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Revista LitCult
ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





MULHERES PERVERSAS: A CARACTERIZAÇÃO DAS FEITICEIRAS CIRCE E JADIS – Isabelle Rodrigues de Mattos Costa




 
 

Isabelle Rodrigues de Mattos Costa

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 
Resumo: O objetivo deste trabalho é explorar o conceito da mulher perversa, conforme defendido por Bram Dijkstra em Idols of Perversity (1986), assim como estabelecer um paralelo entre a mulher perversa e a figura da feiticeira. Desse modo, analisaremos de que maneira as personagens Circe, da Odisseia de Homero, e Jadis, de As Crônicas de Nárnia, podem ser consideradas mulheres perversas: além de serem feiticeiras, as duas possuem características tipicamente masculinas e transgridem os papéis tradicionais da mulher. Além disso, estão ligadas aos instintos básicos: se Circe transformava os homens em animais, Jadis comandava um mundo habitado por animais, como se sua própria natureza bestial lhe permitisse reinar sobre eles. Investigaremos, portanto, as semelhanças entre essas duas personagens.
 
Palavras-chave: Mulheres perversas, feiticeiras, Circe, Jadis.
 
Currículo: Mestranda em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e graduada em Letras – Inglês/Literaturas de Língua Inglesa pela mesma universidade. Atualmente trabalha na Secretaria de Estado de Educação. Recentemente publicou o artigo “O espaço e a assombração: o gótico de Shirley Jackson em The Haunting of Hill House” na revista Versalete (ISSN: 2318-1028).
 
 
MULHERES PERVERSAS: A CARACTERIZAÇÃO
DAS FEITICEIRAS CIRCE E JADIS
 
Isabelle Rodrigues de Mattos Costa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
 
 
Bram Dijkstra, professor de literatura inglesa da Universidade de Califórnia, Estados Unidos da América, analisou em Idols of Perversity (1986) as representações de mulheres entre os séculos XIX e XX, procurando justificativas para o movimento antifeminista percebido não só na vida social, mas também nas obras literárias e artísticas. Para ele, o preconceito contra a mulher originava-se de alguns preceitos difundidos na sociedade, dentre os quais se repudiava a mulher que mostrasse características tipicamente consideradas masculinas, como agressividade, anseio por poder e sexualidade exacerbada – essa mulher assertiva, que se recusa a aceitar o papel submisso imposto pela sociedade, ele denomina de “mulher perversa”.
Dijkstra estabelece uma oposição dualística: de um lado, a mulher idealizada e do outro, a perversa. O “anjo da casa” era um modelo[1] que vigorou na era vitoriana, idealizando a imagem da mulher como boa mãe e esposa, dócil e submissa. Segundo esse ideal, a mulher deveria ser passiva e assexuada, sendo frequentemente caracterizada como quase etérea e de uma pureza contemplativa, além de, obviamente, obediente à ordem patriarcal.
A mulher perversa então era considerada o oposto do anjo da casa, incorporando aspectos assertivos e tipicamente considerados masculinos. Configurava desse modo uma ameaça ao ideal de mulher, e, portanto, um monstro cultural: para Dijkstra, a recusa dos direitos do homem sobre ela transformava a mulher num predador poliândrico (DIJKSTRA, 1986, p. 334), uma espécie de monstro feminino que aterrorizava a sociedade. Assim, figuras assertivas eram frequentemente caracterizadas como mulheres monstruosas e vilanescas, enquanto a heroína geralmente era representada como dócil e passiva. Não raro, essas figuras predadoras eram caracterizadas também como mulheres masculinizadas ou figuras andrógenas, representando as características “masculinas” que supostamente buscavam usurpar.[2]
A figura da feiticeira – que frequentemente aparece como vilã – representa essencialmente uma mulher perversa, destoante do ideal anjo da casa. Historicamente falando, muitas mulheres acusadas de bruxaria entre os séculos XV e XIX possuíam uma personalidade considerada conturbada: falavam palavrão, questionavam os outros e defendiam fortemente sua opinião, fosse discutindo com o marido ou com autoridades; enfim, eram mulheres de personalidade forte, que não se sujeitavam ao papel submisso que se esperava delas (KARLSEN, 1998, p. 310). Por exemplo, em Northamptonshire, em 1612,
 
This Joane Vaughan, whether of purpose to give occasion of anger to the said Mistris Belcher, or but to continue her vilde, and ordinary custume of behaviour, commited something either in speech, or gesture, so unfitting, and unseeming the nature of woman-hood, that it displeased the most thar were there present: But especially it touched the modesty of this Gentlewoman, who was so much mooved with her bold, and impudent demeanor, that shee could not containe her selfe, but sodainely rose up and strooke her […] taking disdainefuly and beeign also enraged (as they that in this kind having power to harme, have never patience to beare) at her going out told the Gentlewoman that shee [Joane Vaughan] would remember this injury, and revenge it (…) (GIBSON, 2000, p. 163).
 
Algum tempo depois, Belcher adoeceu e Joane Vaughan foi acusada de bruxaria. Muitas outras mulheres de personalidade forte eram frequentemente acusadas. Para Keith Thomas, “uma grande, talvez incomensurável, proporção dos que foram acusados formalmente de bruxaria no período manifestara algum tipo de malevolência para com os vizinhos […] um resmungo, uma maldição proferida entredentes ou uma sutil ameaça velada” (THOMAS, 1991, p. 416).
Se consultarmos o Malleus maleficarum[3] (1486), veremos que se acreditava que as mulheres perversas possuíam maior inclinação à bruxaria. Segundo o tratado, o maior número de praticantes de bruxaria pertencia ao sexo feminino porque a mulher era mais propensa à malícia, e “(…) a mulher perversa é, por natureza, mais propensa a heresiar na sua fé e, consequentemente, mais propensa a abjurá-la – fenômeno que conforma a raiz da bruxaria” (KRAMER; SPRENGER, 2014, p. 117).
Desse modo, essas mulheres perversas, mais dadas à cólera e à inveja, buscariam através das artes mágicas o poder de vingarem-se daqueles que despertassem sua ira, o que não seria incomum, uma vez que “(…) em virtude da deficiência original em sua inteligência (…) por causa da falha secundária em seus afetos e paixões desordenados” (ibid, p. 118), as mulheres perversas odiavam tão intensamente quanto eram capazes de amar, indo de um extremo ao outro com muita facilidade devido às suas emoções inconstantes.
Consta no Malleus ainda que “(…) a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais (…)” (ibid, p. 116), e que
 
(…) três parecem ser os vícios que exercem um domínio especial sobre as mulheres perversas, quais sejam, a infidelidade, a ambição e a luxúria. São estas, portanto, mais inclinadas que as outras à bruxaria, por mais se entregarem a tais vícios. Como desses três vícios predomina o último, por serem as mulheres insaciáveis etc., conclui-se que, dentre as mulheres ambiciosas, as mais profundamente contaminadas são as que mais ardentemente tentam saciar a sua lascívia obscena (…) (ibid, p. 121).
 
Percebemos então que, segundo o Malleus, a perversidade e a luxúria estavam intimamente ligadas, o que dialoga com o estudo de Dijkstra, para quem a mulher que demonstrasse uma sexualidade exacerbada (ao contrário da frígida dona de casa vitoriana) era considerada perversa – um monstro cultural que recusa seu papel feminino (submisso) ao demonstrar características tradicionalmente masculinas. Para ele, tais mulheres não eram consideradas completamente civilizadas, pois pareciam não ter se adequado às condições modernas da sociedade, já que rejeitavam a subordinação feminina ou os deveres de mãe. Para a sociedade então, essas mulheres subversivas, que procuravam usurpar privilégios masculinos, passaram a ser vistas como criaturas degenerativas e maléficas.
Percebemos então que as mulheres perversas eram na verdade mulheres assertivas e sexualmente ativas, o que escandalizava a sociedade como um todo e fazia com que os outros as considerassem figuras ameaçadoras, pois ameaçavam a ordem patriarcal e todos os costumes sociais que se conhecia.
O Malleus maleficarum considerava a cobiça carnal insaciável nas mulheres (KRAMER; SPRENGER, 2014, p. 121), e acreditava que a bruxaria se originava dessa luxúria. Assim, as feiticeiras eram consideradas duplamente lascivas (por serem mulheres perversas e por praticarem magia), e acreditava-se que estavam dispostas a ter relações sexuais com demônios para aplacarem sua lascívia.
O Malleus destaca ainda sua capacidade de despertar a luxúria através de feitiçaria e obscurecer a razão: eram “(…) capazes de contaminar a mente dos homens pela paixão desenfreada (…) inflamando de tal forma seus corações, ao ponto de persistirem nesse amor, a despeito da vergonha ou do castigo (…)” (ibid, p. 129).
Bram Dijkstra ressalta que essa necessidade de explorar prazeres bestiais delegava às mulheres perversas uma condição incivilizada, uma vez que cediam aos instintos animais em vez de agir conforme se considerava apropriado pela sociedade – a mulher perversa então era associada à condição animal, ao passado primitivo onde os instintos governavam, pois a bestialidade[4] simbolizava sua não-domesticidade (a recusa em assumir um papel passivo).
Como mencionamos anteriormente, não é de estranhar que a literatura represente essas mulheres assertivas como figuras ameaçadoras – poderosas feiticeiras que agiam como vilãs, perturbando a ordem e ameaçando a sociedade. Consideremos a figura de Circe, por exemplo, que é uma das mais antigas feiticeiras a aparecer na literatura[5]. Durante a viagem de regresso à Ítaca, após o fim da Guerra de Tróia, Odisseu e seus companheiros chegam à ilha de Circe, onde são recebidos por ela – que lhes oferece um banquete para em seguida transformá-los em porcos. Somente Odisseu permanece imune à sua magia, pois o deus Hermes o havia ensino como resistir aos encantos de Circe, assim, ela ameaça matá-la com a espada, e Circe cede, implorando por sua vida.
Se considerarmos a situação de Circe antes da chegada de Odisseu, verificamos que ela não possuía marido ou qualquer tipo de companhia masculina: era uma mulher autossuficiente, senhora de seu próprio castelo, que não necessitava de homem algum para sobreviver. Poderosa e independente, Circe era capaz de subjugar qualquer um que dela se aproximasse: “There were wild mountain wolves and lions prowling all round it- poor bewitched creatures whom she had tamed by her enchantments and drugged into subjection” (HOMER, 2007, p. 122).
Assim, ela parecia ser uma mulher dominadora que se divertia com o poder que possuía, escarnecendo dos homens que cruzassem sem caminho, humilhando-os ao reduzi-los à condição de animais.[6] Circe pode ser considerada então uma mulher perversa, pois transgride os limites de gênero, apropriando-se do poder e independência tipicamente masculinos na ausência de um marido. Por não se mostrar uma figura passiva, mas sim autossuficiente, ela usurpa o poder tipicamente masculino, sendo capaz de dominar qualquer homem que dela se aproximasse e aprisioná-los numa condição submissa, como se transferisse para eles a passividade que deveria pertencer a ela.
Se para a sociedade a mulher deveria ser submissa e, portanto, dominada, através da magia ela consegue impor-se como figura dominante, sendo capaz de empregar seus poderes sobrenaturais para fazer qualquer coisa que desejasse. A feiticeira, portanto, é uma mulher poderosa, capaz de subjugar os homens com sua magia. A dominação que Circe exercia era tamanha que não podemos deixar de mencionar a dominação sexual ali implícita.[7] Para subjugá-la, o deus Hermes havia aconselhado Odisseu da seguinte maneira:
 
When Circe strikes you with her wand, draw your sword and spring upon her as though you were goings to kill her. She will then be frightened and will desire you to go to bed with her; on this you must not point blank refuse her, for you want her to set your companions free, and to take good care also of yourself, but you make her swear solemnly by all the blessed that she will plot no further mischief against you, or else when she has got you naked she will unman you and make you fit for nothing (HOMER, 2007, p. 124).
 
A mudança da figura dominadora de Circe para uma mulher dominada é muito interessante, pois enquanto mulher perversa, ela permanecia invencível: uma feiticeira poderosa capaz de dominar qualquer homem. Somente após ser sobrepujada por Odisseu é que ela deixa de mostrar-se hostil e passa a portar-se como uma boa anfitriã.[8] Era como se Odisseu usurpasse sua condição dominante (o papel masculino que até então ela detinha) e impusesse-lhe um papel passivo (tipicamente feminino).
De perversa à boa anfitriã, ao assumir um papel submisso, Circe deixou de ser uma ameaça para Odisseu ou qualquer outro homem, mostrando-se desde então como uma mulher dócil, que prezava a companhia de Odisseu:
 
Circe, who knew that we had got back from the house of Hades, dressed herself and came to us as fast as she could (…). Then Circe took me by the hand and bade me be seated away from the others, while she reclined by my side and asked me all about our adventures (HOMER, 2007, p. 148).
 
De certo modo, Odisseu a “civiliza” ao negar-lhe a condição dominadora, colocando-a no “devido lugar” que uma mulher deveria ocupar: servindo e agradando um homem dominante. Sobrepujada, Circe é derrubada de seu trono e passa a atender as necessidades de Odisseu como uma típica dona de casa.
Jadis, a Feiticeira Branca, é outra figura caracterizada como mulher perversa, muito semelhante à Circe: é descrita como uma feiticeira que encanta as terras de Nárnia, fazendo com que sempre seja inverno, mas que o Natal nunca chegue. Além de serem feiticeiras, ambas possuem características tipicamente masculinas: Jadis, principalmente, pois é muito alta e possui imensa força, o oposto da imagem idealizada da mulher fraca e frágil que necessita da proteção de um homem. Autossuficiente, não só era capaz de se proteger, mas mostrava-se incrivelmente violenta, atacando qualquer um com quem se indispusesse: ela facilmente arrancou uma barra de ferro de um poste em Londres e a usou como arma para bater em policiais.
Tanto Jadis quanto Circe transgridem os papeis tradicionais da mulher. Circe, por governar sozinha numa ilha à época da sociedade extremamente patriarcal que era a Grécia antiga: como afirma Evelien Bracke (2009, p. 91), os homens é que eram encarregados de cantar, e por isso as mulheres não poderiam jamais cantar em público. Por aparecer cantando na Odisseia, Circe adotava um papel de gênero incerto – justamente por não ser humana, e por viver sem a companhia de um homem, é que ela adotava essa prática que de outro modo seria mal vista – como se sua independência e autossuficiência a tornasse de certa forma andrógina, apropriando-se de ocupações masculinas na ausência de homens.
Para Bracke, Circe transgride os limites entre gêneros ao apropriar-se de ocupações tipicamente masculinas da Grécia Antiga, como o canto e seu conhecimento herbário, que a tornam extremamente perigosa:
 
I am not denying Circe’s destructive and fearsome behaviour in the first part of the episode: her danger, however, derives from her transgression of gender-related boundaries rather than from her abilities themselves (…) It is because she is female that her pharmaceutical and singing abilities are dangerous, not because she uses pharmaka and song per se. (BRACKE, 2009, p. 94).
 
Já a feiticeira Jadis, quando foi a Londres, escandalizou as convenções sociais de por vestir-se de maneira inadequada à época: “– Asneira! – disse tia Lera, virando-se depois para a feiticeira. – Saia desta casa imediatamente, sua sirigaita! Ou eu chamo a polícia! – Achava que a feiticeira era artista de circo e, além disso, não consentia braços nus” (LEWIS, 2002, p. 36). Além do traje inadequado, o comportamento de Jadis dissonava completamente do das damas inglesas:
 
Fiz o que pude para mostrar-lhe certas normas de civilidade. E qual foi a minha recompensa? A senhora assaltou – repito a palavra –, assaltou um distintíssimo joalheiro. Levou-me a obsequiá-la com um almoço excessivamente oneroso, para não dizer luxuoso, embora para isso eu tivesse de empenhar meu relógio. E, fique sabendo, minha senhora, nossa família não peca pelo hábito de frequentar casas de penhor, a não ser meu primo Eduardo, quando serviu como voluntário da Cavalaria. Durante aquela indigesta refeição, seu comportamento e sua conversação atraíram a desfavorável atenção de todas as pessoas presentes. Sinto que estou socialmente arruinado. Jamais poderei mostrar o meu rosto outra vez naquele restaurante (LEWIS, 2002, p. 44, grifo nosso).
 
E em outro momento, quando enfrentava uma turba de pessoas e policiais com violência, o tio de Digory novamente chamou-lhe a atenção para seu comportamente socialmente inaceitável:
 
A feiticeira deu-lhe um chute de calcanhar, atingindo-lhe a boca. Com a dor, lábio cortado, a boca cheia de sangue, Digory soltou o pé de Jadis. De algum lugar próximo chegou-lhe o grito tremido de tio André:
– Minha senhora… minha boa senhora… por favor… por favor… comporte-se (ibid, p. 41).
 
Circe e Jadis, como mulheres perversas, têm sua alteridade marcada ainda pelo fato de não serem exatamente humanas: Circe descende dos Titãs e Jadis dos gênios e gigantes. O fato de não serem humanas destaca ainda mais sua caracterização desviante, pois apesar de parecerem humanas, não o são, portanto não se comportam como mulheres normais.
Além de sua altura e força fora do comum, a personalidade de Jadis também não correspondia ao que se esperaria de uma mulher: ela era orgulhosa, ambiciosa, cruel, violenta e sedenta de poder: desejava governar todo lugar ao qual ia. Ela disputara o governo de Charn (seu país de origem) com a irmã, preferindo destruir aquele mundo e todos os seus habitantes do que deixar sua irmã ser a rainha. De fato, seu desejo de governar parecia aliado à sua sede de destruição, sugerindo que ela era incapaz de viver em um reino pacífico:
 
Foi quando soou a voz da feiticeira, clara como um toque de sino e mostrando que, naquele momento pelo menos, ela estava próxima da felicidade.
– Canalhas! Hão de pagar muito caro por isso quando eu tiver conquistado este mundo. Não deixarei pedra sobre pedra nesta cidade. Vou fazer como fiz com Charn, com Felinda, com Sorlois, com Bramandin. (LEWIS, 2002, p. 41).
 
Jadis era indiferente “à alegria, à justiça e ao perdão” (ibid, p. 69): Lewis tentara descrever sua frieza como simples praticidade: “As bruxas em geral são assim. Não estão jamais interessadas nas coisas ou nas pessoas, mas na utilidade eventual destas. São de um espírito prático implacável” (ibid, p. 34).
Apesar da personalidade forte, assim como Circe, Jadis possuía incrível beleza: “(…) uma mulher muito alta (…) com um olhar tão aterrador e soberbo que quase tirava o fôlego. Apesar disso, era bela. Muitos anos depois, já velho, Digory chegou a dizer que nunca vira mulher mais bela em toda a sua vida” (LEWIS, 2002, p. 25). A beleza parece uma característica essencial a essas feiticeiras cruéis, pois como mulheres perversas, são também mulheres sensuais: “Como a feiticeira não estivesse com ele [o tio de Digory] na mesma sala, já se esquecera do quanto ficara aterrorizado, passando a pensar no quanto ela era deslumbrantemente bonita. Ficou repetindo para si mesmo: ‘Que mulher! Que mulher! Que criatura impressionante!’” (LEWIS, 2002, p. 35).
No conto “O sobrinho do mago”, Digory fora enviado por Aslam para colher a maçã da eterna juventude, que seria plantada para proteger Nárnia. Mas, ao chegar à árvore, Digory encontrou a feiticeira, que já havia comido o fruto e, semelhante à Eva na passagem bíblica, tentou convencer Digory a comer a maçã ou levá-la para sua mãe doente, seduzindo-o com suas palavras. Outra vítima da sedução de Jadis foi Edmundo Penvensie. Ela ofereceu-lhe manjar turco encantado (para ele sempre querer comer mais) e prometeu fazê-lo príncipe caso levasse seus irmãos até ela. Para persuadi-lo, ela afirmou jamais ter visto um menino tão inteligente e bonito quanto ele, e disse que se fosse príncipe poderia comer todo o manjar turco que desejasse.
Já a figura de Circe, como já mencionamos, exalava certa dominação sexual, e tentara apaziguar Odisseu oferecendo-lhe seus favores sexuais. Como afirma Evelien Bracke, “Circe’s characterization is construed purely in terms of scatological and carnal pleasure, and she is polarized as dominatrix and whore (BRACKE, 2009, p. 156-157).”
Segunda ela, a figura sexualizada de Circe foi sendo reinterpretada ao longo dos anos, e
 
One might wonder how the figure of Circe came to be connected with pleasure. This element was present in the Odyssey, but I propose that the subsequent tradition misinterpreted – or rather, reinterpreted – the Homeric narrative. (…) while she did have a sexual relationship with Odysseus in the Odyssey, it was not elaborated on or rendered in romantic terms, as was the case with Calypso. The development in Circe’s representation, however, did not occur in a vacuum: indeed, from the sixth century BCE onward, 281 scholars/philosophers who started interpreting the Homeric epics symbolically – started “allegorizing” – interpreted the encounter of Circe and Odysseus as a battle between Odysseus as “reason”, and Circe as “pleasure”. Socrates was the first (in extant literature) to suggest that Odysseus avoided being turned into a pig because of his self-restraint; his crew, in contrast, were transformed on account of their gluttony, since they were unable to resist the food which Circe offered them (…) For Diogenes – as presented by Dio Chrysostom – Circe symbolizes “pleasure” in all its facets: indeed, her drugs are the ultimate temptation. Men who are weak are reduced to animals, trapped by the pleasures they pursued; only strong, temperate men such as Odysseus can withstand the temptation.
(BRACKE, 2009, p. 160-161).
 
Já chamamos atenção para o fato de que Jadis e Circe não se comportavam como as outras mulheres da época,[9] o que fazia com que parecessem de certa forma incivilizadas, pois eram incapazes de se adequarem às normas vigentes na sociedade. Esse traço incivilizado transparece ainda em diversos aspectos: a ilha de Circe, por exemplo, era selvagem como ela, pois havia muitas árvores por todo lado e a terra não era cultivada (domesticada) como se encontrava nos campos gregos. Assim, o espaço à volta de Circe refletia sua própria condição indomada. Jadis, por sua vez, governava as terras de Nárnia, habitada por animais e outras criaturas místicas, como gigantes, ninfas e minotauros, mas não humanos. Ou seja, o local a sua volta também era um ambiente incivilizado que refletia sua própria condição:
 
– Que mundo medonho! – exclamou a feiticeira. – Temos de fugir imediatamente. Prepare a magia.
– Estou perfeitamente de acordo, madame! – falou tio André. – Que lugar mais desagradável! Sem qualquer civilização! (LEWIS, 2002, p. 43).
 
Detestando aquele lugar, ela tenta agredir Aslam, que acaba de criar aquele mundo, atirando a barra de ferro em cima dele. Como ele não mostra sinais de que ficou abalado com o ataque, ela corre para longe dali, como se não suportasse permanecer na presença do leão.
É curioso reparar que Jadis chegara à Nárnia no momento de sua criação, mas não fora capaz de conquistá-la naquele momento: Aslam coroou um homem e uma mulher como rei e rainha de Nárnia, e pedira para Digory plantar uma árvore que manteria a feiticeira afastada por muito tempo:
 
E vocês, narnianos, cuidem, antes de tudo, desta árvore, que é o seu escudo. A feiticeira de que lhes falei fugiu para o norte do mundo. Lá viverá e ficará mais forte em magia negra. No entanto, enquanto esta árvore florir, jamais voltará a Nárnia. Não ousará aproximar-se cem quilômetros da árvore, pois seu perfume, que é alegria, vida e saúde para vocês, é morte, horror e desespero para ela (LEWIS, 2002, p. 68).
 
Durante esse tempo – em que a árvore floria e Nárnia possuía seres humanos[10] – a feiticeira não pôde conquistar suas terras. Somente quando os humanos desaparecem de Nárnia é que Jadis retorna e toma o poder, dominando os animais. De igual modo, seu reinado só chega ao fim quando os humanos novamente vão para Nárnia.
Ao escolher que um homem e uma mulher reinassem, Aslam procurava de certo modo civilizar aquela terra, como se os animais, sozinhos, não pudessem fazê-lo. Centenas de anos depois, quando a feiticeira conquista Nárnia e se autointitula sua rainha, não existiam mais humanos por lá, e os animais sequer se lembravam de que já haviam existido, por isso quando os penvensies aparecem em Nárnia, muitos narnianos e a própria feiticeira não os reconhecem como humanos, perguntando que espécie de criatura se tratavam. É interessante reparar que a feiticeira só pudesse reinar enquanto não houvesse humanos em Nárnia: havia uma profecia de que Jadis só seria derrotada quando quatro humanos chegassem à Nárnia para governá-la, pondo fim “à aflição” (LEWIS, 2002, p. 100), ou seja, um lugar incivilizado, governado por uma mulher selvagem, só poderia ter paz se fosse governado por seres humanos, que o civilizariam. Assim, se os humanos eram inimigos da Feiticeira, então a civilização também o era, e Jadis só teria poder em Nárnia enquanto este permanecesse um país incivilizado.
Embora fosse Aslam, o grande leão, quem de fato matou Jadis, ele sozinho não era capaz de enfrentá-la – e a feiticeira somente seria derrotada chegada dos humanos: “Uma velhíssima tradição de Nárnia já anunciava que, quando dois Filhos de Adão e duas Filhas de Eva se sentarem nos quatro tronos, então será o fim, não só do reinado da feiticeira, mas da própria feiticeira” (LEWIS, 2002, p. 100).
Podemos concluir que Aslam, apesar de seu imenso poder e força, não poderia derrotar a feiticeira sozinho porque sua destruição estava atrelada ao advento da civilização em Nárnia, e, “(…) como sabem, ele é selvagem. Não se trata de um leão domesticado (LEWIS, 2002, p. 132, ênfase do autor), portanto Aslam era incapaz de civilizá-la, necessitando da ajuda dos penvensies.
Jadis, como mulher perversa, só permanecia uma figura dominadora enquanto soberana num local dominado pelos instintos animais. A partir da chegada dos humanos, ela perde sua soberania, como se não pudesse sobreviver num mundo habitado por seres humanos – ou seja, os animais eram a condição de seu reinado. Circe, por sua vez, permanecia senhora do seu castelo (e de sua ilha) transformando os homens em animais, que poderia dominar mais facilmente – a dominação exercida por essas mulheres transparece então em seu poder de transfiguração: se Circe transformava os homens em animais, Jadis transformava os animais em estátuas, que deixava espalhadas ao redor de seu castelo, como se fossem peças decorativas celebrando seu poder.
Outro aspecto comum entre Circe e Jadis que deve ser mencionado é que ambas possuem varinhas mágicas: um objeto que canaliza e direciona seu poder mágico. Pelo seu formato fálico, e principalmente por se tratarem de mulheres perversas, podemos interpretá-las como símbolo do poder masculino que essas mulheres usurpavam (em outras palavras, simbolizavam o órgão masculino que lhes faltava na apropriação do outro gênero). Como um objeto mágico, a varinha simbolizaria o poder masculino: ação (ao contrário de passividade), força, potência etc.
Considerando a varinha como centro do poder da feiticeira, anular o poder da varinha (seja destruindo-a, separando-a da feiticeira ou simplesmente neutralizando-a, como faz Odisseu ao carregar ervas que o tornavam imune à magia de Circe) seria o mesmo que anular o poder usurpado pela feiticeira – destruindo assim a ameaça representada por ela e por extensão neutralizando seu papel dominador ao tornar sem efeito o símbolo do poder masculino usurpado por elas: em outras palavras, é como se castrassem essas feiticeiras, relegando-as novamente à condição de passividade feminina. No caso de Jadis, esta se mostrava impossível de ser derrotada enquanto de posse da vara mágica:
 
Foi tudo obra de Edmundo, Aslam! – disse Pedro. – Se não fosse ele, estávamos derrotados. A feiticeira ia petrificando as nossas tropas. Nada havia que a detivesse. Edmundo, lutando sempre, conseguiu abrir caminho entre os ogros e chegar ao local onde ela acabava de transformar um leopardo em pedra. Ele teve o bom senso de arrebentar a vara mágica com a espada, em vez de atacar diretamente a feiticeira, como os outros vinham fazendo, em vão. Quebrada a vara, começamos a ter alguma chance (…) (LEWIS, 2002, p. 130, grifo nosso).
 
Quanto a Circe, só foi sobrepujada por Odisseu porque ele mostrou-se imune ao toque da sua varinha mágica que, não surtindo efeito, deixou Circe indefesa, ao que Odisseu rapidamente explorou, dominando-a com sua força física.
Se a mulher perversa é considerada incivilizada e associada aos instintos animais, essas mulheres poderosas deixam de ser dominadoras no momento em que são “civilizadas”, quando perdem o poder que detinham e são subjugadas em papéis passivos, geralmente impostos por figuras masculinas (no caso, Odisseu[11] e Aslam) e pelo advento da própria civilização, que é levada à Nárnia pelos quatro Penvensies.
 
 
REFERÊNCIAS
 
BRACKE, Evelien. Of Metis and Magic: The Conceptual Transformations of Circe and Medea in Ancient Greek Poetry. Tese de doutorado. Department of Ancient Classics, National University of Ireland, 2009.143f.
DAVIES, Owen. Witchcraft, Magic and Culture 1736–1951. Manchester: Manchester University Press, 1999.
DIJKSTRA, Bram. Idols of Perversity. Oxford: OUP, 1986.
GIBSON, Marion (Ed.).  Early Modern Witches: Witchcraft Cases in Contemporary Writing. London: Routledge, 2000.
GIBSON, Marion (Ed.).  Witchcraft and Society in England and America, 1550–1750. Cornell: Cornell University Press, 2003.
HOMER. The Odyssey. Trad. Samuel Butler. Maryland: Wildside Press, 2007.
KARLSEN, Carol. The Devil in the Shape of a Woman: Witchcraft in Colonial New England. New York: Norton, 1998.
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2014.
LEWIS, Clive. As crônicas de Nárnia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
THOMAS, Keith. Religion and the Decline of Magic. London: Penguin, 1971.
 
 
 
NOTAS AO TEXTO
 
[1] A partir do século XVIII, a imagem idealizada da mulher era um símbolo de passividade e feminilidade, que na época configurava sinônimos para frigidez sexual. Foram escritos vários manuais de etiqueta normatizando determinados comportamentos (casta, delicada, modesta, gentil), assim como obras ficcionais que representavam esse ideal de mulher idealizada.
[2] As Weird Sisters de Macbeth, por exemplo, possuíam barbas.
[3] O mundialmente famoso tratado em prol da caça às bruxas, que foi utilizado como manual em vários tribunais. Escrito por inquisidores católicos, defendia a ideia de que a mulher era inferior ao homem, sendo mais fraca no corpo e na mente, portanto mais impressionável pelo diabo, tendo em vista sua dificuldade em preservar a fé.
[4] Acreditava-se ainda que essas mulheres perversas, por serem lascivas, despertavam a bestialidade no homem, provocando-lhe instintos animais através de sua sexualidade.
[5] Acredita-se que a Odisseia tenha sido escrita por volta do século VIII a.C.
[6] Seu palácio era cercado por animais que ela transformara ao longo dos anos, como se de certo modo ela os “colecionasse”, mantendo-os à sua volta para continuar escarnecendo deles e assim satisfazer o seu sadismo.
[7] Se a mulher perversa despertava instintos animais no homem, no caso de Circe isso ocorreria inclusive literalmente, pois com sua magia ela obrigava os homens a assumirem uma forma animal.
[8] Ela banha Odisseu e lhe oferece um banquete, além de seus favores sexuais.
[9] Circe, como já mencionamos, não se comportava como se esperava de uma mulher na Grécia Antiga. Quanto a Jadis, em O sobrinho do mago, ela fere as normas sociais da Londres do final da era vitoriana (o conto se passa por volta de 1900), época em que as normas sociais eram ainda muito importantes. O outro conto em que Jadis aparece, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, se passa durante a segunda guerra mundial, momento em que a mulher começava a deixar o ambiente doméstico para ingressar no mercado de trabalho para suprir a mão-de-obra vaga devido à ida dos homes para o front de batalha. Foi um momento de imensa polêmica, pois muitos alegavam que ao assumir serviços tipicamente masculinos (operando máquinas em fábricas, por exemplo) a mulher estava se masculinizando.
[10] O rei e a rainha coroados por Aslam naquela ocasião tiveram muitos descendentes, e a feiticeira não retornou por centenas de anos.
[11] Como já mencionamos, quando Circe é incapaz de transformar Odisseu em um animal, ela perde sua soberania, passando a mostrar-se submissa ao homem que a domina.




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