NO SILÊNCIO DE CLARICE: A PRODUÇÃO DE SENTIDOS A PARTIR DA OBRA ÁGUA-VIVA
 
Danielly Christina de Souza Mezzari
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
 
Rafael Siqueira Guimarães
Universidade Federal do Sul da Bahia
 
 
Resumo: Este artigo é composto de uma análise e reflexão acerca da obra Água-viva, de Clarice Lispector. A literatura desta autora pode nos ajudar a vislumbrar a importância do papel ativo do sujeito no que diz respeito à interpretação e à própria produção das informações, relatos e experiências que nos chegam, seja por meio da mídia, de livros, internet ou do contato com outros sujeitos. Realizamos uma pesquisa cartográfica com o intuito de analisarmos como se dá o processo de produção de sentidos na obra já citada da autora. Consideramos que a literatura de modo geral se apresenta como uma forma de resistência à linguagem estereotipada e enrijecida do cotidiano
 
Abstract:  This article proposes an analysis and a reflexion about Clarice Lispector’s novel Água viva. Her work will help us to glimpse at the importance of the subject’s active role when it comes to the interpretation and the production of information, the stories and experiences that are divulged either by the media, books, the internet or the contact with other people. It will produce a cartographic research aiming at analysing how this literary work produces an effect on the senses. It considers literature in general as representing a form of resistance to the daily stereotypes of stiff language.
 
Palavras chave: Clarice Lispector, sentidos, silêncio.
 
Keywords: Clarice Lispector, senses, silence.
 
Danielly Christina de Souza Mezzari: Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste, de Irati/PR. Mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, de Assis/SP e membro do Grupo de Pesquisa GEPS – Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades, da UNESP/Assis.
 
Rafael Siqueira de Guimarães: Psicólogo, performer e produtor cultural. Doutor em Sociologia pela Unesp/Araraquara, Professor Adjunto na Universidade Federal do Sul da Bahia, Líder do Grupo de Pesquisa ETC – Estéticas, Tecnologias, Criações e Etecetera – além de membro do Coletivo Artístico Elenco de Ouro.
 
 
NO SILÊNCIO DE CLARICE: A PRODUÇÃO DE SENTIDOS
A PARTIR DA OBRA ÁGUA-VIVA
 
Danielly Christina de Souza Mezzari
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
 
Rafael Siqueira Guimarães
Universidade Federal do Sul da Bahia
 
 
Introdução
É pela palavra, mal dita (maldita?) palavra, que ousamos trilhar um caminho absurdo feito de falhas, de espaços em branco, nos quais nos expressamos de modo mais aproximado daquilo que na verdade buscamos dizer. “Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários, criados, de cada vez, para revelar a vida nas coisas” (DELEUZE, Gilles, 1993, p. 13). O que será que há no processo de escrita que o ultrapassa a ponto de fazer com que, muitas vezes, seja apenas no que se julga ser o seu contrário, no silêncio, que esteja presente a possibilidade de nos fazermos sentir naquilo que realmente nos interessa? Como será que, pela palavra, surge a palavra ao avesso e nela construímos uma híbrida relação que não se presta a diferenciar o que é o corpo-leitor do que é o corpo-autor ou corpo-livro?
 
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente (LISPECTOR, Clarice,1976, p .21).
 
Ao lermos os textos de Clarice temos a impressão que a autora luta o tempo todo para rasgar a palavra e dela (quem sabe atrás ou ao lado dela) fazer aparecer o que realmente se pretendia anunciar. “Fracasso e falha parecem ser o alvo de Clarice que, no momento em que constata a distância do que desejava falar e do que fala, transforma esse fracasso no próprio tema e meta a serem perseguidos” (BITENCOURT, Anderson, 2011, p. 89).
Surge desta luta constante uma angústia proveniente da tentativa de “captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 09). É nesta característica da palavra, expressa por Clarice Lispector, de ao mesmo tempo ser fonte e limite da possibilidade de alcançar o real das coisas que procuraremos nos debruçar, direcionar e aprofundar o nosso olhar e análise. Como se dá este processo de buscar pela palavra superar a abstração que lhe é inerente? A partir daí, quais os subsídios que a escrita da autora pode proporcionar na direção de produzir sentidos, e não de os encontrar? Acreditamos que o desenvolvimento desta pesquisa se justifica e se sustenta devido à importância de se pensar na construção de sentidos. Temos, hoje, uma disseminação de informações que cria e impõe ao sujeito sentidos já prontos e que, portanto, não necessitam da participação deste no que diz respeito à criação e desenvolvimento de suas próprias atribuições a partir de suas vivências e experiências.
A literatura de Clarice Lispector pode nos ajudar a vislumbrar a importância do papel ativo do sujeito no que diz respeito à interpretação, interação e à própria produção das informações, relatos e experiências que lhe chegam seja por meio da mídia, de livros, internet ou do contato com outros sujeitos. Inúmeras são as possibilidades de compreensão acerca do que pode vir a ser o sentido e quais são as melhores formas de tentar captá-lo. Silveira Bueno (2007) em seu minidicionário da língua portuguesa fornece algumas conceituações para a palavra “sentido”, tais como “cada uma das formas de receber sensações, segundo os órgãos destas”, “faculdade de sentir ou apreciar”, “juízo”, “bom senso”, “significação”. Ou seja, o sentido nos remete geralmente a sensações ou a significados.
No entanto, ao nos depararmos com a literatura de Clarice Lispector alguma coisa fica por ser dita. Ela não dá respostas, não há um caminho, não há nenhum significado estabelecido nas suas linhas.  As suas palavras se decompõem e se rearranjam de acordo com os olhos, com o corpo todo por fim, de quem as lê. É quando o leitor se deixa tocar, ou quando alguma coisa no texto encontra alguma coisa no leitor, que se produz um sentido, ou qualquer outra coisa, para o que foi lido. Não há nada para ser encontrado nas palavras tecidas pela autora. É a possibilidade de produção de sentidos que nos é apresentada.
Tendo em vista o objetivo da presente pesquisa, consideramos pertinente trabalharmos com o método cartográfico proposto por Guilles Deleuze e Félix Guattarri (1995). Nas palavras de Roberta Carvalho Romagnolli (2009, p. 169) “(…) mais do que procedimentos metodológicos delimitados, a cartografia é um modo de conceber a pesquisa e o encontro do pesquisador com seu campo” (ROMAGNOLI, Roberta, 2009, p. 169).
O método aparece como uma nova proposta para reencontrar o saber que está em crise. Sendo assim, a cartografia é um método, já que não parte de um modelo pré-estabelecido, como nos diz a autora, mas sim os questiona a partir de uma fundamentação própria. Não há passos a serem seguidos ou normas a serem cumpridas para que se possa trabalhar a partir deste viés. É principalmente na criatividade e nos afetamentos produzidos no processo que uma produção poderá se tornar possível.
O papel do pesquisador adquiri uma importância singular já que o entendimento da produção no contexto desta pesquisa é pensado como sendo construída: “(…) a partir das percepções, sensações e afetos [do pesquisador] vividos no encontro com seu campo, seu estudo, que não é neutro, nem isento de interferências e, tampouco, é centrado nos significados atribuídos por ele” (ROMAGNOLI, Roberta, 2009, p.170).
Gilles Deleuze e Félix Guattarri (1995), ao descreverem os seis passos necessários para se pensar o rizoma, opõem o mapa da cartografia ao decalque. O mapa, segundo os autores, está voltado para a experimentação, a abertura, a conexão, o desbloqueio. Ele pode ser moldado, revertido, refeito. Pode-se, através do mapa, realizar conexões com as mais diversas formas e nos mais diversos formatos: “Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ‘ao mesmo’. O mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida “competência” (DELEUZE, Gilles, GUATTARRI, Félix, 1995, p. 21).
A questão, no entanto, não diz respeito a uma invalidação de tudo aquilo que é do âmbito do decalque. As estruturas, as “competências”, o que já foi duramente significado também fazem parte do processo e compõem o rizoma, o mapeamento. Se os rizomas e mapas, como nos afirmam os autores, possuem múltiplas entradas, então que se possa entrar também pelo viés do decalque, das ‘árvores-raízes’. “No coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo rizoma pode se formar” (DELEUZE, Gilles, GUATTARRI, Félix, 1995, p. 23). É na relação que se desenvolverá entre pesquisadora e texto que a produção será possível. É, portanto, uma produção única dentre as infinitas possibilidades de construções. Única, já que se delineia a partir de um determinado lugar e referencial, de alguns olhares e de alguns sujeitos.
A partir do que já foi exposto, dos referenciais e afetamentos que inevitavelmente atravessam esta pesquisa, como podemos pensar esse processo almejado por Clarice Lispector de, pela palavra, superá-la e ir além do que ela propõe? Ou seja, como pode um mesmo texto abrir portas para tantas interpretações, para tantos sentidos? Orlandi (1995) nos diz que o silêncio é condição para a produção de sentidos. Ele não é vazio, sem sentido, pelo contrário, é o indício de uma totalidade significativa.
Sendo o silêncio condição para a produção de sentidos, é ele também condição para o movimento necessário para a criação. É no silêncio que a palavra se assenta e é por ele que a palavra se torna infinita. Infinita porque é inesgotável. Inesgotável porque o seu alicerce é o indizível. Indizível que se pluraliza e se multiplica, paradoxalmente, através da palavra e do que pode fazer com ela aquele que a lê:
 
É isso… o silêncio… Única palavra à altura do impensado. Mas, para poder ouvir o silêncio, é preciso dispersar toda identidade, abrir mão de toda morada estável, abandonar a fé no poder da palavra. Esse silêncio é uma palavra para além do mundo, um eco distante, mal perceptível, uma inesgotável interrogação, o sinal de uma escrita que abomina toda resposta (MALDONATO, Mauro, 2004, p. 87).
 
Maldonato aponta, no trecho acima, a indiferença do silêncio em relação a uma produção específica, ou seja, ao silêncio não compete uma direção, um encaminhamento, uma resposta. O silêncio diz da produção de possibilidades, de conexões, de relações que muitas vezes transgridem, que subvertem o efeito esperado por quem escreveu. Orlandi (1995) nos diz que o silêncio diz da possibilidade de se trabalhar a contradição constitutiva do próprio sujeito. Para ela todo discurso se produz, reproduz, se desloca de forma a remeter a outros discursos que lhe dão realidade significativa.
O silêncio, portanto, remonta à unidade, à completude de um todo que a palavra quebra e mobiliza na tentativa de poder apontar para alguma parte deste todo e se referir a ela de alguma maneira. “O ato de falar é o de separar, distinguir e, paradoxalmente, vislumbrar o silêncio e evitá-lo” (ORLANDI, 1995, p. 29). É pela palavra que temos a possibilidade de vislumbrar relances de um todo que ela não dá conta de fazer aparecer. É só na palavra que este silêncio constitutivo se manifesta e se esconde e cria espaços de possibilidades outras que a palavra não consegue dizer.
E o sujeito? Sujeito-leitor, sujeito-autor, sujeito-produtor. Qual é o seu papel em meio a tanto silêncio e tanta palavra? O que dele é demandado para que, nele e por ele, se crie algo que extrapole os limites das linhas de um texto?
Ricardo Goldenberg, em sua palestra apresentada no programa café filosófico e intitulada “A utopia do autoconhecimento” nos diz que não há a possibilidade da construção de qualquer tipo de conhecimento que não passe pelo outro. Para que possamos saber algo acerca de nós mesmos é necessário, para o psicanalista, que passemos, que atravessemos o outro. É através do olhar do outro que nos construímos, assim como é só na interação com outros sujeitos que nos desenvolvemos. Para Doel: “O sujeito humano é sempre um corpo pleno a advir; ele perdura sem jamais existir como tal. Ser é devir. Em outras palavras, o sujeito perdura por meio de um contínuo romper-se” (2001, p. 81).
Rompemo-nos uns nos outros, uns através dos outros, através das coisas. E é o rompimento que possibilita a abertura, a criação, a possibilidade de transbordarmos para além de nós mesmos.
É também no contato com um livro, com uma letra, enfim, com tudo aquilo que compõe o mundo exterior que um sujeito se cria e se transforma. “E o sujeito seria, portanto, o espaço de conexão ou de montagem, contínua pré-posição, uma dobra do exterior” (SILVA, Tomaz, 2001, p. 122-123). A dobra, para o autor, que dialoga com Deleuze, tem como finalidade nos levar a um caminho aberto, de fluxos ou “linhas de força” que surgem das conexões entre objeto e objeto, objeto e sujeito, sujeito e espaço. O sujeito é aquele que, em conexões múltiplas e que circulam intensidades, cria e se produz a partir dos seus agenciamentos, de suas multiplicações, dos seus outros. “Agora o problema já não seria tanto perguntar-se sobre que tipo de sujeito é produzido, mas que pode fazer o ser humano, que capacidade de afectar e ser afectado tem em um dispositivo concreto” (SILVA, Tomaz, 2001, p. 129).
Quais são as possibilidades de produção que podem ser criadas por um sujeito em conexão com um livro em seus múltiplos agenciamentos e metamorfoses? A escritora sozinha não pode dar conta de transmitir o que quer que seja. É só pelo outro que suas palavras ganham vida e relevância. É através do outro que um texto pode ganhar um direcionamento e uma aplicação. Cabe ao leitor produzir, a partir daquilo que é seu, do seu olhar e experiências, novas possibilidades, novos caminhos e interpretações. O que se construirá a partir daí, passa a não ter mais um responsável, um autor. É algo novo que se criou a partir de uma relação única estabelecida entre autor, texto e leitor.
 
Água-viva
Na água vive o movimento. O vívido da queimadura que se espalha, que se espelha pela água. A água-viva que envolve e marca com seu frágil corpo o corpo daquele que ousa tocá-la, que inadvertidamente a toca. A água-viva com sua beleza de água. A água na sua profundidade discreta. A discrição daquilo que não se vê, mas se sabe, que não se vê, mas se sente. É que a água não diz o que nela se mostra, pela água eu não sei o que posso encontrar. Na fluidez da água que se pode captar… Captar o que? “Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 13-14).
De que fala Clarice em sua obra? Fala dela mesma? Fala de um outro? De que trata água-viva? De sua própria vida, de sua autobiografia? No fluxo próprio da escrita de Clarice Lispector há algo como que um nunca chegar lá. Paira sobre sua obra, na nossa leitura, uma sensação de impotência, de insucesso, diante do seu próprio exercício, do ato de escrever. Àquilo a que se destina a escrita, na verdade não lhe compete. Escrever é justamente não chegar lá:
 
A escrita é sempre solitária, visto que nada revela, nada fala, nada transmite a ninguém. Escrever é deixar calar a própria voz, é apagar o eu e tornar-se um desconhecido aos próprios olhos. Em lugar do eu se insinua o vazio, o ele, o impessoal. Aquilo que não pode ser dito e, no entanto, não cessa de tentar se inscrever. O escritor deve abandonar seu eu a fim de poder captar o irredutível silêncio da obra. Este secretamente se anuncia nos livros, no entanto, das palavras sempre escapa. O silêncio será sempre a promessa de um dia deixar-se capturar (OLIVEIRA, Danielly, 2000, p. 88).
 
Escrever é deixar o eu de lado. É se abster de si próprio enquanto um ser individual para que a vida possa surgir de uma nova maneira, de modo que o vazio se manifeste e prolifere pelas letras criando o espaço necessário para a criação. Deixar o eu de lado, principalmente nas obras de Clarice, pode ser fruto de um estranhamento do mundo, de um tomar consciência, de uma epifania. De repente o comum, o corriqueiro perde o sentido, tira o chão e o óbvio não nos é mais nem sequer compreensível, apreensível. Então o que resta é buscar “a face terrível da vida, a matéria orgânica que pulsa”. (OLIVEIRA, Danielly, 2000, p. 88-89).
Surge destes momentos epifânicos um vislumbre do real, que é imprevisto, indizível, desestruturante. O eu não suporta. É preciso alcançar o “it”, o impessoal. “O it vivo é o Deus (…). Deus é o mundo. A prece profunda é uma meditação sobre o nada. É o contato seco e elétrico consigo. Um consigo impessoal” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 34). Clarice se experimenta nas palavras e experimenta o que delas não consegue fazer aparecer. Se no ato do discurso e da escrita o eu se desfaz, se atrapalha, se desorganiza, é também por essa via que ele se cria.
Mais uma vez, de que fala Clarice? O que é esse “it”? Pode a leitora captá-lo? Caso ela possa, o que é captado com este impessoal? Villari (2000) afirma que havia até pouco tempo uma via de mão única no que diz respeito à relação entre psicanálise e literatura. A psicanálise servia de base, de resposta, para os enigmas da literatura, o que pressupôs a noção de “inconsciente do texto literário”. No entanto, como nos diz o autor, o equívoco estava em considerar que o próprio texto possuía um inconsciente sem se atentar para a figura do leitor, para a questão de que o “texto diz na medida em que é lido” (VILLARI, Rafael, 2000, p. 4). A partir daí, podemos pensar que, na verdade, o texto em si não fala, não diz nada, quem diz é a leitora através do texto, na sua relação com ele. “Estou dando a você a liberdade. Antes rompo o saco de água. Depois corto o cordão umbilical. E você está vivo por conta própria” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 39). O leitor está vivo na obra. Ele é ativo, é criador, criativo. Dele dependem os possíveis sentidos que a obra pode assumir. É dele também o movimento no qual a obra se desenvolve. É no leitor que a obra fala. É por ele que ela se cria.
Para podermos pensar sobre a criação é necessário que exploremos um pouco mais a experiência. O que é experienciar um livro, uma palavra, uma paisagem? Como, da experiência de Clarice, podemos fazer surgir algo novo, algo nosso, a nossa experiência? Walter Benjamim (1994) nos diz que o narrador é aquele que retira da sua experiência ou da experiência de outras pessoas o material necessário para a construção das suas narrativas. Para além disso, o narrador incorpora à sua história a experiência dos seus ouvintes. Diferentemente da informação que, como o próprio nome já supõe, deseja tão somente informar, trazer dados, notícias sobre algum acontecimento, a narrativa pede uma experiência daquilo que se ouve, que se é contado. O sujeito que narra uma história inevitavelmente se apropria dela e a preenche de si próprio. A história é dele na medida em que ele está nela, impregnado dela, impregnando os seus contornos. E os ouvintes, quando forem narrar esta mesma história para outras pessoas, mergulharão nela também. Quanto mais recontada for, mais pessoal, original e carregada de experiências ela será. “Ela [a experiência] mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, Walter, p. 205, 1994). A experiência do narrador, portanto, se encontra na coisa que vai se impregnar das experiências de todos aqueles que a recontarem e se apropriarem dela.
Maria Rita Kehl (2009) acredita que a segurança fornecida pela eficácia da técnica desmoraliza a experiência. Para ela, a imaginação é o que sustenta a experiência e o que permite que cada um se coloque e coloque um pouco de si nas histórias narradas, naquilo que nos foi transmitido. Ao perdermos estas referências, continua a autora, esta capacidade de usar e aplicar a imaginação, ficamos vazios de sabedoria e disponíveis para qualquer coisa que nos seja oferecida ou imposta. Maria Rita Kehl advoga a delicadeza como parte essencial do ser humano. Seu valor consiste na possibilidade de frear a máquina de poder e de concentração do capital e na possibilidade de trazer à tona aquilo que tende a se perder dentro dessa lógica. O demorar-se nas coisas, o olhar um pouco mais. Deixamos a experiência de lado na nossa relação atual com o tempo. Priorizamos a informação, a rapidez, a impessoalidade. Quanto mais destrinchada e cheia de sentidos já prontos a informação, o texto, a imagem, ou seja lá o que for, melhor. A informação nos dá a sensação de completude, como se nela já estivesse dito tudo que há para se dizer. Ela não precisa da nossa intervenção, da nossa criação, da nossa experiência. A delicadeza consiste justamente no contrário disso. Ela exige a nossa intervenção, a nossa criação. Ela pede um pouco mais de corpo, um pouco mais de toque, um pouco mais do olhar. Ela subverte a nossa relação com o tempo porque se a lógica dos nossos dias afirma que o tempo é dinheiro, na lógica da delicadeza “o tempo é o tecido de nossa vida” (CANDIDO, Antônio, apud. KEHL, Maria, 2009, p. 454).
No que diz respeito à produção literária Almeida e Junior (2010) afirmam que existe uma tensão entre a compreensão de literatura enquanto conceito e enquanto experiência. Para eles a conceitualização da literatura estaria do lado do aprisionamento, da significação, da essencialização e sistematização dos saberes enquanto que a literatura entendida como experiência diria respeito a um acolhimento, a um encontro, à intensidade, à criação, ao devir. Para os autores, um escrito literário não é produzido sobre as coisas, mas sim com as coisas. O escrever sobre diria respeito à memória, à significação e representação. Já escrever com é escrever com as coisas, é explorar as possibilidades de transgressão na linguagem. “O escritor escreve com o escrever. Ele mergulha no turbilhão da experiência para se perder em sua tarefa de construção de sentido, através da escrita” (ALMEIDA, Leonardo JUNIOR, p. 139, 2010).
E o que a experiência tem a ver com a obra clariceana? Parece-nos que para ler Clarice é necessário que se a experiencie. Que se experiencie suas letras, suas fugas, suas brechas, suas deixas. E, para além disso, que se experiencie neste processo. Que se sinta no corpo o corpo da autora, de modo que um terceiro corpo se crie. Para ler Clarice acreditamos ser preciso delicadeza. Delicadeza para que se acalme um pouco no tempo das coisas. Para que se permita sentir as palavras roçando na pele e para se desvencilhar da busca incessante por um sentido já dado, por um sentido escondido. Não há nada escondido, não há nada por trás das letras de Clarice. O sentido só se cria pelo leitor, pelo seu olhar. O sentido não é. Ele se faz, se produz, se transforma. “O verdadeiro pensamento parece sem autor” (LISPECTOR, 1976, p. 108).  Desimportante atribuí-lo a alguém. Desimportante porque ele foi feito, lapidado e desenvolvido pelos agenciamentos que lhe foram possíveis, impossíveis. Porque ele se criou nas suas infinitas conexões. Porque ele foi composto e impregnado de vários outros sujeitos, de várias outras palavras:
 
Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu (DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix, 1995. p. 18).
 
Perguntar-se-á, em Clarice, com a autora, o que dela nos encontra, o que nela nos diz respeito. Perguntar-se-á não o que está dado em sua obra, mas o que naquilo que há pode se fazer, o que se pode criar a partir do que temos na relação com o que ela compôs. Não há o que ser desvendado, porque não há nada para se revelado, para ser apreendido em sua obra. O que há é o contato da experiência da leitora com o livro. O que há é a relação que, de acordo com Boaventura de Souza Santos (2008), é mais real do que os próprios sujeitos.
No que diz respeito à criação que a literatura possibilita Almeida (2009), a partir de Deleuze e Guatarri, nos aponta duas formas de uso da língua: a majoritária e a minoritária. A primeira estaria associada às palavras de ordem, à rigidez do dia-a-dia, aos estereótipos, que culminariam na dominação, enquanto que a segunda implicaria em um modo de resistência a esta rigidez e padronização que a linguagem impõe. A literatura é entendida nesta perspectiva como uma forma de resistência à rigidez das palavras de ordem, que dão forma à linguagem majoritária:
 
(…) como diz Proust, aquela [a literatura] traça nesta [a língua] uma espécie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um patois reencontrado, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a transporta, uma linha de feiticeira que se escapa do sistema dominante (DELEUZE, Gilles. 1993, p. 16).
 
Contrapondo-se à linguagem do poder, a literatura seria a linguagem sem poder, estando do lado da inutilidade (ALMEIDA, Leonardo, 2009). Inutilidade esta que é constitutiva, já que o que conta é a experiência. De acordo com o autor, a literatura não dita regras, pelo contrário, o que ela faz é proporcionar a elaboração de uma experiência intensa em que o sentir e o sentido se misturam, se colam, se interpenetram. “É como se fazer literatura fosse enlouquecer a escrita, subverter, desmoronar, romper, transgredir, contestar os limites impostos pela própria linguagem” (ALMEIDA, Leonardo, 2009, p. 100).
No processo de criação e escrita de Clarice Lispector a fuga da palavra nos parece ser um fenômeno almejado pela autora. Essa fuga, no entanto, só pode ser possível através da própria palavra. Podemos nos perguntar em meio a este processo: de que foge Clarice? O que há com a palavra que, sendo o seu ponto de apoio é também do que ela busca se libertar? Clarice procura dizer o indizível. “Mas como dizer o indizível? Como pensar o impensável? Como levar a linguagem e o pensamento além de seus limites?” (DINIS, Nilson, 1998, p. 98). Parece-nos que Clarice cria pontos de fuga, de desterritorializações da palavra. Se ela busca apossar-se do “é da coisa” e se a palavra é sempre abstração, representação e se, no entanto, é o seu único recurso, é preciso subverter a sua lógica, subverter a relação, subverter a própria linguagem enfim:
 
É como se a escrita literária fosse uma escrita insolente que sabotasse a linguagem. Ela faz as palavras se metamorfosearem, tecendo relações intensas e, às vezes, incomuns, que proporcionam uma ruptura com os usos costumeiros da linguagem. Por isso, sua decifração será somente posta em jogo na própria experiência literária (ALMEIDA, Leonardo, 2009, p. 100).
 
Se é preciso uma nova forma de linguagem, se se faz necessário uma outra relação com a palavra, é necessário também uma nova forma de pensamento. É necessário uma nova forma de produção de sentidos que vá além dos sentidos já convencionados para cada palavra. É preciso que a leitora se liberte da própria autora que nos afirma que o que ela diz “deve ser lido rapidamente como quando se olha” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 17).  Deve ser lido de forma livre, desprendida e leve. O que há é a possibilidade e não a confirmação, não a sujeição ou a certeza. Não mais o pensamento lógico, racional, mas sim “um pensamento que invade as entranhas do narrador, que aguça sua inquietude, violenta o seu corpo até manifestar-se” (DINIS, Nilson 1998, p 90). Um pensamento que, como nos diz Nilson Fernandes Dinis, é exercício pleno de liberdade, que não tem autor, não tem sujeito nem função preestabelecida. “Mas sou caleidoscópica: fascinam-se as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 38). Caleidoscopicamente se produz, se escreve. Porque em suas muitas faces se inscrevem muitos outros corpos. Nas suas muitas faces Clarice carrega as marcas de muitas outras imagens, pessoas, avisos, olhares. Escrever é despir-se de si própria, de certa forma, é abdicar da estrutura e procurar os seus desvios, as suas fugas. Escrever é viver, é tentar fazer viver. “O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 42). Escrita e vida se confundem, se apropriam uma da outra de maneira que a escrita se mescla na vida e a vida transborda na escrita. No entanto, se escrever nunca dá conta de dizer tudo o que é preciso, tudo o que na vida e pela vida se cria, se a escrita não consegue captar o “instante-já”, então a saída…: “(…) é desistir de uma cópia fiel do instante, uma cópia ícone, e celebrar a cópia simulacro. O simulacro é o mundo do diferente, do feio, do tortuoso, do grotesco, do imprevisível pelo qual o autor realiza sua opção” (DINIS, Nilson, 1998, p. 68-69).
Se a cópia fiel diz de uma reprodução autêntica e eterna o simulacro abre espaço para o torto, o desarticulado, o mutável. Se escrever é uma forma de tentar viver, então que se escreva. Que se escreva mesmo sem objetivo, sem objeto. Que se escreva mesmo no improviso, no improvável, no repentino. E que se leia despido das possíveis amarras do texto. Que se deixe levar por si próprio e pelos encantamentos produzidos no encontro com as letras. Que se permita sentir o que do texto nos diz respeito, o que dele nos chega. “Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, você sente?” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 55). Se em Clarice percebemos uma busca incessante de, pela palavra, ir para além da abstração que lhe é inerente e alcançar o silêncio que por ela sutilmente escapa, percebemos também em água-viva principalmente uma abdicação da busca pelo que há de mais concreto, de mais despido de atribuições. Percebemos, na escrita da autora, uma minoração da língua que se caracterizaria pela produção de “uma forma de crítica à língua materna, maior e dominante, cavando vias de escoamento com o intuito de transgredir os limites impostos pela linguagem” (ALMEIDA, Leonardo, 2009, p. 102). Clarice abdica da sua necessidade de desvendar o que se insinua pelas palavras e aceita o mistério que é inerente à existência. “É-se. Sou-me. Tu te és” (LISPECTOR, Clarice, 1976, p. 32). O texto já não possui um autor, não é de ninguém. Ele é de quem o leu, de quem o escreveu, de quem o pensou e de tudo que participou da sua produção.
 
 
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Leonardo Pinto. (2009). Literatura e a experiência do escrever: algumas reflexões sobre a resistência no seio da linguagem. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, 2009, v. 21, n. 28, p. 87-106, jan./jun.
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