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Revista Mulheres e Literatura
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Mulheres e Galinhas sem Mendigos: Leitura de "Imitação da Rosa" de Clarice Lispector




 

Mulheres e Galinhas sem Mendigos: Leitura
de “Imitação da Rosa” de Clarice Lispector

Ligia Chiappini
Freie Universität Berlin

Este texto foi lido, pela primeira vez, publicamente, no Seminário Internacional
“Loucos, excêntricos e marginais na literatura latino-americana”,
realizado em Poitiers, França, entre 5 e 7 de junho de 1996.
(…) não chores, que no meu dia,
há mais sonho e sabedoria
que nos vagos séculos do homem
(Cecilia Meireles, fragmento do poema “O motivo da rosa”)
Este texto dialoga com outro, intitulado “Mulheres, Galinhas e Mendigos:
Clarice Lispector, contos em confronto”1 que, por sua vez, dialogava com
“Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar: leitura de Clarice Lispector”2.
Nesses dois textos, procurei responder – inspirada no belo ensaio já
clássico de Gilda de Mello e Souza, “O vertiginoso relance”3
e fundada na análise do conto “Uma galinha”, como alegoria
da condição feminina – o que acontece quando a mulher, míope
e confinada ao lar, sai à rua e encontra marginais, aleijados ou mendigos,
a pobreza selvagem e ferruginosa de Macabeus e Macabéas, a interrogar
sem saber a sua e dela alienação?
Em “Mulheres, galinhas e mendigos” há um parágrafo
que deu origem agora à análise que proponho do conto “Imitação
da rosa”4. Dizia ele :
“Entre “Uma galinha” (1960) e “A Bela e a Fera” (1977),
passaram-se 17 anos de escrita e vários outros contos e romances. A leitura
de ambos hoje nos permite reler a obra de 60 a 77, encontrando sinais de uma
permanente tematização, embora mais disfarçada, da situação
da mulher na cidade que se moderniza e aprofunda selvagemente as desigualdades
sociais, processo em que ela tem um papel importante dentro da classe média
brasileira, na construção do nosso chamado “milagre econômico”.
É ela a principal consumidora; é para ela que os homens dizem
trabalhar; é ela que eles querem comprar e é ela que decide se
vender. “Amor”, “Felicidade clandestina”, “Devaneio
e embriagués de uma rapariga”, “Os laços de família”
e, embora, menos facilmente, “Imitação da rosa”, são,
entre outros, contos que podem ser confrontados sob essa perspectiva” (p.
38).
Por que “menos facilmente”? Porque não há aqui, pelo
menos aparentemente, nem os mendigos, macabeus ou cegos da cidade, nem o mesmo
movimento de ida à rua e de volta à casa, identificado na matriz
“Uma galinha” e nos demais contos citados.
Há muito pouco, aliás, como enredo, neste conto. Trata-se de
uma mulher, recém saída de um sanatório, que espera o marido
para ir jantar com amigos. De repente, olha um vaso com rosas, vé as
rosas e resolve enviá-las à amiga anfitriã, antes do jantar,
pela empregada. Saindo esta com as rosas, Laura – é o nome da mulher
– volta a entregar-se a sua loucura, para espanto do marido que, abrindo a porta,
de volta do trabalho, percebe que ela voltara a partir. E para espanto do leitor
ou da leitora que sentem haver muito mais nesse parco enredo, na loucura de
Laura e naquelas belas, hipnóticas e misteriosas rosas do que se percebe
à primeira leitura.
Uma análise um pouco mais detida desse conto, que me desafiou por muitos
anos, talvez ajude a esclarecer o mistério.
“Imitação da rosa” tem nitidamente duas partes. Nas
primeiras 10 páginas, das 22 que compõem o conto, Laura pensa,
movendo-se muito pouco (vai da sala para a cozinha para pegar um copo de leite
e volta à sala). Pensa em arrumar-se para estar pronta quando o marido
chegar, pensa nas compras e demais afazeres domésticos que fez pela manhã,
na doença que venceu com ajuda de médicos e enfermeiras, nas visitas
do marido à clínica e nos choques de insulina com que aí,
“como a uma galinha indefesa”, a jogavam num abismo .
Esses e outros pensamentos ¾ raros e repetidos¾ vão aparecendo
aos poucos, por meio de um estilo indireto-livre ou daquilo que Norman Friedmann
chama “análise mental”.
Através desta ficamos sabendo também que Laura é dona
de casa e, como as mulheres dos contos já citados de Clarice, casada
com um homem trabalhador e bem sucedido. No caso, Armando que, na guerra velada
dos sexos, busca a paz conversando “com outro homem sobre o que saía
nos jornais”, enquanto a mulher conversa com outras mulheres “sobre
coisas de mulheres”.
Saída da clínica, Laura está “bem” e, estando
“bem”, pode ser esquecida, “voltando à insignificância
com reconhecimento”. Ela é como “uma galinha”, doméstica,
domesticada, pelo pai que a entregou ao padre que, por sua vez, a entregou ao
marido. Tem “uma graça doméstica”, usando “os cabelos
(…) presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas”.
“Ar modesto de mulher”, de “olhos marrons”, “cabelos
marrons”, “pele morena e suave”, parece a mulher de casaco marrom
do conto “O Búfalo”, no mesmo livro. Laura , calma e doméstica,
com seu vestido marrom, “a gola de renda verdadeira e o ar infantil de
menino antigo”
Sem vaidade, ela não se importa de engordar com o tratamento contra
a ansiedade, pois, para uma esposa, “o principal nunca fora a beleza”.
Impessoal como sua casa, “arrumada e fria”, ela é o contrário
de sua amiga Carlota ¾ que parece representar uma nova mulher. Enquanto
Laura “nunca ambicionara senão ser a mulher de um homem “,
Carlota, “que fizera de seu lar algo parecido com ela própria”
, “tinha um modo esquisito e engraçado de tratar o marido”.
Por apagada e “chatinha”, o marido e Carlota ¾ que, moderna,
se aproxima dos homens, repetindo-os¾ não a escutam, ou melhor,
quando percebem que ela está “bem” a tratam com “desatenção
e vago desprezo”. Até a empregada, Maria, com quem ela mais conversa,
“às vezes continha a impaciência”, mas “ficava um
pouco malcriada.”
Maria é parente de Janair, como ela atrevida, o outro da patroa. Esta,
como GH, traz uma falta no olhar: do “filho que nunca tivera”.
A segunda parte do conto começa mais ou menos na metade (o que Jakobson
nos ensinou que pode ser muito significativo), quando Laura vé um vaso
de miúdas rosas silvestres. Também nessa parte haverá idas
e vindas, descontinuidades e obsessivas repetições.
Depois de muitas hesitações, Laura decide enviar as rosas à
Carlota, por Maria que vai sair para sua folga. Arrepende-se logo desse gesto,
mas não há mais tempo de voltar atrás. Maria leva as rosas.
Por que decidira livrar-se das rosas? Porque as vé como risco. Risco
de, pela beleza e perfeição, ser arrancada novamente da vida modesta
de esposa, trazer de volta a “terrível independência”,
tornar-se novamente distante e “super-humana”, como “um barco
tranqüilo emplumando-se nas águas”, auto-centrando-se naquele
“ponto vazio e acordado”, “horrivelmente maravilhoso”.
As rosas são hipnóticas, “perigosamente lindas”, “tão
bonitas” “na sua completa e tranqüila beleza”, “imóveis
e tranqüilas” que parecem artificiais.
Olhar as rosas é olhar a perfeição, a luz da beleza que
“não ia durar muito”. Sem elas a falta é maior e a necessidade
de partir novamente nas asas da loucura, mais urgente.
Acesa, iluminada, sem cansaço, Laura agora imita as rosas, desistindo
da alegria humilde que cabia a uma esposa. O marrom e o sombrio se transfiguram
em “luz que inunda violenta a sala”. Ela agora sorri. O marido é
olhado quase como inimigo. O embaraço, por não ter podido resistir,
é “vaidoso” e o olhar da falta brilha com “a serenidade
do vagalume” .
Altiva, a mulher-rosa desabrocha, inalcansável diante do marido subitamente
envelhecido, agora de novo respeitoso e atento.
A moça da Tijuca que estudara no Sacre-Coeur e lera a Imitação
de Cristo sem nada entender, agora, ao imitar a rosa, imita Cristo.
A flor mais simbólica da cultura ocidental5 que, na Antigüidade,
figura Afrodite, ligada à fertilidade – e que, por aí responde
à falta da mulher estéril -, na tradição cristã
simboliza as chagas de Cristo e o mistério da ressurreição.
Centro místico para os Rosa-Cruz : “Sacre-Coeur”.
Sincrética, Clarice funde nesse símbolo várias dimensões
e tradições simbólicas, místicas e míticas.
E não pára aí. Na alquimia, as 7 pétalas da rosa
representam as 7 etapas no caminho da perfeição: o caminho escolhido
por Laura. E na tradição literária medieval, a rosa é
o eterno feminino, símbolo erótico, ao mesmo tempo sugerindo o
mundo secreto das virgens e corporificando o tema do “carpe diem”.
Assim, altamente erótica, a rosa é símbolo da mulher amada
e desejada, fértil e bela, o contrário da esposa Laura, boba,
marrom e estéril.
Rastrear a simbologia da rosa pode assim explicar um pouco do conto, da personagem
e da sua loucura, mas só isso não resolve a dificuldade que apontei
acima de relacionar este conto com a matriz identificada em “Uma galinha”,
tanto no que diz respeito à condição da mulher classe média
– que se anula no casamento – quanto ao movimento de ida e volta, da casa à
rua e novamente à casa, identificado nesse e nos outros contos citados
atrás.
É preciso dar um passo a mais e notar que “Imitação
da rosa” repete a matriz mas invertendo-a. Lá havia o quotidiano
da dona de casa, a ruptura epifânica quando ela sai à rua, já
apontada por muitos críticos, e a restauração desse quotidiano,
passado o risco da perda do eu em dimensões vitais que o dissolvessem.
Aqui há uma epifania lembrada, anterior ao momento em que se inicia o
conto – a saída no barco da loucura -, seguida da tentativa de restaurar
o eu no quotidiano e, finalmente, o novo salto, talvez irremediável,
nas alturas epifânicas, desvairadas e airadas.
O confinamento aparentemente feliz no lar é negado na viagem sem volta
da loucura. Só a morte da menina de golinha rendada pode dar nascimento
à mulher-rosa. Mas há ainda um detalhe. Trata-se de uma rosa silvestre,
o que parece traduzir a necessária adaptação do nobre símbolo
à realidade brasileira, à selvática, primitiva e discreta
majestade das empregadas, das crianças, dos bichos e das mulheres- galinhas
que, como Laura e Macabéa, seja pela loucura seja pela morte conseguem
virar estrela.
Notas
1Lido no II Congresso de Lusitanistas alemães, em setembro de 1995 e
publicado na revista Lusorama,29 , Frankfurt-am-Main, 1996, p. 34-41.
2 Publicado em Literatura e Sociedade, revista do Departamento de Teoria Literária
e Literatura Comparada, da Universidade de São Paulo, São Paulo,
1996, p. 60-80.
3 Comentário, Rio de Janeiro, 1963, republicado em Exercícios
de Leitura, São Paulo, Duas Cidades, 1980, p.70-91.
4 Laços de Família, Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1965 (1a.
ed. 1960).
5 Assim se refere a ela o Dictionnaire des symboles, de Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, Paris, Seghers, 1974 que, como muitos outros, enumeram as significações
tradicionais da rosa que exploro a seguir, apoiada também na leitura
de Le roman de la Rose de Guillaume de Lorris (de, aproximadamente, 1230), concluído
por Jean de Meun 40 anos depois. No horizonte está ainda o célebre
poema de Ronsard, já em meados do século XVII, “A sa maitresse”,
a cuja insistência no tema do carpe diem parecem responder ironicamente
os motivos da rosa, de Cecília Meireles, que reviram o velho topos dos
poetas homens, agora do ponto de vista da mulher poeta.
 




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