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Narrativa de autoria feminina na literatura brasileira: as marcas da trajetória




Narrativa de autoria feminina na literatura brasileira: as marcas da trajetória

Elódia Xavier
Universidade Federal do Rio de Janeiro

A constatação da existência da autoria feminina configurando uma produção literária, que se estende do século passado até hoje, nos instiga a apontar os rumos desta trajetória, enfatizando, concomitantemente, as marcas do percurso. Elaine Showalter, em A Literature of Their Own: British Women Novelists from Brontë to Lessing, afirma que: “Many other critics are beginning to agree that when we look at women writers collectively we can see an imaginative continuum, the recurrence of certain patterns, themes, problems, and images from generation to generation.” 1 É o que ela chama de “female literary tradition”, sem que isto implique em nenhuma forma de essencialismo; Showalter está interessada em investigar “the ways in which the selfawareness of the woman writer has translated itself into a literary form” 2, não perdendo de vista as transformações sofridas através dos tempos. É esta perspectiva historicizante e culturalista que vai nos orientar no presente trabalho.
São três as etapas apontadas por Showalter no percurso literário que compreende as obras de autoria feminina entre 1840 até por volta de 1960, tendo a cultura dominante como referencial. A primeira, que ela chama de”feminine”, é uma etapa prolongada e se caracteriza pela imitação: ” a prolonged phase of imitation of the prevailing modes of the dominant tradition, and internalization of its standards of art and its views on social roles.” 3; a segunda, uma espécie de ruptura, “a phase of protest against these standards and values, and advocacy of minority rights and values, including a demand for autonomy”4, denominada “feminist”. E, por último, a fase da auto-descoberta, uma espécie de “search for identity”, a que dá o nome de “female”.Não se trata de categorias rígidas, sendo mesmo possível encontrar as três, presentes na obra de uma mesma escritora.
Na literatura brasileira, até o presente momento, considera-se o romance Ursula (1859) de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense, a primeira narrativa de autoria feminina. Com seu estilo gótico-sentimental, perfeitamente enquadrado nos padrões românticos, o romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor. Júlia Lopes de Almeida, nascida em 1862 e autora de uma obra vasta e variada, é, ainda, mais representativa desta fase de internalização dos valores vigentes e dos papéis sociais. Pertencente à alta burguesia, enquanto Maria Firmina dos Reis é uma simples professora do interior, Júlia Lopes constrói sua obra sobre os alicerces patriarcais, sedimentada por rígidas relações de gênero. As rainhas do lar coroam os finais felizes deste universo ficcional. Também o romance A sucessora (1934) de Carolina Nabuco, embora mais elaborado do ponto de vista psicológico, não escapa do processo de imitação dos valores vigentes, uma vez que a protagonista resolve seu conflito interior a partir do momento em que se percebe grávida; é como reprodutora que ela supera o fantasma da primeira esposa estéril…Ainda estávamos sob o domínio do determinismo biológico.
Essas autoras ilustram a primeira etapa da trajetória da narrativa de autoria feminina, na literatura brasileira; elas reduplicam os padrões éticos e estéticos, mesmo porque elas ainda não tinham se descoberto como donas do próprio destino. A obra de Clarice Lispector rompe com esse estado de coisas, pondo em questão as relações de gênero. Os contos de Laços de família (1960), – o próprio título é muito significativo -, tornam visível a repressão sofrida pelas mulheres nas cotidianas práticas sociais. O feminismo já havia desencadeado um processo de conscientização e a narrativa de autoria feminina vai incorporar as questões polêmicas contidas em O segundo sexo (1949) de Simone de Beauvoir. Chamar esta etapa de feminista não significa dizer que ela é panfletária; ninguém discute o valor estético da obra de Clarice e, no entanto, ela traz nas entrelinhas uma pungente crítica aos valores patriarcais.
O mesmo acontece com a obra de outras tantas autoras desse período que se estende, aproximadamente, até 1990. Vamos nos deter em quatro dessas autoras, embora nossa vontade fosse falar de todas elas, tal é a qualidade estética e a força criativa que apresentam.
Patrícia Bins, carioca de nascimento, vive há muitos anos no sul do país, onde vem escrevendo desde 1968. Seus romances, marcadamente intimistas, narram sempre o drama existencial de uma mulher. Estas personagens femininas são flagradas num determinado momento de sua trajetória: o mundo a sua volta perde o sentido, o vazio se instala e elas, através da regressão ao passado, se despojam das máscaras sociais num auténtico processo de individuação. A psicologia junguiana pode nos ser muito útil na leitura destes textos. Ana, protagonista de Antes que o amor acabe (1984), ao se dar conta do automatismo de sua vida, dá início à trajetória que a levará à descoberta do self. Passo a passo se processa o desvestimento da persona, atingindo, no final, a totalização psíquica e a integração com a natureza. A situação social da personagem – meia idade, casada, classe média – tem importância na medida em que representa condicionamentos impostos por práticas sociais.A inadequação a esses papéis gera o desequilíbrio e a busca de uma solução, que só será eficaz se levar à descoberta da identidade existencial. Embora o romance termine apontando para uma situação plena, os dois pontos finais indicam que nada é definitivo.
A contestação aos valores patriarcais se revela, em Lya Luft, de forma densa e dramática. A obra desta autora gaúcha, centrada sobretudo na década de 80, tematiza o drama da mulher, educada dentro de rígidos padrões moralistas; como geralmente ocorre com as narrativas de autoria feminina, percebe-se, aqui, o cunho autobiográfico, uma vez que a autora é descente de alemães, vivendo numa sociedade conservadora. Sua obra compõe um universo feminino marcado pela loucura, pela doença e pela morte. O lúdico e o grotesco desvendam os absurdos de uma sociedade repressora e injusta, onde a mulher é sempre perdedora, o lado fraco, o lado esquerdo; no grande jogo da vida, a mulher, vítima da rigidez das relações de gênero, busca através da arte a sublimação de seus conflitos; as protagonista, quase sempre sujeitos da enunciação, se projetam especularmente na escrita, buscando sua identidade existencial. Em Exílio (1987), a personagem, marcada por uma infância sofrida e mal amada, vive num mundo povoado de fantasmas, alijada do convívio de sua família; longe do filho e do marido infiel, ela se exila na “casa vermelha”, purgatório dos transgressores, aguardando um recomeço. Frustrada em sua esperanças – o amante tem um filho excepcional que ela não consegue suportar – , a crise existencial se agrava provocando um mergulho mais profundo em busca de soluções vitais. Penetra, então, na “floresta”- metáfora da mãe suicida -, tentando o desvendamento dos enigmas que a atormentam. O final não aponta para uma situação definida – “Talvez eu não consiga chegar em casa. Talvez chegando, não possa ficar. Quem sabe”(p.201), mas a personagem se encontra através da escrita, indiciando a solução dos conflitos interiores.
São várias as formas de contestação aos valores patriarcais assumidas pela narrativa desta etapa. Com Márcia Denser, escritora paulista, ela assume um caráter violento e mordaz. Seu único livro, Diana Caçadora (1986), é uma coletânea de pequenas narrativas cuja disposição é significativa na medida em que torna visível a crescente degradação da protagonista. Trata-se da trajetória de uma mulher de aproximadamente trinta anos, jornalista inteligente e liberada, que busca se encontrar através de relações efémeras e ocasionais.Da parceria com intelectuais à situação limite vivida em “Relatório final”, Diana percorre caminhos que a levam, sistematicamente, ao abandono e à solidão. A ironia é seu recurso contra o sistema que a quer devorar e são poucos os momentos em que, com extrema lucidez, reconhece melancolicamente sua trágica fatalidade. A figura do analista está sempre presente, como marca de uma cultura desprovida da autoridade familiar e religiosa. Os papéis sociais, porém, continuam definidos, exigindo opções; por isso, o analista aconselha – “ou escreve ou lava fraldas”. Diana evita relações duradouras com medo da dependência emocional e a idéia de se submeter aos desmandos de um cônjuge lhe é insuportável. Na sua fome e voracidade, de caçadora torna-se caça e, lograda e insatisfeita, é usada violentamente pelo sistema.
Outra autora que, em sua contestação feminista, mantém a tensão de forças antagônicas, é Sônia Coutinho, de origem baiana mas vivendo no Rio de Janeiro desde de 1968. Este afastamento da cidade natal e, consequentemente, dos laços familiares e do contexto provinciano, é elemento estruturante de sua obra, constituída de contos e romances. A temática da mulher madura, sozinha na cidade grande, tentando realizar seus sonhos e viver a vida em sua plenitude, é uma constante. O ambiente redutor da cidade pequena não satisfaz a personagem, que busca em Copacabana a realização de seus sonhos. O resultado é uma série de casamentos desfeitos, relações frustradas , amargura e solidão. No conto “A liberdade secreta”, a protagonista se questiona – “a tirania do mundo é pior do que a dos pais?”(p.128) . Basicamente, é esta a situação dramática do romance Atire em Sofia(1989), narrativa nitidamente pós-moderna. Aqui, a protagonista, depois de quinze anos afastada de suas origens, retorna para ver as filhas e os amigos; o retorno tem um desfecho trágico, pois acaba assassinada pelo amante. A obra de Sônia Coutinho é bem representativa da crise da mulher numa sociedade que, até então alicerçada pelos valores patriarcais, vê-se, nos anos 80 à mercê de grandes transformações. A cisão de que são vítimas estas personagens coincide com a crise do discurso feminista: dividida entre viver seu “destino de mulher”e realizar sua “vocação de ser humano”, ambição esta tornada possível graças à revolução dos costumes, a mulher busca uma solução para sua plenitude existencial. Os encargos profissionais assumidos não a liberaram dos deveres domésticos; e, como as conquistas são recentes – vivemos um momento de transição -, os laços de família ainda prendem a mulher a um espaço, que a sua ânsia de transcendência recusa. Daí, uma certa nostalgia do tempo das avós, aquelas tranquilas senhoras que tão bem desempenhavam seus papéis de esposa/mãe e dona de casa, protegidas pelas vetustas paredes do lar. As protagonistas de Sônia Coutinho vivem esse impasse: não aceitam as regras do jogo, porque sufocantes e repressoras; querem viver plenamente e acabam, por isso, condenadas à solidão e até mesmo à morte.
A narrativa de autoria feminina dessa fase se estrutura em torno das relações de gênero, tornando visíveis as assimetrias sociais. Se, em Patrícia Bins, a trajetória das personagens as leva ao autoconhecimento, através da individuação, o processo é doloroso e exige o abandono de todas as máscaras; não se trata de uma vitória, porque as narrativas terminam em dois pontos. Com Lya Luft, o trágico e o grotesco se articulam para desvelar as regras desse jogo sujo, onde a mulher é sempre perdedora. Márcia Denser tenta subverter essas regras, criando uma personagem caçadora, que acaba, porém, caçada e degradada; enquanto Sônia Coutinho desloca suas protagonistas no espaço em busca de uma realização que não se dá, porque se o esquema tradicional é sufocante, a liberação não satisfaz. É um beco sem saída…
Algumas narrativas da década de 90 apontam para uma saída, configurando, talvez, uma outra fase, a que Showalter chama de “female”, marcada pela construção de uma nova identidade. O termo “female”, contrapondo-se a “male”, afasta-se da representação de gênero, uma vez que remete unica e exclusivamente ao dado biológico. Enquanto “feminine” é um termo gendrado, “female” significa tão somente do sexo feminino. Isso importa na medida em que algumas narrativas não fazem mais das relações de gênero a origem dos conflitos e indiciam a construção de uma nova identidade liberta do peso da tradição.
Adélia Prado, mais conhecida como poetisa, é autora de quatro narrativas sendo a última, O homem da mão seca, datada de 1994, enquanto as demais são da década de 80. As protagonistas, sempre mulheres, vivem crises existenciais, em busca de uma plenitude inalcançável; casadas, com filhos, cujos maridos – figuras inteiras, sem conflitos – contrastam com o dilaceramento interior das protagonistas. A trajetória de Antonia, personagem de O homem da mão seca, é indiciada pelas epígrafes, quase todas bíblicas, que abrem os vários segmentos da narrativa. As três primeiras são tiradas do Livro de Jó e remetem, a primeira à origem da crise, através da imposição da lei de Deus (“Guarda-te de declinar para a iniquidade e de preferir a injustiça ao sofrimento”); a segunda à falta, à carência que se instala na personagem (“Por ventura orneja o asno montês, quando tem erva? Muge o touro junto de sua forragem?”); e a terceira à opressão que paralisa a personagem (“Pois estou cheio de palavras. O Espírito que está em meu peito me oprime.”) De forma significativa, a quarta epígrafe é de Camões (“O vivo e puro amor de que sou feito/ como a matéria simples busca a forma.”), sugerindo a busca da unidade, da forma ideal, que será encontrada, no último segmento que se abre com uma epígrafe, inspirada em Guimarães Rosa (“Toma filha de Cristo, senhora dona:/ compra um agasalho para essa que vai nascer/ defendida e sã e que deve de se chamar apenas/ Felícia Laudes Antonia”). De fato, opera-se o batismo de uma nova Antonia, no início chamada Antonia Travas Felícia Laudes e, agora, destravada e feliz, como a epígrafe sugere. Operou-se o milagre indiciado pelo título do livro, episódio bíblico narrado pelos evangelistas Marcos, Mateus e Lucas.
A Sentinela, de Lya Luft, também de 1994, á ainda mais significativa como representação de uma nova identidade feminina. Isto porque seus cinco romances anteriores, todos da década de 80, constroem um universo absolutamente sufocante, onde a mulher é sempre perdedora. Embora apontem para a decadência do patriarcado, as protagonistas continuam enredadas no contexto familiar, que destrói qualquer forma de realização; a lei do pai ainda dita as regras do jogo social, restanto às personagens femininas a acomodação aos papéis impostos. A ruptura é punida com a marginalização e o exílio. Nesses romances, a família, representada como instituição falida e fonte geradora de conflitos e repressões, é, tragicamente, o beco sem saída.
São os mesmos os ingredientes que compõem o universo ficcional de A Sentinela; a protagonista, vítima do desamor e de perdas trágicas, se enreda nos fios da memória, mas consegue, desfazer os nós e encontrar os “rumos”.Embora viver seja – “subir uma escada rolante…pelo lado que desce. A gente passa a vida toda fazendo uma força danada para chegar mais alto, para onde nos impelem esperança, desafios, sonhos. Mas lá de baixo nos chamam o cansaço, a solidão, a doença, a loucura…a morte. Esta, no fim, vai vencer”.(p. 156-7) – a narrativa aponta estratégias para enfrentar este destino. As perdas se diluem na autoconfiança que a protagonista adquire através de seus teares, tecendo uma nova identidade não mais sujeita às relações de gênero. No presente da enunciação, ela declara: “Estou bem, como se retivesse nas mãos as rédeas de mim, observando sem espanto os trechos a percorrer.”(p.30) A arte, tecendo palavras, fios, sons, é a única capaz de enfrentar a vigilância mortal da “sentinela”.Nora, a protagonista, descobre no fazer artístico – inaugura uma tecelagem – o caminho para a construção de uma nova identidade, onde as relações afetivas – mãe, filho, amante – perdem o peso relacional, deixando a personagem livre para viver o mistério, o imprevisto, para ter “a audácia de se jogar” e de “delirar”.
As marcas da trajetória da narrativa de autoria feminina, na literatura brasileira, revelam sutís diferenças no desfecho das tensões dramáticas vividas pelas persongens femininas. Seriam estas diferenças sintomáticas da construção de uma nova identidade feminina mais livre do peso das relações de género?
Notas
1 SHOWALTER, E. (1986) p. 11-2
2 ibidem p.12
3 ibidem p. 13
4 ibidem p.13
 
Referências Bibliográficas
1. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 2v.
2. BINS, Patrícia. Antes que o amor acabe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
3. COUTINHO, Sonia. Atire em Sofia. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
4. DENSER, Márcia. Diana Caçadora. São Paulo: Global, 1986.
5. LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Francisco Alve, 1960.
6. LUFT, Lya. A Sentinela. São Paulo: Siciliano, 1994.
7. NABUCO, Carolina. A Sucessora.Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
8. PRADO, Adélia. O homem da mão seca. São Paulo: Siciliano, 1994.
9. REIS, Maria Firmina dos. Ursula. Edição fac-similar. São Luis: Progresso, 1859.
10.SHOWALTER, Elaine. In: EAGLETON, Mary ed. Feminist Literary Theory. New York:Basil Blackwell Ltd, 1986.




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