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Heliete Vaitsman descobre passado nazista nos pedalinhos da Lagoa




 

Rio de Janeiro, março-abril de 2018.

VAITSMAN, Eliete. O cisne e o aviador. Rio de Janeiro, Rocco, 2014.

Entrevista a Luiza Lobo

 

HELIETE VAITSMAN DESCOBRE PASSADO NAZISTA NOS PEDALINHOS DA LAGOA

Formada em Comunicação e em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e em Didática da Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi jornalista das áreas cultural e internacional e colunista especializada em saúde em O Globo e Jornal do Brasil. Atualmente, é editora e tradutora. Autora de Judeus da Leopoldina (Rio de Janeiro, Museu Judaico, 2006), teve seu primeiro romance, O cisne e o aviador (Rio de Janeiro, Rocco, 2014) selecionado como finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2015.

 

Seu livro é tocante na construção das personagens femininas. Há uma delicadeza e uma intimidade com elas que parecem indicar um “roman à clef” retirado da realidade. Você utilizou modelos reais para as personagens ficcionais?

R – Sim, houve modelos reais de mulheres que me serviram de inspiração. Como neta de imigrantes judeus poloneses, testemunhei na infância os embates e a profunda dor daquela gente. As três personagens femininas circulam em liberdade num Rio de Janeiro ameno, arborizado, de classe média, entre vizinhos amáveis, o Rio dos anos 1950 e 60. Elas ocultam o trauma ligado ao extermínio de suas famílias na Europa. O desejo de esquecer os horrores da Segunda Guerra e projetar o futuro é algo em comum entre elas, ainda que as três não compartilhem hábitos e nem mesmo inserção social. Acredito que consegui torná-las críveis, sem recorrer a estereótipos redentores. Como acontece com qualquer ser humano, de qualquer origem, elas se apaixonam, riem, sofrem, traem maridos, cuidam de filhos.  É necessário que o leitor acredite nas personagens, que vivem além do que o autor diz sobre elas.

 

Até hoje muitos, em seu país, negam que Herberts Cukurs, a personagem real do livro, tenha sido um criminoso de guerra. O Brasil também não o investigou. Como se explica isso?

R – Negar a realidade pode ser cômodo, por um lado, e por outro há a ideologia da extrema direita. Na Letônia, o governo chegou a homenageá-lo com um selo, em 2004, mas diante das pressões de grupos locais defensores de direitos humanos e do governo israelense, retiraram-no de circulação. As tentativas de reabilitar a imagem de Cukurs (pronuncia-se Tsukurs) integram, ainda hoje, um movimento de revisionismo histórico que, em vários países europeus, acontece junto com a ascensão conservadora e os discursos contrários aos imigrantes.

 

  1. Ao iniciar as pesquisas, já imaginava escrever um romance histórico? Como se deu a evolução desta ideia?

R – Sim. Embora eu tenha começado com o foco na personagem principal, Frida, duas coadjuvantes, Rosa e Clara, ganharam importância. São mulheres fortes, “curadas ao sol de Copacabana”, como diz a letra de George Israel ao falar dos sobreviventes de uma Europa antissemita e violenta anterior à Segunda Guerra. Elas aprendem a ir em frente num mundo melhor, numa sociedade brasileira onde ocorrem grandes mudanças. Não seria possível escrevê-las num vazio político e social, e, à medida que eu as construía, a História também se tornava mais presente.

As pesquisas me levaram a entender o papel de Cukurs como criminoso de guerra. Sua participação é uma incógnita. Ele não era importante na hierarquia nazista e não poderia ter sido o organizador do massacre dos judeus letões. Isso não o exime nem o desculpa,  pois foi um daqueles colaboradores frios e sinistros que fizeram parte do trabalho sujo para os alemães em todos os países ocupados. Os eslavos eram desprezados pelos nazistas, que planejaram e organizaram o genocídio.

 

Você acha que esse deslumbramento com os estrangeiros, louros, altos, de olhos azuis, é uma marca de nosso sentimento de inferioridade colonial? Todas as portas são abertas a eles, na pesquisa ou na sociedade, por serem europeus ou norte-americanos.

R- Concordo que essa pode ser uma forte marca, impressa pela elite sobre as demais classes sociais, que nada ganham com ela. As matérias sobre Cukurs na revista O Cruzeiro, então a mais popular do Brasil, são deslumbradas diante da competência do piloto, o estrangeiro bonitão, apresentado como um empreendedor que, depois de colocar os primeiros pedalinhos na Lagoa Rodrigo de Freitas, prometia transformar o local em grande ponto turístico. Em fotos abertas, aparecem ele e a bela filha fazendo esqui aquático. Quem o acolheu, altas patentes militares da época, não tinha interesse em tomar conhecimento do que homens como ele haviam feito durante a guerra. As autoridades da época igualavam os imigrantes estrangeiros – judeus sobreviventes ou antigos colaboradores nazistas – e a única exigência que se fazia a eles era que não perturbassem a “ordem pública”.

 

Em que medida você acha que o seu livro contribui para uma mudança de mentalidade, alertando as pessoas a não serem tão ingênuas, se informarem, lerem mais sobre a história, o passado?

R – Quando os fatos são apresentados sem pieguice nem adjetivação, como procurei fazer, a transmissão da História se dá naturalmente. Claro que o leitor precisa ter vontade de sair daquela zona de conforto que adere ao lugar-comum quando se fala de guerra e de perseguições, onde tudo é explicado como uma luta do Bem contra o Mal, ou dos indivíduos sadios contra os loucos. O Reich de Mil Anos pretendeu apagar tudo o que não fosse “ariano”, da arte à ciência e às pessoas. Os indivíduos deviam aceitar-se insignificantes, sem subjetividade, sem direito a memórias próprias. Mas tudo o que minhas personagens fazem e sentem comprova sua significância, sua singularidade. Acho que a humanidade delas impacta mais o leitor do que se fossem estereótipos.

 

Você não acha que a ingenuidade do Brasil com relação à questão judaica e dos nazistas que viveram aqui é causada pela oralidade e desinformação? Já leu o livro de Benjamin Moser sobre Clarice Lispector? Achou-o exagerado?

R – O Brasil é muito voltado para dentro, e o que acontece “lá fora”,  para além das paisagens e do turismo, interessa a um grupo reduzido. Mas os  colonizados buscam a aprovação dos estrangeiros. Jornais brasileiros publicam a repercussão de acontecimentos daqui pela imprensa estrangeira, como se o olhar de fora fosse imprescindível! Mas governos não têm ingenuidade. Para os brasileiros em geral os judeus fazem parte da nação, não são objeto especial de apreço nem de desapreço. Foram discriminados no período Vargas, mas depois se integraram completamente. As pessoas com acesso a livros e filmes se horrorizam com o que fizeram os nazistas, e gostam de saber que nazistas foram presos aqui. Não há aqui uma questão judaica.

Gosto do livro de Moser sobre Clarice. O autor repetiu informações já conhecidas, pode-se alegar. Mas sempre citou as fontes e nunca afirmou que queria ser completamente original. Ele quis contar uma história e o faz sem os rodeios com os quais a cultura ibérica fala de temas “delicados”. Por exemplo, a mãe de Clarice teria sífilis por ter sido estuprada antes de imigrar para o Brasil. Como inexistem provas, não se deveria falar disso? Mas convenhamos que nem a CIA e o Mossada juntos poderiam encontrar provas de um estupro no início do século XX nos confins da Ucrânia. Moser segue a tradição norte-americana das biografias. É uma tradição que abomina a censura e a exclusividade do saber.

Outro ponto é que Clarice foi, por muitos anos, qualificada na imprensa como uma brilhante escritora pernambucana, filha de imigrantes ucranianos. Ora, nada mais distante de um ucraniano que um judeu ucraniano! Mas ela teve sua persona pública composta também pelos elogios aos seus pômulos faciais eslavos! Atribuir-lhe “origem” judaica é outro ponto estranho. O que é origem? Ser judeu não é uma nacionalidade, portanto ou se é ou não se é judeu. Para Moser, Clarice entra numa categoria similar à dos Jewish American writers. É uma escritora brasileira-judia.

 

Você costuma ser metódica em sua escrita, ou trabalha por inspiração? O seu trabalho de jornalista lhe deu disciplina de se sentar e escrever até terminar um capítulo ou até terminar uma determinada tarefa para o livro?

Não tenho a disciplina que gostaria de ter. Quando tenho tempo, sento diante do computador e posso ficar cinco horas escrevendo sem parar. O problema é sentar! Deixar de lado outras tarefas, para mergulhar num romance exige uma disposição, uma crença de que o texto terá valor. Por isso mesmo não estou conseguindo finalizar um romance que comecei a escrever há um ano. No jornalismo a gente tem deadlines, no romance não.

 

Quanto tempo levou para escrever este livro? Quais foram as dificuldades que encontrou, após a pesquisa, na escrita propriamente dita? Foi pesquisando e escrevendo, concomitantemente, ou terminou a pesquisa e só então escreveu a ficção? Heloísa Maranhão dizia que após a pesquisa ela fechava os livros e misturava tudo. Mas o resultado por vezes ficava bastante confuso…

Levei dois anos. Primeiro terminei toda a pesquisa, em livros e periódicos da época. Tinha o dobro de informações do que as publicadas, pois minha editora, Vivian Wyler, ponderou que um romance brasileiro não deveria tratar em minúcia de situações específicas, sob pena de tornar-se tedioso. Um exemplo: as polêmicas sobre a invasão nazista dos países bálticos, que dificilmente empolgariam o leitor brasileiro.

Escrevi ao mesmo tempo os capítulos factuais e os ficcionais, ao sabor da minha própria vontade, sem organograma. Quando me cansava do horror nazista, falava de Frida, Rosa e Clara. Até o último momento voltei aos livros de História para conferir fatos. Vi milhares de fotos, mapas, entrevistas. Acabei me tornando “especialista” em Letônia, embora sem nunca haver pisado no país. A dificuldade na escrita, para mim, é encontrar a palavra exata, e encadear as frases num ritmo que tenha alguma beleza. Dou importância ao som, ao encadeamento, ao tom. Reescrevi algumas vezes a fala das personagens, tentando fugir da artificialidade. A voz interior e os diálogos muitas vezes emperram textos com tramas ótimas.

 

Como classificaria seu romance, lírico, histórico ou de metaficcionalidade historiográfica (nova história)?

Se eu fosse Jorge Mautner, diria que é um amálgama, tudo junto e misturado, como o Brasil! Não houve intenção de fazer metaficção, mas talvez seja possível dizer que algo ocorreu nessa direção. Isso cabe à crítica. O que posso dizer é que a parte ficcional foi escrita com a emoção, um fluxo, como num transe em que o autor recebe o espírito das personagens, recria seu modo de falar, sua visão de mundo. A recriação, quando é bem sucedida, é uma maravilha, aquela história do “seja universal, fale de sua aldeia”. O leitor de “O cisne e o aviador” pode entrar alternadamente no espaço literário e no espaço real. Pode refletir diante da política e também sentir empatia diante dos dramas das personagens ficcionais. Pelo menos foi o que eu procurei.

O que é verdade, o que é imaginação, o que são as lembranças? Como jornalista, aprendi a checar todas as informações, a lidar com a realidade sem fantasiar. Como romancista, pude “viajar” nesse tema fascinante que são as memórias e suas relações com a História. No caso, memórias de personagens ficcionais com as quais os leitores podem se identificar. Todorov afirma que as memórias são um terreno de liberdade que só os regimes totalitários pensam ser possível domar. O real que elas recriam não é a realidade tal como ela se apresenta, nem como os romances ditos realistas pensavam que era possível apresentar.

 

Suas próximas obras terão aspectos históricos e jornalísticos, como este romance?

Sim. Gostei muito dessa mescla. O próximo livro está caminhando nessa direção, com personagens europeus e brasileiros e, de novo, as barbaridades e as consequências da Segunda Guerra, as figuras sinistras.  Na Europa, a Segunda Guerra é uma memória viva, assim como na Argentina os anos de chumbo continuam a ser lembrados, ensinados aos jovens. O Brasil oficial é que cultiva uma desmemória.




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