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Entrevista com Adriano de Paula Rabelo, sobre “O amor é um abismo furtivo”




O CREPÚSCULO DO AMOR

 

Entrevista com Adriano de Paula Rabelo

 

Por Virginia Nogueira –

Pós-graduação da PUC de SP

 

Obra: O amor é um abismo furtivo, Amazon, 2020.

 

ADRIANO RABELO

Adriano de Paula Rabelo tem publicado obras literárias de sua autoria, bem como traduções de textos literários a partir das línguas inglesa e francesa. Também possui livros publicados no campo do ensaísmo. Tem sido professor de literatura e cultura brasileira no ensino superior. É doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas. Nos últimos anos, publicou Desabraçar (Patuá, 2018), Ouriço: Senso incomum (Aglaia, 2019) e Esta agonia é o nosso triunfo: As cartas de Sacco e Vanzetti (Edições 70, 2020).

 

O amor talvez seja o assunto mais recorrente na história da literatura, revelando-se inesgotável na pena de escritores de todas as épocas, que têm explorado minuciosamente as mais diversas concepções e as mais variadas nuances deste sentimento. É o caso de Adriano de Paula Rabelo em seu mais recente livro de contos, intitulado O amor é um abismo furtivo (São Paulo, editora Aglaia, 134 páginas). Autor de outro livro de contos, em que aborda múltiplos aspectos das relações familiares, nesta obra Rabelo focaliza, em especial, um momento específico do processo amoroso: o instante em que o amor acaba e os amantes se separam. É sobre isso que conversamos com ele.

 

Se o amor sempre contém um abismo oculto, como dá a entender o título de seu livro, conclui-se que você é contra o amor e não o recomenda a ninguém…

Quem sou eu para ser contra o amor! Quem sou eu para recomendar a quem quer que seja que ame ou deixe de amar! Mas de fato há um abismo furtivo em cada amor, no qual todos nós já caímos alguma vez na vida. Ele tem a ver com a fragilidade e a incoerência humana, com nossa enorme precariedade, que se reflete na pouca solidez dos laços que estabelecemos com os outros. As tragédias gregas costumavam terminar, depois de acontecimentos terríveis, com o coro ocupando o centro do palco e refletindo que ninguém pode se dizer feliz antes de morrer, pois podemos perder tudo a qualquer momento e mergulhar na infelicidade. Édipo ou Medeia que o digam! Sinto que no amor é a mesma coisa. Podemos perdê-lo a qualquer momento, ele pode acabar no meio da jornada que percorremos juntos, muitas vezes causando enormes sofrimentos, de modo que não podemos dizer que fomos felizes no amor antes de morrer. No máximo podemos dizer que nele fomos felizes por algum tempo, em geral no começo. Não conhecemos muito bem nem a nós mesmos. Muitas vezes nos surpreendemos com nossas próprias atitudes. Imagine só o quanto ignoramos do outro. No entanto, viver é se lançar e correr riscos, senão simplesmente existiremos de modo inautêntico e banal. Por isso, apesar de a separação ser a lei do mundo, seguimos amando e nos fazendo amar.

 

Você parece ter verdadeira obsessão pelo fim do amor. Sua história pessoal tem sido marcada por rompimentos traumáticos?

Como todo mundo, tenho experimentado meus rompimentos e minhas perdas. Esse processo é sempre mais ou menos traumático, dependendo do quanto você se envolveu no relacionamento, do que construiu juntamente com a pessoa com quem compôs um casal, do momento em que a separação aconteceu, da forma como aconteceu. Há sempre um processo de luto mais ou menos demorado até que se possa voltar a experimentar o prazer de uma solidão escolhida e o momento de se permitir ao outro novamente. Ou de seguir sozinho, o que é uma escolha legítima. Mas minha experiência pessoal não tem importância no que tange a meus contos. O que importa é se eles funcionam bem como narrativa, se tocam a sensibilidade dos leitores. Há sempre aqueles que gostam de identificar personagens ou acontecimentos ficcionais com o autor. Não que a experiência biográfica do escritor não tenha importância alguma. Mas é preciso ter em vista que os personagens e acontecimentos da literatura são sempre mais coerentes, mais significativos e mais reais que os da realidade.

 

Suas histórias dão a impressão de que o amor está pré-programado para acabar. É assim que você o concebe?

Sim, todo amor vai acabar. A grande maioria deles acaba em alguns anos, às vezes em alguns meses. Mesmo aqueles que duram um tempo mais longo acabam na morte dos amantes. Somos seres finitos e tudo o que é humano está sujeito à finitude. As novelas, as séries de tv, os filmecos americanos e as canções água com açúcar, em seu romantismo obsessivo-compulsivo, estão sempre batendo na tecla de um amor panaceia, que tudo resolve, que tudo vence, até mesmo a morte. Ora, a morte demole o amor com um piparote. Isso não quer dizer que, quando acontecer, o amor não possa ser fruído mesmo em sua precariedade, no que ele tem de bom no momento presente, não como redentor de nossas misérias ou paraíso vindouro. Sua fragilidade pode mesmo constituir um de seus encantos.

 

Mas será mesmo que essa visão do amor é típica da arte banal, de massas? E o famoso “amor que move o sol e as outras estrelas” com que Dante termina a Divina comédia?

No caso de Dante, ele obviamente não se refere ao amor Eros, mas ao amor Ágape, ideal espiritual do cristianismo. No entanto, houve momentos na história da grande literatura em que o amor Eros foi cantado e decantado como sendo o nec plus ultra da experiência humana. Para ficar só nos poetas, pode-se mencionar a lírica amorosa da Idade Média e todo o movimento romântico do século XIX, ou poetas de épocas muito diversas, como Safo de Lesbos, Catulo, Petrarca, Camões, Tomás Antônio Gonzaga, Vinicius de Moraes. Todos eles criaram obras de grande beleza. Não é o tema que faz a grande arte, mas a força expressiva do artista. O que me parece que estamos discutindo neste ponto não é exatamente literatura, ou seja, se existem assuntos típicos da arte autêntica ou da criação banal, mas relações de casal, ou seja, se a concepção romântica do amor erótico é adequada, em especial num tempo como o nosso. A mim, essa concepção me parece desastrosa.

 

Por quê?

A vida é muito vasta e muito complexa, com muitas dimensões tão válidas quanto o amor: a amizade, a busca do conhecimento, o desenvolvimento de talentos e vocações, a conquista da independência, o amadurecimento, a realização pessoal, a espiritualidade… Quando sobrevalorizamos um amor idealizado, colocando-o muito acima dessas outras dimensões, como fonte única de sentido de nossas vidas, não só nos limitamos muito como corremos o risco de perder, ao perder o amor, o sentido e o valor de nossas vidas. Ora, perder um amor não é o fim do mundo, apesar de carregarmos essa sensação por alguns meses, até a dinâmica da vida redirecionar nossas atenções e nossos afetos. A realidade é muitas vezes dura, grotesca, aborrecida, e as pessoas são muito imperfeitas, muito inconstantes, ora bastante atraentes e estimulantes, ora tediosas e insuportáveis. E as relações interpessoais são sempre conflitivas. Portanto, ir para um relacionamento, em especial para um casamento, imbuído da idealização romântica do amor é a receita segura do fracasso.

 

Voltando à literatura, percebe-se, nos escritos de grande parte dos autores contemporâneos, uma predominância de textos curtos que tratam de assuntos “menores”, sem a pretensão de oferecer uma mensagem universal. Em geral, seu foco está no indivíduo, no cotidiano, na fragilidade humana. Além disso, a literatura atual, em sua quase totalidade, aborda personagens e temas urbanos. Por que isso?

A literatura contemporânea, como a filosofia contemporânea ou moda contemporânea, é um produto do nosso tempo. Na Antiguidade, por exemplo, acreditava-se que a Terra era o centro do universo e que o homem era “a medida de todas as coisas”. A grande literatura de então tratava de assuntos “maiores”, em linguagem sublime, com personagens extraordinários como Ulisses, Orestes, Édipo, Medeia ou Eneias, que realizavam grandes feitos ou eram vítimas de tremendos infortúnios. Essas grandes figuras personificavam o heroísmo, a condição humana, a nacionalidade e protagonizavam acontecimentos nada cotidianos. No rolar dos séculos, fomos descobrindo não somente que a Terra não é o centro do universo como é um grãozinho de areia muito insignificante e muito periférico numa imensidão inimaginável para o homem da Antiguidade. Do mesmo modo, fomos perdendo importância como senhores do mundo, autônomos e autoconscientes, até nos enredarmos num cotidiano marcado pela fixidez, o automatismo, a passividade, nos tornando escravos de um emprego muitas vezes frustrante, do consumismo e do entretenimento banal. Num mundo assim, a literatura contemporânea só poderia ser como é. Porém muitas vezes ela é grande abordando assuntos “menores” por meio de textos em geral curtos. Não é isso que define seu valor. Quanto à predominância absoluta de personagens e temas urbanos, isso também é reflexo de um mundo que se tornou, ao longo do século XX, quase que absolutamente urbano. O Brasil, por exemplo, era 70% rural nos anos 1940. Não surpreende que os anos 30 do século passado tenham gerado uma vasta literatura regionalista que tematizava o sertão e outras regiões não urbanizadas do interior do país. Hoje a sociedade brasileira é cerca de 85% urbana. E mesmo a população rural tem hoje em dia um estilo de vida e valores bastante parecidos com os que predominam nas cidades. Não surpreende, portanto, que a literatura atual contenha essa abundância de temas e personagens urbanos que você menciona.

 

Percebe-se, nos contos deste seu livro, um trabalho formal em que você lida com o fracionário, o fragmento, o inacabado. Com isso você buscou refletir a realidade do nosso tempo? Em que sentido?

Sim, nesta reunião de contos sobre o fim do amor, alguns textos se formam com a justaposição de visões diferentes sobre um mesmo acontecimento, divisão de uma história de amor ao longo de alguns meses, coletânea de mensagens trocadas pelos dois membros de um casal, uma junção de curtíssimas histórias de amor/desamor contadas apenas no que elas têm de essencial, em três ou quatro parágrafos… A era do Google, do WhatsApp, do YouTube, do Tinder, do Netflix, do Spotify, da Amazon, das redes sociais, dos jogos eletrônicos, dos portais de pornografia disponíveis para todos na internet é, por excelência, a era do fragmentário, do inacabado, das pílulas de informação, do saltar de uma canção para outra, de um vídeo para outro, de um filme para outro, de um perfil para outro, de uma busca para outra sem nem ao menos ler, ouvir ou ver tudo o que a tela oferece. Além disso, é comum fazermos várias coisas ao mesmo tempo, dividindo ainda mais nossa atenção. Isso tem tido reflexos na sensibilidade e na capacidade de compreensão das pessoas, que já não conseguem manter-se atentas na mesma coisa por um longo tempo ou fazer um esforço de compreensão do que não possui um significado evidente. Se não tivermos uma satisfação imediata de nossas expectativas, simplesmente abandonamos o que estamos fazendo e saltamos para outra coisa. A segmentação de alguns de meus contos busca dialogar com essa realidade ainda nova para todos nós. Aparentemente a era dos grandes panoramas, das grandes narrativas, das abordagens totalizantes, terminou, até mesmo pela prosaica falta de tempo do leitor comum para se engajar na leitura de um Fausto ou uma Guerra e paz. Do mesmo modo, grandes conceitos como “conhecimento”, “liberdade”, “verdade”, “progresso”, “nação” foram estigmatizados como legitimadores de uma autoridade intelectual e política anacrônica e conservadora. De modo que a realidade contemporânea nos convida o tempo todo a pensar sobre o pequeno, o efêmero, o imperfeito, o inacabado.

 

Como surgiu a ideia de escrever este livro?

Sou grande apreciador de museus e os visito regularmente. Tenho tido a oportunidade de fazer isso em muitos lugares, no Brasil e no exterior. A experiência museológica mais marcante que já tive não foi em alguma das grandes instituições de Nova York, Londres ou Paris. Foi numa pequenina, chamada Museu das Relações Terminadas, que fica na cidade de Zagreb, capital da Croácia. Faz uns cinco ou seis anos que passei ali toda uma tarde, contemplando seu acervo de objetos que remetem a histórias impressionantes de relacionamentos afetivos que tiveram um fim com a separação ou a morte. Quando saí para a rua, ainda comovido, me veio a ideia, ainda vaga e fugidia, de escrever uma série de histórias que focalizassem o momento em que o amor acaba, que refletissem sobre os descaminhos da vida que provocam a separação de pessoas que um dia se amaram. Mas não estou bem seguro de que a ideia surgiu ali mesmo. Um livro vai se formando bem devagar, ao longo de muitos anos, no espírito do escritor, a partir de suas experiências, conhecimentos, leituras, conversas com outras pessoas, acontecimentos de seu tempo. De modo que é sempre difícil precisar um quando, um como ou um por quê. Além disso, a necessidade de escrever é sempre prioritária em relação ao tema. Há grandes obras sobre quase nada ou sobre temas aparentemente pífios. Em meu caso, a partir de uma inquietação direcionada para a escrita, gosto de escolher um tema e produzir uma série de contos sobre ele. De todo modo, embora seja um aspecto importante, o tema costuma ser secundário.

 

Para finalizar, como você vê o que se tem feito na literatura brasileira hoje?

Eu diria que a literatura brasileira de hoje vai muito bem. Há uma grande quantidade de excelentes escritores fazendo coisas muito variadas e focalizando, pelos mais diversos pontos de vista, este momento terrível pelo qual o Brasil está passando. Para ficar apenas em alguns que admiro, eu citaria Milton Hatoum, Michel Laub, Luiz Ruffato, Marcelino Freire, Adriana Lisboa, Cristóvão Tezza, Conceição Evaristo, Chico Buarque, Ricardo Lísias, Bernardo Carvalho, André Sant’Anna, Marçal Aquino, Bernardo Kucinski, Julián Fuks… e por aí vai. Por outro lado, há uma grande quantidade de editoras pequenas publicando autores desconhecidos, algumas delas com excelente produção gráfica, o que estimula novos talentos literários que não teriam oportunidade em editoras grandes e prestigiosas. Se a crítica literária mais séria está hoje encastelada na universidade, há uma enorme e positiva proliferação de sites, blogs, videologs e canais no YouTube tratando de literatura, debatendo-a e oferecendo orientação para escritores e leitores. Há feiras literárias de norte a sul do país, mesmo em cidades pequenas. Apesar de a literatura sofrer hoje muita concorrência do entretenimento audiovisual, ela segue tendo um público crescente e fiel. Claro que existem a catástrofe de nosso sistema de educação, o analfabetismo funcional de grande parte da população, muita gente não conseguindo suprir sequer suas necessidades mais básicas de subsistência, a dificuldade de acesso ao livro nas regiões menos estruturadas, o apego vicioso à tela do telefone móvel. Se com tudo isso ainda se faz uma literatura de excelente qualidade no Brasil e ela ainda mantém e expande o seu público, temos razões para estar otimistas.

 

 

O amor é um abismo furtivo, de Adriano de Paula Rabelo, pode ser adquirido pelo site www.amazon.com.br.




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