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Revista LitCult
ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





LITERATURA MARGINAL: EXAUSTÃO E PLENITUDE – Daniele Fernanda Feliz Moreira




Daniele Fernanda Feliz Moreira

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

 
Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir as estratégias de performances de grupos marginais após o modernismo brasileiro. Já que, determinados grupos, em períodos distintos, utilizaram-se dos discursos e narrativas literárias do modernismo com objetivos renovadores. Partindo da concepção de John Barth sobre a escrita de Borges, seu texto The Literature of Exhaustion servirá de base para as discussões. Tendo em vista as releituras dos grupos literários, organização e configuração dos mesmos, o trabalho terá como escopo ainda, a análise do texto de Sérgio Vaz e sua ligação com o trabalho de Oswald de Andrade. De modo mais breve, e menos detalhado, será discutido também a atuação dos grupos, perspectivas, organização e como elas conferem legitimidade a essas escritas, uma vez que oferecem releituras com novas perspectivas.
 
Palavras-chave: Literatura; Marginalidade; Cultura; Modernismo.
 
Abstract: This paper aims to discuss the strategies of performance of marginal groups  after the Brazilian Modernism. Certain groups, at different times, used the discourse and literary narratives of Modernism with renovated goals. This paper will depart from John Barth’s text The Literature of Exhaustion, about Borges’ writings, to base our discussion. Aiming at the reinterpretation of literary groups, their organization and their configuration, this paper will analyse Sérgio Vaz’s text and its connection with Oswald de Andrade ‘s work. It will also discuss the activities of these groups, their prospects,  forms of organization and of legitimizing these writings, as they offer readings with new perspectives.
 
Key-words: Literature; Marginality; Culture; Modernism.
 
Minicurrículo: Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ 2011). É especialista em relações etnorraciais e educação pelo CEFET/RJ. Possui mestrado em Relações Étnico raciais pelo CEFET/RJ (2014) com pesquisa em literatura, racismo e ensino. Tem experiência na área de educação, com ênfase em língua portuguesa, suas literaturas e questões culturais. Trabalhou como professora-tutora do curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social pela UFF, atuando principalmente nas disciplinas de Oficina de Texto I e III. É doutoranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente é professora do departamento de Educação da UERJ, leciona disciplinas voltadas para práticas educativas, questões raciais e estudos de Literatura.
 
 
LITERATURA MARGINAL: EXAUSTÃO E PLENITUDE
Daniele Fernanda Feliz Moreira
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
 

  1. Modernismo brasileiro: rupturas e permanências

A literatura brasileira persegue de modo constante atualizar-se de acordo com novas formas de expressão, tendo em si a originalidade, o ineditismo e a novidade. Inspirados pelos movimentos de vanguarda europeias, a semana de 1922 assinala uma importante ruptura no campo das artes. No entanto, será que literatura modernista ou pós-modernista serviu como uma reedição da tradição? Será que as promessas inovadoras, incorporaram-se ao sistema e passaram a ser sentidas como “esgotadas” em sua capacidade inovar, surpreender, interessar?
Para refletirmos sobre o panorama literário contemporâneo, em que cada vez mais a pluralidade de escrita assinala seus espaços, é fundamental salientar a relevância do movimento modernista brasileiro. A semana de 1922, para além da congregação de visionárias concepções artísticas, possibilitou uma aproximação entre linguagens até então bem delimitadas no cenário literário brasileiro. O movimento modernista possibilitou uma descentralização de narrativas. A figura do “eu” literário burguês passou a dividir espaços com o elemento indígena e sertanejo, exemplificado nas obras de Mario de Andrade, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Tais obras foram responsáveis por atualizarem a vertente popular sem representarem preconceito, e como afirma Silviano Santiago: “O romancista apenas escuta a produção poética popular.” Ou seja, o escritor, naquele momento, fazia algo que seria decisivo para maior abertura e pluralidade literária no Brasil do século XXI. O escritor compara Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, com as Bachianas brasileiras, de Villa-Lobos e aponta o caráter duplo da comparação, uma vez que “são obras que navegam tanto em águas europeias quanto em peculiarmente nacionais”. Santiago enaltece ainda o viés positivo e a riqueza literária das expressões populares:
 
“É neste entrecruzar de discursos, já que é impossível apagar o discurso europeu (…) que se impõe o silêncio do narrador-intelectual (…) é aí que se faz ouvir o conflito entre o discurso do dominador e do dominado. É aí que se constitui o texto-da-diferença, da diferença que fala das possibilidades (ainda) limitadíssimas de uma cultura popular preencher o lugar ocupado pela cultura erudita, apresentando-se finalmente como a legítima expressão brasileira”.
(SANTIAGO, 1982, p. 172)
 
O popular obtinha espaço na literatura através de intermediários. Os mediadores desempenhavam papel quase que antropológico, seja em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, ou Os Sertões, de Euclides da Cunha seus escritores construíram narrativas polifônicas, os enredos eram permeados de diversas vozes. Seus personagens carregavam consigo o sotaque, o gesto e expressões linguísticas típicas de seus lugares de origem. No entanto, a literatura brasileira ainda carecia de narrativas construídas por camadas populares. O sertanejo, o indígena, o negro e o pobre estavam sendo retratados nas obras de arte de modo mais autêntico, porém ainda sem protagonismo enquanto artista, produtor. É sabido que ao longo da história da literatura no Brasil, alguns escritores de grupos marginalizados socialmente conseguiram notoriedade em suas produções literárias, caso de Lima Barreto, Machado de Assis e do poeta Cruz e Sousa, autores negros, mas que de alguma forma estavam inseridos em contextos de prestígio, obtiveram educação burguesa e circulavam na classe média.
O modernismo brasileiro foi uma corrente decisiva na abertura temática literária, porém ainda carregava consigo características do romantismo, uma vez que o conhecimento e a incorporação do popular pela escrita literária ocorriam através do ponto de vista burguês/erudito. De certa forma, e com algumas exceções, repetia os moldes lineares realistas do século XIX nas narrativas, utilizando uma construção psicológica dos personagens pautadas em dados da realidade e construção com começo, meio e fim. Os mecanismos de centralidade eram ainda os eleitos pela elite cultural, ou seja, os critérios para eleger uma obra literária de valor estão ligados aos seus méritos estéticos, sua “literariedade”.
A problemática da questão está situada na noção de literatura, que a princípio é ideológica e está engendrada na burguesia. Portanto, os valores estéticos e culturais que vão atestar essa “literariedade” estão sob a ótica desse grupo. O privilégio de eleger obras literárias está ligado à questão de poder. As escolhas não são arbitrárias, a história da literatura brasileira constata tais interesses. A linguagem, o modo de expressar-se e o acesso a leitura e a escrita são requisitos que preenchem e estabelecem a noção de autor. No artigo “Vale quanto pesa” Silviano Santiago discorre sobre o caráter elitista da escrita no país problematizando o papel do autor, do livro, e sua circulação social. O escritor trata da configuração do meio literário brasileiro, destacando suas especificidades e de como a ficção operava as tendências da cultura erudita. Por definição de cultura erudita e cultura popular, Alfredo Bosi define que:
“Se pelo termo cultura entendemos uma herança de valores e objetos compartilhada por um grupo humano relativamente coeso, poderíamos falar em uma cultura erudita brasileira, centralizada no sistema educacional (e principalmente nas universidades), e uma cultura popular, basicamente iletrada, que corresponde aos mores materiais e simbólicos do homem rústico, sertanejo ou interiorano, e do homem pobre suburbano ainda não de todo assimilado pelas estruturas simbólicas da cidade moderna”.
(BOSI, 2009, p. 24)
 
Ao analisar o panorama literário brasileiro após a semana de 1922 é possível constatar rupturas, mas também muitas permanências. O normativismo e o prescritivismo das formas da arte institucionalizada repercutiram ao longo dos anos. Isto porque, seria preciso uma renovação completa não só no âmbito artístico, mas também social. Para que o modernismo fosse uma estética da reciclagem criativa (BARTH, 1984), seria preciso a reutilização do material literário “esgotado” para novas combinações “originais”, ou seja, a reformulação da arte brasileira, uma vez que está centrada nos anseios burgueses.
É somente em 1960 que uma autora semiletrada, sem qualquer auxílio instrucional para a produção literária, lança-se no meio editorial. Carolina Maria de Jesus tem o seu diário, intitulado Quarto de despejo publicado por intermédio de um jornalista. No entanto, Carolina tinha pretensões que iam além de seu diário, já que inicialmente não tinha como intenção publicar seu diário, mas sim, outros escritos ficcionais. O trabalho de Carolina assumiu diversos lugares de equívocos, seja como testemunho, antropológico ou obra exótica, pouco se explorou seu potencial literário. Sua escrita repercutiu por diversos países, Quarto de despejo, seu livro mais famoso, alcançou números surpreendentes para o mercado editorial da época. E então, trinta e oito anos após a Semana de Arte de Moderna, em que se enaltecia e clamava pelo popular, nacional e originário, uma escritora oriunda da favela tinha seu primeiro livro publicado.
A história da literatura brasileira é um território em constante disputa por conferir e instrumentalizar poder, imprimindo visibilidade cultural e social ao indivíduo e também seu grupo. A escrita de Carolina não é pertencente a movimentos culturais e literários. A escritora foi pioneira em um tipo de literatura associado à produção marginal. Para NASCIMENTO (2009), “Literatura Marginal se tornou uma rubrica ampla que abrange a inserção dos escritores no mercado editorial, as características dos produtos literários, um tipo de atuação literário-cultural, ou ainda, a condição social do escritor.” O termo marginal tem acepções diferentes nos períodos da década de 1970 e mais tarde, nos anos 2000. É utilizado por grupos distintos, porém com algumas aproximações ideológicas, são uma possibilidade para o que Barth denomina o escritor pós-moderno ideal, já que não imita e não repudia nem seus genitores do século XX nem seus avós do século XIX. Ele digeriu o modernismo, mas não o carrega nos ombros como um peso.
Conforme apontado por Barth, os gêneros artísticos são concebidos e desenvolvidos por meio da história da humanidade. Portanto, estão sujeitos à exaustão, a repetição, ao menos no espírito de um certo número de artistas, em certos momentos e em determinados lugares. Ou seja, as convenções artísticas podem ser abandonadas, subvertidas, ultrapassadas ou mesmo retomadas contra elas mesmas, para que se formulem novas formas de expressão mais completas. A literatura marginal pode ser compreendida, a partir da perspectiva dos estudos de John Barth como essa possibilidade de estética de reciclagem criativa. Como cita Helloisa Buarque de Hollanda “se redescobriu (ainda muito bobamente) nossa paisagem social, que andava soterrada nos anos medíocres que se seguiram à Semana de Arte Moderna de 1922. De novo, de um novo ângulo, voltou-se a olhar o Brasil (…) o povo, mal visto, desfocado”.
 

  1. Situando a Literatura marginal de ontem e de hoje

Surge em 1970 um movimento denominado “literatura marginal”. Movimento que era “marginal” na medida em que suas condições, bem como sua distribuição, eram feitas à margem da política editorial vigente. Segundo Heloisa Buarque de Hollanda, “era um movimento da contracultura e feito pela classe média”. Surgia uma geração que, influenciada pelo Tropicalismo, tinha como meta partilhar e popularizar a poesia. No contexto de ditadura militar, tal movimento burla os mecanismos editoriais comerciais e de censura. No tocante a linguagem, estrutura e temática havia uma rejeição aos padrões literários então vigentes. Heloísa Buarque de Hollanda assinala que:
“(..) faz-se clara a recusa tanto da literatura classicizante quanto das correntes experimentais de vanguarda que, ortodoxamente, se impuseram de forma controladora e opressiva em nosso panorama literário. Num recuo estratégico, os novos poetas voltam-se agora para o modernismo de 22, cujo desdobramento efetivo ainda não fora suficientemente perseguido. Nesse sentido, merece atenção a retomada da contribuição mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação do coloquial como fator de inovação e ruptura com o discurso nobre acadêmico. Se em 22 o coloquial foi radicalizado na forma do poema-piada de efeito satírico, hoje se mostra irônico, ambíguo e com um sentido crítico alegórico mais circunstancial e independente de comprometimentos com um programa preestabelecido.”
(Hollanda, 1975, p. 56)
 
Formado por pessoas da classe média, letrados, tendo a literatura como um meio de revolução social, e inspiradas no modernismo brasileiro, esses escritores tinham como instrumento de produção e popularização de seus trabalhos o mimeógrafo, ferramenta primordial para reprodução dos livros. A máquina, além de baratear e dinamizar a reprodução, era totalmente destoante do que se fazia nos meios editoriais industrializados. A linguagem também era instrumento de pertencimento ao grupo, as gírias, expressões coloquiais eram muito utilizadas e tinha como finalidade tornar a poesia um elemento mais próximo do popular, o objetivo era se afastar do formalismo acadêmico e estabelecer uma conexão com a rua.
É no final dos anos 1990 e início de 2000 que se difunde e assume relevância nos grandes meios literários um movimento intitulado por Ferréz de “literatura marginal”. A proposta adquire maior visibilidade a partir de outros dois importantes eventos que marcam o cenário cultural nacional. O primeiro é o livro de Paulo Lins, Cidade de Deus. Sua obra foi publicada em 1997 e obteve relevantes críticas positivas que exaltavam o poder de escrita de seu autor. Em 2002 a obra recebe uma adaptação para o cinema e é aclamada pela crítica, e assim os componentes do livro, dentre eles favela, violência e marginalidade, adquirem espaço e até certo ponto, prestígio em espaços hegemônicos. A produção marginal que surge a partir dos anos 2000 tem muito em comum com essa literatura marginal dos anos 1970. O próprio Ferréz, escritor militante da periferia alega que “O mimeógrafo foi útil, mas a guerra é maior agora, os grandes meios de comunicação estão aí, com mais de 50% de anunciantes por edição, bancando a ilusão que você terá que ter em sua mente”. O termo “literatura marginal” é escolhido por Ferréz como forma de designação de sua escrita. Na introdução do livro “Literatura marginal – talentos da escrita periférica”– o autor assegura que: “A literatura marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, isto é, de grande poder aquisitivo” (FERRÉZ, 2005, p. 5).
O enfoque da palavra ‘marginal’ escolhida pelo autor para justificar seu trabalho serve como destaque para designar minorias raciais ou socioeconômicas. Essa é uma importante característica a ser levada em consideração, já que é um fator de diferenciação desse grupo dos demais autores marginais da história da literatura nacional. Carolina Maria de Jesus, quando escreve, não está amparada por um grupo, um movimento. A formação ideológica, crítica e cultural são elementos fundamentais para a coesão do grupo. Apesar das diferenças sociais e econômicas que estruturam os movimentos literários de 1922, 1970 e 2000 existe um entendimento intelectual-artístico decisivo para a produção do grupo, tanto que os comprometidos com os coletivos de contracultura da década de 1970 e os escritores de periferia dos anos 2000 tomam como exemplo e eixo paradigmático o movimento modernista.
Além das aproximações existentes entre as gerações de literatura marginal de 1970 e 2000, é preciso ressaltar que, o escritor Ferréz não só elogia o movimento predecessor alegando que “O mimeografo foi útil”, como também cita João Antônio, escritor que, de acordo com Alfredo Bosi é “Ora, realismo fervido na revolta pende mais para a margem que para o centro da sociedade”. O trecho que encerra a abertura de Ferréz faz referência ao desdém que a elite letrada tem como o povo:
 
“Evitem certos tipos, certos ambientes. Evitem a fala do povo, que vocês nem sabem onde mora e como. Não reportem povo, que ele fede. Não contem ruas, vidas, paixões violentas. Não se metam com o restolho que vocês não veem humanidade ali. Que vocês não percebem vida ali. E vocês não sabem escrever essas coisas. Não podem sentir certas emoções, como o ouvido humano não percebe ultrassons.”
(ANTÔNIO, 2001, p. 34)
 
João Antônio foi um escritor que, além das abordagens temáticas que privilegiasse a boemia e a marginalidade, Antônio era também um crítico de seu tempo: “Assim, grande parte dos escritores que depõem hoje sustenta preocupação vinculada à forma, sob a denominação de um ‘ismo’ qualquer. Lamentável ou incrível. As posições beletristas não mudaram entre nós, sequer um milímetro, nos últimos quinze anos.” Antônio, propõe que haja na literatura uma identificação com a realidade brasileira, já que “(…) carecemos, em essência, é o levantamento de realidades brasileiras, vistas de dentro para fora. Necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da terra”. Esse anseio por representação já era indicado desde o Manifesto do Centro Popular de Cultura (CPC), em 1962, quando se alegava que sem a arte política não existiria a arte popular (HOLLANDA, 1992). É um viés artístico que vinha adquirindo espaço, que tinha um compromisso com o popular. É dessa tendência que os escritores marginais dos anos 2000 vão se valer para a construção de seus textos. A escolha de Ferréz não é aleatória ou acidental, ao optar por dialogar com João Antônio, o autor o faz de maneira consciente.
Mesmo com aberturas no setor editorial, publicações alternativas e maior espaço para novos autores, a literatura brasileira ainda é conservadora e reproduz antigos mecanismos de seleção de centralidade. Uma pesquisa feita em 2012 por Regina Dalcastagnè traça o perfil dos escritores e da escrita dos brasileiros. Foram lidos 258 romances, publicados de 1990 a 2004, pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco. A pesquisa revelou que os autores, na maioria, são brancos (93,9%), homens (72,7%), moram no Rio de Janeiro e em São Paulo (47,3% e 21,2%, respectivamente). Esses dados só enfatizam o quanto ainda é restrito o campo literário.
Nessa perspectiva, a autora também traçou o perfil dos personagens nos romances brasileiros contemporâneos. Eles são, em sua maioria, homens (62,1%) e heterossexuais (81%). As principais ocupações dos personagens masculinos são escritor (8,5%), bandido ou contraventor (7%) e artista (6,3%). As personagens femininas são donas de casa (25,1%), artistas (10,2%) ou não têm ocupação (9,6%). A questão não é diferente no tocante à cor. Os personagens negros são 7,9% e têm pouca voz: são apenas 5,8% dos protagonistas e 2,7% dos narradores. Os brancos são, em geral, donas de casa (9,8%), artistas (8,5%) ou escritores (6,9%). Os negros são bandidos ou contraventores (20,4%), empregados(as) domésticos(as) (12,2%) ou escravos (9,2%). Enquanto a maioria dos brancos morre, na ficção, por acidente ou doença (60,7%), os negros morrem mais por assassinato (61,1%).
É possível perceber a existência de uma literatura que, seja por questões editoriais ou sociais, não é contemplada por esse espaço central e hegemônico. Literatura essa, que não usufrui de prestígio e legitimidade do cânone, já que o mercado editorial está voltado para uma demanda específica que foi ilustrada pela pesquisa. Dos números apresentados por Dalcastagnè e das constatações semelhantes feitas por Silviano Santiago em seu período, é possível refletir sobre o quão restrito é o universo literário no Brasil e o quanto são relevantes culturalmente as produções que infringem as regras pré-estabelecidas desse universo.
 
III. Exaustão e Plenitude
O trabalho desses escritores tem componentes próprios; atuação política, iniciativa editorial, além de uma condição diferenciada quanto ao lugar de fala. É uma característica que está presente tanto no movimento que teve seu auge em meados dos anos 1970, quanto no dos anos 2000. Na década de 1960 os escritores faziam recitais de poesias nas ruas, em conjunto com operários, as apresentações se davam em locais inusitados, a própria linguagem, a própria poesia era performática, construída especificamente para o povo. “Não há lugar aqui para os ‘artistas de minorias’ ou para qualquer produção que não faça uma opção de público em termos de povo’.” Os objetivos do grupo são desvirtuados quando em 1964 ocorre o golpe militar, e então o projeto de expansão cultural para o teatro e as demais artes fracassa.
Já a literatura marginal dos anos 2000 é periférica, oriunda da favela. Suas formas de atuação priorizam este espaço. Há um deslocamento de objetivo quando essa migra de lugar, isso ocorre, mas, no entanto, seus idealizadores a transformam em estratégica. As formas de atuação artística na periferia são quase sempre em formato de saraus, mas há também dança, representada como confronto de hop-hop e grafiti, expressão gráfica típica das ruas.
Essa atuação pode ser considerada um veículo de visibilidade, já que os saraus, os encontros literários e as edições com selos próprios também foram componentes que estimularam a curiosidade das universidades, editoras e imprensa. A favela é um elemento complexo dessa escrita; buscar o entendimento dessas produções discursivas é dialogar com um contexto social até então novo para a literatura. As favelas são localidades que não estão no centro social, político e cultural dos acontecimentos, no entanto, é dotada de pulsão criadora, e grande fluxo de produção. São esses atores sociais que buscam na cultura territorializada da favela agregarem outros valores a essa condição. Tal mobilização assinala uma importante mudança social, já que a periferia passa a elaborar as soluções para os obstáculos encontrados, fazendo com que se desempenhe autonomia e protagonismo em seu destino. Essa iniciativa é permeada pela valorização do morador da periferia, sua cultura, seus hábitos, musicalidade e formas de expressão. Sérgio Vaz revela que:
 
“Esse novo artista da periferia é um artista cidadão. Ele não faz a arte só pela arte, ele representa as pessoas que não têm voz, não têm teatro, não têm cinema. É um movimento político apartidário (…). Talvez com menos dinheiro, menos condições, menos espaço. Mas, ainda assim, é uma efervescência cultural. As pessoas se apropriaram dos bares, tem cinema na laje, botecos, becos e vielas”.
(Jornal do Brasil, Cultura, 02/11/ 2012)
 
 
O autor destaca uma apropriação do espaço favela como um território possível para a difusão cultural, revelando a importância do artista periférico. Ele trata essa postura como representação do que seria essa renovação de um espaço. O destaque que esses eventos adquirem possibilita um olhar para as regiões que antes eram negligenciadas, como cita Ferréz “mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.” Os eventos culturais alteraram as rotinas das comunidades, pois os grupos que prestam serviços aos moradores não são somente as ONGs (organização não governamental) de fora, mas sim os próprios cidadãos empenhados na transformação daquele espaço.
É possível perceber que em três momentos históricos distintos, em 1922 com a semana de Arte Moderna, na década de 1970 com os CPCs da Literatura Marginal e nos anos 2000 com a articulação dos moradores de periferia na criação de um movimento cultural artístico-literário há tentativas de reciclagem criativa. Mas, do ponto de vista da efetivação da proposta, somente as literaturas marginais da década de 1970 e dos anos 2000 conseguem pôr em prática tal empreitada. Isso porque, buscam suas bases no Modernismo e o superam, ao menos em seu intuito objetivo. O Modernismo tinha como ideal, além da antropofagia, a popularização da arte no Brasil. Nessa perspectiva imediata, ele fracassa. Da configuração da semana de arte moderna de 1922 até as publicações e manifestos artísticos, nada é de ampla circulação além do universo burguês. A literatura marginal de 1970, idealizada a partir da semana de 1922 obtém alguma aproximação com o público porque encontra na linguagem um meio de mediação artística. Além de fazer do modo de distribuição um recurso de aproximação relevante. Nos anos 2000, analisadas minunciosamente a semana de 1922 e a aprendizagem da poesia popular da década de 1970, a literatura produzida na periferia refaz o manifesto antropófago, de Oswald de Andrade.
Relevante ícone, agitador cultural e escritor, Sérgio Vaz é conhecido por conceber o primeiro Sarau permanente da periferia. Autor do livro Literatura, pão e poesia, propõe uma Semana de Arte da Periferia nos moldes semelhantes à Semana de Arte Moderna de 1922. Conforme Oswald, Sérgio Vaz elabora um manifesto. Intitulado “Manifesto da Antropofagia Periférica”, o texto de Sérgio Vaz recupera os anseios modernistas no que diz respeito à questão da divulgação e valorização da cultura nacional. No entanto, o trabalho de Vaz está centrado na periferia. O primeiro verso do manifesto expressa essa concepção: “A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor.” O escritor se vale do manifesto antropófago de Oswald de Andrade publicado em 1928, ícone da expressão modernista brasileira. “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”
A noção de antropofagia é fundamental para a compreensão do movimento modernista brasileiro, uma vez que, a ideia de criação cultural recebe um significado muito diferente do até então explorado naquele momento. Oswald de Andrade ao cunhar o conceito de antropofagia estabelece o canibal como agente, como aquele que transforma a cultura alheia e a ressignifica a partir de suas perspectivas culturais e sociais. Oswald reflete sobre a questão de maneira descontraída em seu manifesto antropofágico: “Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.”
No fragmento exposto, o autor modernista reitera com ironia a importância do Brasil no estabelecimento do humanismo europeu do século XVIII, baseado nos princípios da “liberdade, igualdade e fraternidade”, que não se consolidaram. Prova disso é a Primeira Grande Guerra com que se inaugura o século XX na Europa. Sendo assim, propõe a Revolução Caraíba, cujo fundamento é a antropofagia cultural de colonizados e colonizadores. A construção de Sérgio Vaz transforma antropofagia em periferia. O ato de se apropriar de outras manifestações culturais e dar um novo sentido a partir de uma ótica singular, também pode ser concebida sob o viés periférico.
Sérgio Vaz exerce a antropofagia a partir do próprio cenário cultural brasileiro. Se a antropofagia pode ser entendida como uma forma de a arte brasileira se apropriar de elementos culturais hegemônicos, como por exemplo as vanguardas europeias, a periferia, na visão de Sérgio Vaz, também pode se mobilizar no sentido de se apropriar desses elementos eruditos e ressignificá-los. Oswald assinala que a antropofagia é um fator de união social, econômica e filosófica. Sérgio Vaz constrói sua proposta a partir do amor, da dor e da cor. Os três eixos selecionados por Vaz são significativos e ajudam a compreender o conceito de periferia estabelecido por ele. Ao citar dor, o poeta se refere à experiência da violência e da escassez enfrentada pela população mais pobre e consequentemente negligenciada socialmente. Essa parcela, constantemente ignorada é composta por maioria negra, ressaltando assim, outro componente fundamental: a questão racial. Mesmo diante da exclusão social causada pela cor, gerando dor, Vaz cita ainda o amor como componente desse núcleo periferia. O amor pode ser entendido como a solidariedade necessária à sobrevivência. Idealizada a partir do movimento modernista de 1922, a Semana de Arte Moderna da periferia, elaborada em 2007, contou com diversas semelhanças e alusões ao primeiro evento paulista elaborado na primeira metade do século XX. Exposições artísticas, danças, manifestações musicais e folclóricas formaram o repertório da Semana Periférica.
Sérgio Vaz afirma se apropriar da ideia de “Semana de arte moderna” com intuito de dar visibilidade às demandas da periferia. Ou seja, Sérgio Vaz tem consciência da apropriação de um significativo e marcante acontecimento da alta cultural brasileira e o transforma com intuito de subvertê-lo e obter visibilidade, reivindicando assim, atenção para a periferia. No manifesto da antropofagia periférica o escritor assinala:
 
“Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de uma futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade.”
(VAZ, 2011, p. 27)
 
O escritor atribui à arte uma função social, capaz de combater injustiças e, essa arte só pode vir da periferia, uma vez que, “A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.” O princípio da autonomia é constante no manifesto de Sérgio Vaz. E, a figura central dessa autonomia é o artista-cidadão. Nesse sentido, é possível perceber a influência de Oswald de Andrade no texto de Sérgio Vaz. Oswald critica o sistema, as injustiças e a previsibilidade dos eventos:
 
“Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. “
(ANDRADE, Ano I, no I, maio de 1928)
 
Ao ajustar sua crítica ao pensamento oswaldiano e recriá-lo, Sérgio Vaz não só valida a importância do movimento modernista brasileiro de 1922, como o retoma, atualiza-o aplicando a sua realidade. O discurso de Oswald é então melhorado, porque encontra aplicabilidade. Sérgio Vaz também tece uma crítica relacionada aos meios de produção artística, o pouco incentivo governamental, vaidades de indivíduos relacionados com o meio e a mercantilização da arte: “Miami pra eles? “Me ame pra nós!” Contra os carrascos e as vítimas do sistema. Contra os covardes e os eruditos de aquário. Contra o artista serviçal escravo da vaidade. Contra os vampiros das verbas públicas e da arte privada” (VAZ, 2011, p. 27).
No manifesto antropofágico de 1922, Oswald de Andrade já mencionava algo muito semelhante a essa crítica ao meio artístico. Ao afirmar ser “contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida (…) contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.” O escritor moderno critica a falta de autonomia e condena a repetição das artes e das culturas europeias sem questioná-las ou adaptá-las ao modo brasileiro. Ele afirma: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” A repetição sem adaptação, afastada dos elementos culturais brasileiros parece estúpido na visão oswaldiana. Em consonância a essa postura, Sérgio Vaz estabelece uma intertextualidade pensada, calculada e adaptada a realidade periférica. Vaz consome todo o texto de Oswald de Andrade e o digere de maneira peculiar, sensível e inteligente:
 
“A periferia unida, no centro de todas as coisas. Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala […] contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.”
(VAZ, 2011, p. 28)
 
De acordo com Sérgio Vaz, a cultura é uma importante solução para o problema da marginalização social da periferia. Oswald também acreditava que a democratização cultural era uma questão importante, já que ele idealizava: “A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”. As releituras da produção e ideologia modernista ainda encontram eco nas escritas contemporâneas. Para Ihab Hassan a ficção pós-moderna apenas reativaria, num espírito de subversão cultural e anarquia, a criatividade reflexiva e narcisista do Modernismo. Porém, mais do que reativar, o trabalho de Sérgio Vaz se apropria e a cria a partir de Oswald. Barth, ao tratar da exaustão da literatura, aponta principalmente para a estética do alto modernismo, já superada em sua essência. O autor afirma que a literatura não se esgotará jamais não porque um texto literário em particular seja inesgotável, mas sim por conta de sua significação, que está sujeita, por meio dos leitores, ao tempo, espaço e a linguagem.
 
Bibliografia Consultada
BARTH, John. The Friday Book. Baltimore, John Hopkins University Press, 1984.
BARTH, John. The Literature of the Replenishment. The Friday Book: Essays and Other Non-Fiction. London: John Hopkins University Press, 1984.
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1984.
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