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GÊNERO, PERVERSÃO E SUBVERSÃO EM CLARICE LISPECTOR E ADÍLIA LOPES – António Ladeira




GÊNERO, PERVERSÃO E SUBVERSÃO

EM CLARICE LISPECTOR E ADÍLIA LOPES

 

António Ladeira

Texas Tech University

         Este trabalho estrutura-se em torno de algumas perplexidades que surgiram a partir de leituras de obras de Clarice Lispector e de Adília Lopes. As perplexidades converteram-se em hipóteses que neste trabalho exploro de forma comparativa. O leitor, por outro lado, questionar-se-á quanto às justificações para se estabelecerem aqui leituras comparativas entre uma autora inegavelmente canônica no campo das letras brasileiras, Clarice Lispector, e uma autora ostensivamente exterior ao canone das letras portuguesas – Adília Lopes – embora a recepção desta última evolua gradualmente, na minha opinião, em direcção a um reconhecimento cada vez mais generalizado. Clarice Lispector, como é sabido, faleceu em 1977 depois de uma muito produtiva, influente, e, em muitos aspectos, “respeitável” 1 carreira literária; Adília Lopes nasceu em 1961, e, embora já tenha publicado cerca de 21 livros em Portugal desde 1985 (obras que deram origem a inúmeras traduções estrangeiras) dela se espera que continue por muitos anos a acrescentar títulos à sua considerável bibliografia.
É surpreendente também o seguinte: a autora brasileira é uma famosa “prosadora exclusiva” (ou seja, não se lhe conhecem relevantes incursões no campo da poesia) ao passo que a outra, Adília Lopes, é estuturalmente, fundamentalmente e oficialmente uma autora de poemas. A minha justificação para estabelecer uma espécie de ‘ponte atlantica’ não só entre autoras que ocupam posições diferentes nos respectivos canones mas que trabalharam em géneros diferentes justifica-se da seguinte maneira: Clarice Lispector, embora indefectível prosadora, esconde, segundo alguns (entre os quais me incluo) uma importante dimensão lírica; por outro lado, Adília Lopes, embora poeta, raramente resiste ao fascínio da narrativa. Segundo Antonio Candido, “o esforço de invenção da linguagem” – tal como surgiu no início dos anos quarenta com Guimarães Rosa e Clarice Lispector – inaugura uma nova era de renovação na prosa brasileira. Diz ainda o crítico brasileiro que Perto do Coração Selvagem “com todas as suas inabilidades juvenis”, continha a habilidade de remeter a ‘a palavra’ e não já o ‘tema’, “para o centro de tudo”(Candido, Antonio. “Liminar: no começo era de fato o verbo” xix).
De Adília Lopes afirma a crítica Flora Sussekind o seguinte, em posfácio à sua única edição brasileira até à data: “Os poemas de Adília Lopes quase invariavelmente contam histórias. E fazem  questão de deixar isso claro.“ (“Com outra letra que não a minha” 203).
Neste trabalho, balizando-me em algumas premissas do corrente debate sobre ‘estudos do género’ procuro assinalar e estudar potenciais pontos de contacto e de dissidência entre as duas autoras tanto a nível das suas preocupações temáticas, quanto relativamente ao que interpreto como manifestações das respectivas poéticas. Em Adília Lopes recorro sobretudo ao livro Obra, do ano 2000, que reúne a produção poética da autora publicada até então; em Clarice Lispector cinjo-me principalmente a três livros que coligem contos e textos curtos: A Legião EstrangeiraLaços de Família e A Via Crucis do Corpo. Procuro analisar, comparativamente, os seguintes aspectos: a construção e gestão públicas, emboratextuais, da imagem do autor; as manifestações da voz poética e da voz narrativa em, respectivamente, Adília Lopes e Clarice Lispector; a questão do género sexual na sua relação com o género literário e com o fenómeno literário; a perversidade nas relações entre géneros sexuais enquanto decorrências de um patriarcalismo ocidental e luso-brasileiro.
         Estudar-se a questão do género na obra de Lispector através de perspectivas feministas tornou-se, ultimamente, uma abordagem tão óbvia que pode considerar-se um lugar-comum. Segundo Anna Klobucka  no artigo “In Different Voices: Gender and Dialogue in Clarice Lispector’s Metaficion”, esta tendência da crítica é problemática sobretudo quando se limita a análises meramente “temáticas” da obra:
 
 
Not surprisingly, in recent years Lispector’s fiction spurned a   considerable number of feminist readings, for the most part thematic          interpretations of her novels and stories as chronicles of the stiffling          entrapmnent experienced by female protagonists within the limitations    of their socially acceptable roles as wives and mothers. . .(Klobucka,         “In Different Voices” 156-157)
 
 
Este tipo de abordagens contém ainda a desvantagem de cair frequentemente no que Klobucka considera ‘uma espécie de biografismo’, que ela denuncia da seguinte maneira:
 
 
In fact, as Seymour Chatman reminds us, ‘the implied author’ (what I have been calling here the extra-textual author) ‘can tell us nothing. He, or better, it has no voice, no direct means of communication. It instructs us silently, through the design of the whole work, with all the voices, by all the means it has chosen to let us learn.” (Klobucka, “In Different Voices” 160)
 
 
 
 
 
 
O cerne do seu argumento neste artigo situa-se na defesa de uma outra possibilidade oferecida à leitura crítica – que Anna Klobucka prefere e que procura encetar neste mesmo trabalho a que me refiro: “As I hope to demonstrate, it is particularly Lispector’s late novels. . . . that offer a high promising basis for reaching beyond mere thematic criticism, while at the same time remaining deeply involved with feminist problematics.(“In Different Voices” 156).
Embora a minha abordagem também se filie numa já longeva tradição de questionamento temático do texto, o meu objectivo neste trabalho é justificar e estruturar argumentos quanto às poéticas literárias e economias do género sexual das autoras, procurando ultrapassar uma tendência que a crítica apontou informadamente e oportunamente. Ao seleccionar textos curtos de Clarice Lispector em vez de textos de maior folêgo e fama (como é o caso dos romances) procuro abordar o objecto de estudo de modo mais microscópico do que habituamente se faz, questionando não só o texto como um todo mas também como um conjunto relativamente fluído de fragmentos; procuro, assim, interrogar o fragmento como um verso hipotético, operação autorizada pelas palavras anteriormente citadas de Antonio Candido e de inúmeros outros críticos.
Considero da maior operatoriedade procurar interpretar as construções de ‘autoria’ presentes nos universos textuais destas autoras. Ou seja, é importante, julgo eu, interpretar a imagem de si mesmas, enquanto escritoras, que as autoras transmitem ou procuram transmitir ao mundo das letras que as escuta atentamente, transformando-as – salvaguardadas as devidas diferenças — numa espécie de estrelas de cinema do firmamento literário, numa espécie de sonhos de Macabéa. A razão que subjaz a este meu projecto é simples: é que estas ‘construções’, geralmente produzidas em suportes considerados meta-literários, para-literários ou infra-literários (tais como entrevistas, aparições televisivas, notícias de jornal, etc) contém tanto de efabulação, mitificação e auto-mitificação literária e artística – ou seja, de ‘construção’ – quanto os textos convencionais das autoras, aquilo que tradicionalmente se designa por obra, da qual habitualmente se excluem aqueles textos marginais ou marginalizados.
No caso de Clarice Lispector, se é que posso falar nestes termos, refiro-me à indústria da construção da imagem pública da escritora – que esta, de certa forma, ‘administrou’ de longe ou acompanhou cuidadosamente – e que se agudizou sobretudo após o retorno de uma longa temporada, de cerca de 15 anos, passada no estrangeiro. Segundo Olga Borelli, crítica e amiga, Clarice Lispector dizia-se, com simplicidade, meramente “uma dona de casa que era escritora”, procurando assim, talvez, contrariar (não deixando, no entanto, de adensar) a mistificação e mitificação de que era alvo com respeito ao seu estatuto pseudo-romantico de escritora duplamente misteriosa: enquanto alguém que escreve coisas ‘misteriosas’, isto é, cronicamente mal-entendidas ou falhadas pela crítica, e que cultiva uma pose pública imbuída de carisma e enigma. Clarice Lispector é alguém que reluta em dar entrevistas mas que, no entanto, as vai dando, criteriosamente ao que parece, argumentando necessidade de dinheiro, recusando o estatuto de escritora profissonal, pois apenas “escreve quando lhe apetece”. Esta postura pode revelar, pois, ser uma dona de casa extremosa a ponto de procurar dinheiro em todos os lugares possíveis, mesmo os pouco recomendáveis; ou, pelo contrário, indicia não ser nenhuma dona de casa convencional mas uma escritora a tempo inteiro, ainda quando a sua outra função de mãe a obriga a vigiar os filhos, obrigação que cumpre ao levantar intermitentemente os olhos da máquina de escrever que mantém no colo. Clarice Lispector é uma escritora que, na famosa e impressionante última entrevista concedida à “TV Cultura” em 1977 (agora disponível na internet) parece gerir e controlar habilmente o script da entrevista literária através da sua conhecida combinação de altivez aristocrática e de simplicidade nordestina; recusando supersticiosamente nomear o romance que teria terminado – A Hora da Estrela – ou discorrer sobre aquele outro que estaria escrevendo – postumamente publicado com o título Um Sopro de Vida. Termina a entrevista com aquele que é talvez o seu momento mais impressionante e, ao mesmo tempo, mais ‘literário’: dizendo que “está morta”, falando já do interior do seu “túmulo”. 2
Adília Lopes, que publicou desde 1985 em volumes de circulação mínima – muitos deles plaquettes – e de modo quase invisível (com uma recepção constituída por muito poucos trabalhos de outros tantos críticos) converte-se imediatamente naquilo que se pode chamar uma figura mediática quando publica a primeira compilação das obras completas no ano 2000. O caso de Adília Lopes é, num certo sentido, oposto ao de Clarice Lispector, embora de natureza equivalente. ‘Oposto’ porque enquanto a autora marginal ao establishment literário que foi durante muitos anos, o valor da sua exposição mediática residiu no inesperado da rapidez com que se alçou uma mera ‘dona de casa’ (embora sem marido nem filhos) ao estatuto de personalidade televisiva, facto a que não será alheio o gosto contemporaneo pelos reality shows. Com a ajuda de críticos como, por exemplo, Osvaldo Manuel Silestre, que nela viram porventura a epitôme da anti-literatura e da anti-poesia, o sintoma simpático de uma espécie de apocalipse da linguagem poética em tempo de globalização e da pós-modena desieraquização dos discursos, Adília Lopes converte-se, literalmente do dia para a noite, na poetisa ‘pop’ que há muito dizia ser. Nos media portugueses mas sobretudo na televisão, durante fundamentalmente um período de cerca de três ou quatro anos, Adília Lopes surge frequentemente em Talk Shows e outros programas de cariz popular, vestida tradicionalmente como uma avó portuguesa apesar de ter pouco mais de quarenta anos, parodiando a sua própria poesia (que é, já de si, paródica) e a poesia em geral – quando, por exemplo, executa as suas famosas performances poéticas. Convidada a ler os seus poemas, destrói-os literalmente – dinamitando-lhes a questionável aura que ainda lhes resta – lendo-os a uma velocidade de tal modo vertiginosa que nenhum ouvinte a pode seguir. Ou então selecciona as passagens que contém as expressões mais abjectas e mais afastadas da solenidade e da dignidade das convenções literárias portuguesas. Aliás, o nascimento de Adília Lopes enquanto figura pública, ou autora de happenings ou performances poéticas, parece situar-se numa conferência sobre poetas acontecida em 1995, na Universidade de Coimbra, onde participou o poeta  americano Hugo Williams, que publicaria no Times Literary Supplement uma peça em reacção ao evento: 3
 
 
Are we to take her black, housewifely skirt, neat short hair and embroidered blouse at face value? She reads her poems in a prim, schoolgirlish way, but there is something going on here which leaves her straight-faced crowd smiling in mild shock and me re-evaluating my reading wardrobe. This is what I call ‘Performance Poetry’ (Williams, “ ‘Freelance’ ”)
 
 
A construção e constituição da instancia autoral assume outras dimensões, desta feita no ambito do texto impresso.  Por exemplo, ambas as autoras – ou as respectivas vozes autorais em sua substituição – vêem as suas próprias relações com a escrita de forma contraditória. O que me interessa particularmente são os pontos de contacto que existem nestas contradições. Adília Lopes, por exemplo, afirma numa entrevista que morreria “mentalmente” se não pudesse escrever. Clarice Lispector, confrontada com a mesma questão, afirmou que “morreria verdadeiramente”. Numa entrevista dada em 1976  a um colaborador de O Globo, assistimos ao seguinte diálogo:
 
 
– Porque você escreve?
– Vou lhe responder com outra pergunta? – Porque você bebe água?
– Porque bebo água? Porque tenho sede.
– Quer dizer que você bebe água para não morrer, pois eu também.   Escrevo para não morrer. 4
 
E, no entanto, no interior das obras convencionais de ambas, coexistem momentos em que tanto se confirma a importancia vital e redentora da vocação literária – um mito profundamente romantico, e, num certo sentido, profundamente masculino – como se nega esta mesma importancia. Adília Lopes afirma: “Evito escrever/ e vivo como escrevo” (Lopes,Obra, 55). Clarice Lispector apresenta o seguinte diálogo no conto “O Homem que apareceu”, no qual uma escritora bem sucedida dialoga com um escritor falhado que é um alcoólico conhecido da vizinhança. A narradora-protagonista começa por afirmar:
 
–  Eu também entendo você.
– Você? A você só importa a literatura.
– Pois você está enganado. Filhos, família, amigos, vêm em primeiro          lugar.
– Olhou-me meio desconfiado, meio de lado. E perguntou:
– Você jura que a literatura não importa?
– Juro, respondi com a segurança que vem da íntima veracidade. E   acrescentei: qualquer gato, qualquer cachorro vale mais do que a literatura.
– Então, disse muito emocionado, aperte a minha mão. Eu acredito    em você.
(Lispector, “O Homem que apareceu”, 47-48)
 
 
O que esta passagem encerra de mais significativo e, ao mesmo tempo, de mais cruel, na minha leitura, é o facto de a declaração que retira importancia à literatura ser proferida pela mulher, escritora de sucesso, ao homem bêbado, desfeito ao fim de uma vida de traumas por ter sido soldado e de angústias por não ser escritor. A literatura, diz ela, não tem qualquer importancia, ou melhor, tem tanta importancia como qualquer gato ou cachorro. Se quisermos reconhecer Clarice Lispector-entidade empírica nesta voz narrativa – uma mulher que é um óbvio caso de sucesso  e de serenidade no ambito do perigoso jogo literário – fala-se de literatura com a leveza de alguma coisa relativamente à qual só os perdidos, ou os equivocados,  investem a sua vida. A postura contraditória e heróica da interlocutora-mulher – a mulher que vingou enquanto autora sem se deixar consumir pela literatura – só enfatiza a derrota do interlocutor-homem, aquele que se deixou vencer pela literatura, ou seja, pelo fracasso do projecto da autoria, pelo desejo incumprido de ser um autor conhecido ou, pelo menos, lido. Naturalmente que o homem alcóolico também poderá ser – e deverá, provavelmente, sê-lo – um alter-ego de Clarice Lispector. No entanto, esta possibilidade não diminuiria a crueldade da conversa tida com o homem alcoólico, nem a violência que esta contradição, sobre a importancia da literatura, encerra. Em A via crucis do corpo, a voz narrativa rejeita, retoricamente, uma vez mais, a literatura: “Pois é. Sei lá se este livro vai acrescentar alguma coisa à minha obra. Minha obra que se dane. Não sei por que as pessoas dão tanta importancia à literatura. E quanto ao meu nome? Que se dane, tenho mais em que pensar.” (“Dia após dia” 65)
No conto infantil A mulher que matou os peixes, a protagonista (novamente uma escritora com consideráveis coincidências biográficas com Clarice Lispector) justifica o facto de ter morto os peixes com as suas obrigações e distrações de escritora; por outras palavras, relega para a escrita, e não para ela mesma, a responsabilidade de não ser uma competente protectora das criaturas deixadas à sua guarda – crianças e animais – uma responsabilidade (por vezes dolorosamente) percepcionada como feminina no universo de Clarice Lispector: “Mas era tempo demais para deixarem os peixes comigo. Não é que não seja de confiança. Mas é que eu sou muito ocupada, porque também escrevo para gente grande.” (Lispector, A mulher que matou os peixes). 5
Em Adília Lopes, num dos poucos momentos da sua obra em que se assiste a uma referência à escritora brasileira, escutamos a seguinte interpelação em tom epistolar:
 
 
Clarice Lispector
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
fiquem os peixes
como disse Santo António
aos textos.
(Obra 308)
 
 
A questão da articulação entre gender e genre é extremamente produtiva em Adília Lopes.6 A poeta portuguesa escolhe o género lírico – embora na sua vertente paródica, irónica, provocadora, pós-moderna por excelência – conhecendo bem os riscos que se colocam às mulheres-poetas. Estas, para vingarem como escritoras, necessitam de construir uma genealogia a partir de materiais (ou antepassados) fragilíssimos ou não-existentes; devem  ultrapassar, evocando Bloom, para além da “ansiedade da influência”, a “ansiedade da autoria” – a que Susan Stanford Friedman chama “genre anxiety”. Como lemos na famosa obra Shakespeare’s Sisters, há indícios de a que a mulher, enquanto novelista:
 
 
Sees herself from the outside, as an object, a character, a small figure in a large pattern, the lyric poet must be continually aware of herself fom the inside, as a subject , a speaker: she must  be, that is,  assertive, authoritative, radiant with powerful feelings while at the same time absorbed in her own consiousness – and,  hence, by definition, “womaly”, even freakish. (Gilbert, Shakespeare’s Sisters, xxii )
 
 
A questão do génio, indissociável das noções romanticas mas igualmente modernas do poeta e da poesia mitificados, está intimamente associada à masculinidade. Afirma a crítica Gretchen Schultz:
 
 
The notion of genius upon whih the creation of poetry depended presumed a masculine identity. Romantc poetry (from the Greek poiein, meaning to make or create) figured its maker as a solitary prophet having extraordinary insight and creative powers. The evasive associaton of poetic genius with masculinity left no room for women poets. (Schultz, The Gendered Lyric, 5)
 
 
Embora Adília Lopes defenda, de modo sui generis, reconheço, a dignidade e a autenticidade lírica do seu exótico projecto poético, ao afirmar, por exemplo, em A Árvore Cortada “quanto mais prosaico/, mais poético” (cit. em Coelho, “O meu Reino por um Espelho), o crítico António Guerreiro segue o exemplo de vários outros ao negar-lhe assento no panteão dos poetas, que é quase inteiramente constituído por poetas-homens. Afirma António Guerreiro:
 
… é isso que a desloca frequentemente para uma zona de riso, permitindo perigosas caricaturas (que a autora tem propiciado, devemos reconhecer, nas suas exposições televisivas)… sem que isso se traduza em pathos, porque, nesta poesia, só há trágico na medida em que ele coincide com o ridículo.”  (Guerreiro, “A Morte do       Artista”).
 
Segundo Osvaldo Manuel Silvestre “o problema de Adília” (problema que o crítico interpreta, no entanto, como uma espécie de distinção num meio que ele entende estar em decadência):
 
… reside precisamente aqui; nos seus textos o mundo fala tanto como         a poesia, não reconhendo a esta nenhum direito fundamental, são        textos que se deixam invadir por todo o tipo de ruídos e detritos contemporaneos … os textos de Adília deixam-se devorar por essa          gramática unversal … o texto não protesta nem se indigna; não arregaça as calças (ou as saias) enquanto a enxurrada passa.     (Silvestre, “Adilia Lopes Espanca Florbela Espanca” )
 
 
No entanto, Adília Lopes, a mulher, a ‘entidade empírica’, se se quiser (e mesmo Adília Lopes-voz poética, embora por outros meios) parece defender ferozmente uma filiação na tradição da respeitabilidade literária:
 
 
– Mas nos poemas de Sophia [Mello Breyner Andresen] digamos que há uma aspiração ao sublime enquanto que os seus poemas, já houve quem escrevesse, tem um efeito de des-sublimação. Vê neles isso?
–Não, não vejo.
– Fala de baratas,  de batatas e conta anedotas e faz jogos de linguagem.
– Sim, mas pode chegar-se ao sublime por ai…
(Vaz Marquez, “Entrevista de Adília Lopes”; parêntesis rectos meus)
 
 
Não deixa de ser sugestivo o facto de Adília Lopes recusar o termo
politicamente correcto ‘poeta’, preferindo, ao contrário da maioria das mulheres-poetas em Portugal, segundo suponho, o termo ‘poetisa’, com o qual, aliás, estabelece um jogo paródico: “em vez de me dizer poetisa podia dizer-me profetisa (ou pitonisa ou sibila ou bruxa)” (Lopes, “Entrevista”). Para além da postura paródica, esta opção de Adília Lopes pode reflectir uma orientação pós-feminista, como sugere Anna Klobucka no artigo citado. Ao preferir “poetisa” a “poeta”, sugere a crítica a que me referi, a autora poderá estar a seguir o exemplo recente  de certos grupos minoritários nos EUA, que terão transformado palavras que outrora  constituiam insultos vergonhosos – como, por exemplo, a palavra “queer” – em termos de que presentemente se orgulham e com o auxílio dos quais defendem e constrõem as suas identidades ameaçadas. Adilia Lopes deseja certamente a dignidade que a palavra “poeta” encerra, e certamente rejeitará a diminuição, a discriminação e o sexismo associados à palavra “poetisa” – no entanto, a via que encontrou – e de modo genial – para recuperar essa dignidade foi, parodicamente, recuperar o termo antigo, estigmatizado, e usá-lo até à exaustão, desestigmatizandoo.
Como tinha sugerido, o tipo de problemática que resulta da relação tensa entre genre e gender, como descrevi no caso de Adília Lopes, não é propriamente aplicável a Lispector por esta não ser ou não se dizer ‘poeta’. A problemática e o desconforto, a existirem, residem simplesmente na condição geral da escritora-mulher num mundo de tradições literárias masculinas – o que não é dizer pouco. É que Clarice Lispector, muito habilmente, escolheu o sub-género do romance psicológico ou meta-literário onde praticamente cabem todos os sub-géneros, incluindo a poesia da prosa poética. Como escreveu longamente Hélene Cixous, Clarice Lispector fez mais do que adoptar um género que lhe permitisse exercer a liberdade que, de certa forma, o patriarcalismo lhe negava e a que a obrigava; ao explorar essa liberdade com profundidade, abandono e sensualidade femininas, ela não fez menos do que criar um novo género, de inaugurar uma ‘escrita feminina’, de desbravar um caminho literário que outras mulheres – nomeadamente a própria Cixous – pudessem seguir.
Esta visão da vocação literária como algo profundamente e problematicamente “incompatível” com o universo feminino, estreitamente e severamente vigiado pelo patriarcalismo luso-brasileiro é bastante notória no conto “Os Desatres de Sofia”. Aqui, começa por estabelecer-se um diálogo implícito e paródico com o conhecido livro de normas femininas publicado pela Condessa de Ségur. Trata-se de uma história onde a protagonista vive o drama e a violência da vocação literária – que é frequentemente representado em Clarice Lispector com os contornos de um arrebatamento no sentido religioso e místico. Um dos momentos mais importantes surge quando um seu professor,  com o qual a protagonista Sofia mantém uma relação de amor-ódio, é descrito olhando para ela fixamente de modo grotesco, no momento posterior a reconhecer na aluna o talento e a vocação literárias. A espaços, o professor apresenta-se ora perplexo, ora incrédulo com a qualidade do trabalho da aluna. O conto constitui-se através de dois momentos-chave: antes e depois da redacção genial. Sofia não aceita a sua promoção inesperada e imediata a objecto de veneração, não aceita essa opressiva ascendência sobre um adulto e, sobretudo, ao que parece, sobre um adulto-homem. Causa-lhe náusea o olhar esbugalhado e reverente do professor, que ela compara a um par de baratas, com patéticos cílios em vez de pernas:
 
 
… com perturbação ele evitava meus olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de um poder que me amaldiçoava. E de piedade … Irritava-me que ele obrigasse uma porcaria de criança  a compreender um homem … Na minha impureza eu havia depositado esperança na redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes … E tudo isso o professor agora destruía, e destruía meu amor por ele e por mim.  Minha salvação seria impossível: aquele homem também era eu. Meu amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa e sem candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica inocência …Com a mão apertando a boca eu corria pela poeira do parque. (Lispector, “Os Desatres de Sofia” (25-26)
 
 
Regressnado aos pontos trans-genológicos que unem ambas as autoras – verificamos serem ambas descomplexadas praticantes do infra-literário, do ornamental, do marginal, do anedótico. Em nota inaugural à secção de textos curtos com que se concluí Legião estrangeira, de título “Fundo de Gaveta”, Clarice Lispector antecipa-se assim a possíveis críticas:
 
 
Porque publicar o que não presta?
Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão.  (Legião estrangeira 127)
 
 
No texto “Dia após dia”, incluído em A via crucis do corpo, Clarice Lispector previne o leitor – com provocação literária – de que está escrevendo porque precisa de dinheiro. Ela parece acumular aqui anedotas anódinas ao sabor dos pensamentos, onde se busca a glória arriscada do marginalmente literário. Por exemplo, assistimos à arte de converter uma narrativa que parece começar como um texto sério – numa piada cuja eficácia reside no inesperado do seu anti-clímax. O que se segue é a “história”, a “narrativa” completa:
 
 
Penso por exemplo na amiga que teve um quisto no seio direito e curtiu sozinha o medo até que, quase nas vésperas da operação, me disse. Ficamos assustadas. A palavra proibida: cancer. Rezei muito. Ela rezou. E felizmente era benigno, o marido dela me telefonou dizendo. No dia seguinte ela me telefonou contando que não passara de uma “bolsa de água”. Eu lhe disse que de outra vez arranjasse uma bolsa de couro, era mais  alegre. (A via crucis do corpo 65)
 
 
Adília Lopes é, igualmente, especialista em momentos de anti-clímax, como é explicitamente reconhecido por muitos críticos. As suas pequenas histórias perversas são relatadas num tom de conto infantil, numa voz de falsa e infantil ingenuidade, no ambito do sufocante mundo onde as figuras maternas da autoridade e dos interditos domésticos e familiares – as tias, as avós, as mães, por vezes as criadas – exercem violência sobre as crianças aterrorizadas. É um  mundo relativamente ao qual ambas as autoras têm uma óbvia fixação e cujas vozes, respectivamente, do poema e da narração, parecem adoptar invariavelmente a perspectiva da criança:
 
 
depois de sete criadas terem sido despedidas
por não saberem cozinhar a preceito
pudim de beiço de vaca
apresentou-se uma que era extraordinária
a menina passou a  tratá-la por Predilecta
a Predilecta compreendeu tão bem a menina
que no dia em que preparou com mais esmero
o prato preferido da menina
pudim de pardais assados em água
deitou no pudim um punhado quase mortal de arsénico
(Lopes, Obra, 117)
 
 
Leia-se este outro exemplo:
 
 
Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações
(Lopes, Obra, 72-73)
 
 
 
Clarice Lispector une-se aqui à poeta portuguesa, ou entra em diálogo com ela – embora ‘oficialmente’, em prosa. Trata-se de um discurso aparentemente constituído por uma tagarelice ‘frouxa’ de cozinha,  própria de uma certa  feminilidade estereótipada:
 
 
… Agora vou contar umas histórias de um menina chamada Nicole. Nicole disse para o seu imão mais velho, chamado Marco: você com esse cabelo comprido parece mesmo uma mulher. Marco reagiu com um violento pontapé porque ele é homenzinho mesmo. Então Nicole disse depressa:
 
– Não se incomode, porque Deus é mulher!
 
baixinho, sussurrou para a mãe: sei que Deus é homem mas não quero apanhar! Nicole disse para a prima, que estava fazendo bagunça na casa da avó: não faça isso porque uma vez eu fiz e vovó me deu um soco que eu desmaiei. A mãe de Nicole soube disso, repreendeu-a. E contou a história para Marco. Marco disse:
 
Isso não é nada. Uma vez Adriana fez bagunça na casa da vovó e eu lhe disse: não faça isso porque eu fiz isso uma vez e vovó me bateu tanto que dormi cem anos. (A via crucis do corpo, 67)
 
 
Domir cem anos até ser despertada pelo beijo do principe  é, como se sabe, um dos topoi centrais dos contos de fadas. Estas histórias (só aparentemente banais, humildes e de literariedade duvidosa) têm em comum a perversão da vida em familia, própria do sistema patriarcal português e brasileiro, onde a figura da matriarca – seja mãe, tia, avó, prima ou irmã mais velha – surge com frequência como um ser grotesco e impossivelmente cruel e autoritário. É, justamente, o caso da velha de 89 anos do conto “Feliz aniversário”. Depois de ter passado a maior parte da festa no semi-adormecimento da senilidade, a matriarca acorda a dada altura e cospe violentamente para o chão,  insultando os convidados, tanto homens como mulheres da sua família, justamente por – uns e outros – falharem os seus papéis sexuais, patriarcalmente sancionados: os homens são maricas, as mulheres têm mau gosto e são donas de casa incompetentes. Marta Peixoto, juntamente com outros críticos, identificou assim esta forma de poder auto-destrutivo das matriarcas em Clarice Lispector: [They are women whose role] affords them … a false power that entraps them as well as their families. (Peixoto 32; parêntises meus).
São conhecidas algumas propostas críticas que colocam Clarice Lispector não só no centro de uma sensibilidade pré-feminista (que marca o início da onda de feminismo que inaugurará e inundará a escrita de mulheres no Brasil) mas também,  paradoxalmente, no centro de um certo pós-feminismo. Esta última categoria justificar-se-ia pelas instancias em que a mulher não é exclusivamente colocada na posição de ‘vítima’ mas também de ser autónomo e responsável pelo seu destino, de sujeito-objecto da opressão e da violência patriarcais. O pós-feminismo, tal como o entendo aqui, não representa pois necessariamente uma crítica, rasura ou superação do feminismo. 
Como defendia anteriormente, também a poética de Adília Lopes parece reconhecer-se nesta noção de pós-feminismo. Uma das ilustrações deste entendimento das relações entre os géneros revela-se, por exemplo, de modo talvez bizarro, na maneira como se ‘perdoam’ alguns dos clássicos pecados misóginos – tais como o insulto, o assédio e o exibicionismo sexuais que têm tipicamente as ruas luso-brasileira como palco – em nome de uma denúncia mais global que visaria o sistema patriarcal e que colocaria, por exemplo, a ‘outra mulher’ no lugar do inimigo. Neste caso a inimiga é uma  psiquiatra, severa representante de uma ideologia que era, até há não há muito tempo em Portugal, um dos últimos redutos da misoginia:
 
 
Em 81 disse à Dra. Manuela Brazette, psiquiatra, “Eu sou feia”. Ela disse-me.” Não é ser feia. Não há pessoas feias. Não tem é atractivos sexuais”. Lembrei-me então do homem que em 74, tinha eu 14 anos, se cruzou comigo no Arco do Cego … Tinha-me dito “Lambia-te esse peitinho todo”. Lembrei-me também da meia dúzia de outros homens que durante a minha adolescência me tinham dito quando eu passava “Coisinha boa” e “Borrachinho”. Ainda hoje me sinto profundamente agradecida a esses homens. Pensei que eles estavam a avacalhar, que eram uns porcalhões. Mas quem estava a avacalhar era a Dra. Manuela Brazette, ela é que é uma porcalhona. Acho que um homem nunca consegue ser mau para uma muher como outra mulher. (Obra, 434)
 
 
Em Lispector, é também frequente esta sensibilidade perante as falhas do género masculino em corresponder aos – igualmente opressivos – códigos patriarcais da masculinidade. No conto “O Homem que apareceu”, invertem-se os papéis e é a interlocutora feminina quem pede ao homem que faça justamente aquilo que os homens não fazem, ou seja, chorar: “– Seja homem e chore, chore quanto quiser; tenha a grande coragem de chorar. Você deve ter muito motivo para chorar.” (A via crucis do corpo, 49). O sociólogo Michael Kimmel, cujo pensamento enforma uma área nascente de estudos interdisciplinares a que se dá o nome ‘men’s studies’ – defende uma espécie de indefinição sexual ou androginia como contraponto à sobre-definição dos papéis sexuais, própria das sociedades onde grassa a violência sexual ou gendered:
 
 
… the more ‘like women’ men can be seen – nurturing, caring, frightened – and the more ‘like men’ women can be seen – capable, rational, competent in the public sphere – the more likely that aggression will take other routes besides gendered violence (Kimmel, 267-68).
 
 
Para terminar, gostaria de referir-me ao modo como a religião enforma a visão do mundo de ambas as autoras; uma visão do mundo centrada na religião de um modo geral – que é, como se sabe, uma rígida definidora de papéis sexuais – e na religião católica em particular, visto tratar-se de Portugal e do Brasil.  O sentido da vida, a condição humana num mundo secular é preocupação central tanto em Adília Lopes como em Clarice Lispector. O que porventura distingue estas autoras de outras é o modo como o postular destas questões existenciais é indissociável da angústia do género. Ou seja, a angústia humana, transposta para a literatura, feita literatura, é aqui sempre ou quase sempre, também, uma angústiagendered para usar um termo para o qual não existe equivalente satisfatório em português. Deus, ou o Deus católico, parece ser (de acordo com as experiências, com as histórias humanas que se desprendem destas obras) o maior representante dos interditos e dos ditames patriarcais. No seu estilo típico, Adília Lopes reescreve aqui a cena fundadora da condição humana pecaminosa, de acordo com o nosso mundo judaico-cristão, que ela transforma numa espécie de distribuição fundadora dos papéis sexuais, a cena do primeiro pecado no jardim do Éden. Começa aqui, segundo Adília Lopes, o patriarcalismo:
 
 
Havia um espelho no Paraíso. Estava tapado com um pano. Deus tinha proibido Adão e Eva de destaparem o espelho. Mas Eva destapou o espelho. Reconheceu-se imediatamente. Achou-se feiota e entradota. “Não gosto de mim”, disse de si para si. “Adão não me quer”. Então Deus zangou-se com Eva. Adão também se reconheceu no espelho. Mas Adão era Narciso que sabia que era Narciso. Achou imediatamente que no Paraíso fazia falta a Fundação Adão. (Obra, 439)
 
 
 
Clarice Lispector, no seu estilo por vezes “sublime”, cosmogónico e até blasfemo, faz-se representar pela narradora que nos confessa o seguinte:
 
 
Por puro carinho, eu senti que era a mãe de Deus, que era a terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade eu era por carinho a mãe das coisas…   (Legião estrangeira, 230)
 
 
Imediatamente após estes pensamentos, a narradora encontra a seus pés a visão real, grotesca, de um rato morto, enorme; e a sua reacção manifesta-se do seguinte modo:
 
 
A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. (Legião estrangeira, 232)
 
 
As conclusões que ela mesma tira do episódio são, por um lado, conciliatórias, e, por outro, perturbadoras, pois estas não implicam nenhum alívio relativamente à ditadura do género. Deus opõe-se – de acordo com os instrumentos de leitura do mundo de que Clarice Lispector dispõe, que são profundamente supersticiosos (ou ‘religiosos’) – a que ela seja a mãe das coisas, ou a que alguma entidade feminina o seja. Deus parece mesmo vetar a possibilidade de uma sua existencia alternativa, enquanto mulher. Quanto à narradora, a falta de amor por si mesma – como mulher – é exactamente o que problematiza (e, em última análise, impede) a sua participação no amor e na redenção divinas: “Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará.”  (Legião estrangeira, 234)
Num trabalho sobre Adília Lopes a que já fiz referência, Anna Klobucka defende a preocupação de propôr genealogias femininas na literatura portuguesa. Defende Klobucka que a avó tutelar das mulheres poetas portuguesas deverá ser Florbela Espanca apesar do ataque paródico – e, afinal, cúmplice – a que a vota a própria Adilia Lopes, publicando um livro de desconstruções da obra daquela poeta portuguesa do início do século intitulado Florbela Espanca Espanca
Neste trabalho, por um lado, procurei questionar a pertinência da separação de géneros literários – necessidade descoberta em leituras comparativas, por exemplo, destas duas autoras – e considerei porosidades operatórias entre eles. Por outro lado, julguei oportuno (e, quer literariamente quer culturalmente, justificado) acoplar a brasileira à tradição portuguesa de escrita feminina. A noção do género em Clarice Lispector e em Adília Lopes estão tão associadas ao seu sentido do humano que as denúncias que efectuam de uma certa opressão feminina não deixam de revelar sensibilidade às contradições (opressivas) que existem também no seio do papel sexual masculino – igualmente sob o rígido controle de um sistema patriarcal. A perspectiva feminina é tão intrínseca ao fazer literário de ambas as autoras que estas parecem imunes a – e independentes de – quaisquer circunstancialismos históricos e políticos que, por exemplo, os vários movimentos feministas apresentaram em épocas e países diferentes. Nem exactamente feministas, nem o seu contrário – “pós-feminismo” será talvez o menos desadequado dos rótulos contemporaneos a aplicar à assinatura literária destas autoras no que diz respeito às representações do género sexual.
Vendo as coisas sob o prisma das genealogias, Clarice Lispector poderá constituir uma origem paradigmática de uma possível linha genealógica feminina luso-brasileira – a rastrear no seio da numerosa prole literária que gerou na América Latina e na Europa, de acordo com leitura de Hélene Cixous e outros. Clarice Lispector poderia ser uma avó literária que (embora de índole mais generosa do que a das matriarcas ditatoriais da sua obra) à revelia do Deus patriarcal e, sobretudo, do patriarcalismo endeusado, logra ser, afinal, no mundo da escrita feminina, uma mãe tutelar, carinhosa, demiúrgica guardiã e intérprete “de todas as coisas”.
 
 
 
 
NOTAS
 
1. Aplico aqui o qualificativo “respeitável” à carreira de Clarice Lispector no sentido em que esta sempre aliou uma reverência imediata (a partir da publicação do primeiro livro, Perto do Coração Selvagem) e quase generalizada da crítica a uma reserva respeitosa da mesma relativamente ao que interpretava como os aspectos ilegíveis, misteriosos e excêntricos – tanto da obra como da autora.
 
2. Note-se que, obviamente, admito que esta intenção teatral possa não subjazer, intencionalmente, à performance de Clarice Lispector; apenas me cumpre registar o efeito artistico, performativo, condicionador certamente da recepção da obra que essas e outras entrevistas efectivamente revestiram; entrevistas que, aliás, exibem directa ou estreita correspondência com figurações temáticas e ideológicas presentes na chamada obra convencional.
 
3. Como seria de esperar, e como confirma Anna Klobucka noutro artigo desta vez exclusivamente dedicado a Adília Lopes, o seu estatuto de autora de performances repercute-se na recepção ao seu trabalho: “Adília’s verse has often been descibed in terms that emphazise her discursive performances, encompassing both the poets page-bound published verse and her public appearances.” (Klobucka, “Spanking Florbela: Adília Lopes and a genealogy of feminist parody in Portuguese poetry”)
 
4. A entrevista de José Castelo pode ser encontrada na secção “biografia” de um website dedicado a Clarice Lispector: www.clarice-lispector.cjb.net  (8.17.2007)
 
5. Citação retirada do texto de Meire de Oliveira Silva sobre “A Mulher que Matou os Peixes”. Disponível na secção “resumos” de www.clarice-lispector.cjb.net (8.17.2007)
 
6. Utilizo aqui os termos em inglês gender genre porque porque para ambas as palavras, significativamente ou não, a língua portuguesa apenas dispõe da palavra “género”.
 
7. Citado em “Mil Folhas”, em artigo de Eduardo Prado Coelho intitulado “O Meu Reino Por um Espelho”, publicado no Jornal Público em 15 de Abril de 2006. Disponível em:
www.arlindo-correia.com/adília_lopes.html#Eduardo_Prado (8.17.2007).
 
8. Socorro-me da definição de ‘pós-feminismo’ encontrada na obra Introduction to Feminist Consequences: Theory for the New Century.
 

     'Feminist' work cannot be differentiated from 'post-feminist' work precisely because feminism has provided its adherents with a sense of political agency. [...] post-feminism [...] refers not to the end of a politics or a practice but, rather, to a suspension within it that allows such a politics to remain vital and relevant to contexts of          social change. (22)

 
9. Incluído no livro Obra, de Adília Lopes, a que já fiz referência.
 
 
 
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