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“DURAR É MELHOR QUE ARDER?” – A VIA CRUCIS DA PAIXÃO EM MARIA TERESA HORTA E EM CLARICE LISPECTOR – Ângela Beatriz de Carvalho Faria




“DURAR É MELHOR QUE ARDER?” – A VIA CRUCIS DA PAIXÃO EM MARIA TERESA HORTA E EM CLARICE LISPECTOR

Ângela Beatriz de Carvalho Faria

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 
Resumo: O presente artigo pretende apontar as consonâncias e dissonâncias entre A paixão segundo Constança H. (Maria Teresa Horta) e A paixão segundo G.H. (Clarice Lispector). Em ambos os romances, o pathos e a hybris, vivenciados pelas personagens femininas, estarão “correlacionados ao desencantamento do mundo e à fratura de uma identidade, assinalada por um caráter, intrinsecamente, agônico e agonístico.” Assim, Eros (pulsões de vida) e Thanatos (pulsões de morte) coexistem na interioridade do sujeito, capaz de perguntar a si próprio: “E agora, como é que eu vou viver com um coração aceso?”. Em ambas as personagens, a paixão que as consomem é o desejo de ser. Em ambos os romances, observa-se a crise da representação e uma pergunta incontornável: Como narrar a o inenarrável; o inelutável e, intrinsecamente, cruel; as experiências traumáticas plenas de “ardência”?
Palavras-chave: A paixão segundo Contança H. – Maria Teresa Horta; A paixão segundo G.H. – Clarice Lispector.
 
Abstract: This article intends to point out consonances and dissonances between A paixão Segundo Constança H. (Maria Teresa Horta) and A paixão segundo G.H. (Clarice Lispector). The pathos and hybris will be experienced by female characters in both novels and they will be ‘correlated to the disenchantment of the world and a fractured identity, marked by a character inherently agonistic and agonizing.’ It is thus that Eros (the life drives) and Thanatos (the death drives) coexist in the interior of the subject, who is able to ask himself: ‘And now, how am I going to live with a burning heart?’ The passion that consumes both characters is the desire to be themselves. There is a crisis of representation in both novels and an unavoidable question: How can one narrate the unspeakable, the inevitable, the inherently cruel, the traumatic experiences, full of burning?
 
Keywords: A paixão segundo Contança H. – Maria Teresa Horta; A paixão segundo G.H. – Clarice Lispector.
 
Currículo: Ângela Beatriz de Carvalho Faria, Doutora em Literatura Portuguesa, é Professora Associada III da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde orienta Monografias do Curso de Especialização, Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. Autora de artigos em Anais de Congressos, periódicos especializados e capítulos de livros da área em questão, também é líder do Grupo de Pesquisa do CNPq “A (im)possibilidade de dar corpo ao passado na arte e na narrativa do século XXI”.
 
 

“DURAR É MELHOR QUE ARDER?” – A VIA CRUCIS DA PAIXÃO EM MARIA TERESA HORTA E EM CLARICE LISPECTOR

Ângela Beatriz de Carvalho Faria

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 
 

E agora, como é que eu vou viver com um coração aceso?

(HORTA, Maria Teresa, A paixão segundo Constança H).

 

A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela.

(LISPECTOR, Clarice, A paixão segundo G.H.).

 

O que seria da paixão sem a sua lembrança, resguardada pela ausência?

(GOTLIB, Nádia, “Um fio de voz: histórias de Clarice”).

Trinta anos após a publicação de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector (1964), Maria Teresa Horta publica A paixão segundo Constança H. (1994). A semelhança entre os títulos e a sedução, inerente a eles, levou-nos à releitura de ambos os romances e à sua possível interpretação, capaz de apontar as consonâncias e dissonâncias existentes entre as ficções, brasileira e portuguesa, de autoria feminina, passíveis de focalizarem a fratura de uma identidade, envolta na via crucis do prazer e da dor. Ambas as personagens femininas “oscilam entre os dois lados, as duas faces da paixão”, e se perguntam, como na ficção de Schelling – intertexto presente no romance: “Por que razão durar é melhor que arder?” (HORTA, 2010, p. 46). E, porque a paixão que as consome é o desejo de ser, mergulham no “excesso” e no “abismo”, buscam reintegrar-se à sua própria identidade cindida, assinalada pela lacuna ou pela omissão que cerca o nome completo: G.H. (iniciais gravadas em uma valise de viagem, signo de uma máscara ou persona social) e Constança H. (inicial que traz, em seu cerne, a despersonalização do “eu” situado em tempos e espaços diferenciados). Tal fato evidencia-se a partir de uma das epígrafes presentes no romance de Maria Teresa Horta e de autoria de Clarice Lispector: “…estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?”.
Assim, o romance-interrogação desvia-se, propositalmente, de certezas definidas no que se refere, inclusive, às estratégias narrativas canônicas e à construção da subjetividade do sujeito. A obra A paixão segundo Constança H. apresenta, em sua composição, histórias reais ou inventadas, superpostas no tempo e no espaço, plenas de acontecimentos traumáticos; a inserção de poemas em que a cartografia erótica do desejo e do corpo se imprime, a fim de “se prolongar a dor e o prazer que simultaneamente corroem o sangue” da personagem feminina; inúmeras epígrafes que ocupam, isoladamente, as páginas em branco (algumas encontram-se entre parênteses como se o sujeito apenas confessasse a si próprio o mais íntimo de seu ser); títulos e citações de outras obras circunscritas às paixões avassaladoras que espelham os sentimentos vividos; ecos de outras vozes e gritos atemporais e femininos,  resultantes da opressão de uma sociedade estratificada e coercitiva; reflexões permitidas ou interditas; o registro de sonhos e alucinações de ordem mística; a reprodução de  “estranhas cartas, com letras diferentes, mas todas com a mesma assinatura: Constança H.” (HORTA, 2010, p. 55) e que talvez revelem uma “crise de despersonalização psiquiátrica”;  extratos de diários assinados e/ou atribuídos à Constança H. –  ela própria ou a outra (a mulher que existe nela e que ela desconhece)? Em suma, todos esses fragmentos textuais apresentados e que formam um caleidoscópio funcionam como álibis de veracidade e/ou de verossimilhança, capazes de revelar os simulacros da interioridade do sujeito problemático, consumido pelo pathos e enclausurado “na cela nua de uma prisão de mulheres ou na enfermaria de um hospital psiquiátrico” (HORTA, 2010, p. 33), aonde recebe eletrochoques para que aceda ao esquecimento, após ter cometido um crime e transgredido a lei. No centro desse universo multifacetado, encontra-se, como vemos, a personagem Constança H. que se “deixará consumir pela paixão até ao sangue” (HORTA, 2010, p. 295) e que, conscientemente, pouco antes afirmara: “Perder a minha paixão será a dissolução total, mas o entregar-me a ela é a minha loucura” (HORTA, 2010, p. 287).  Para vingar-se da traição do marido (Henrique H.) e do abandono e da rejeição da mãe (ocorridos na infância), mata a sua própria amante, Adele, a adolescente negra, para quem leu A paixão segundo G.H., e, por quem nem sequer sentia desejo, ajudada por um cão que “apareceu uma tarde vindo não se sabe de onde” (HORTA, 2010, p. 41) na casa da praia e que será o seu próprio reflexo e o seu desdobramento (o cão – signo da melancolia –, referido em Origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin?). Adele será, portanto, uma interposta pessoa, vítima sacrificial (o homo sacer, teorizado por Agamben?), um perfil, uma personagem de um filme de Truffaut – Adele H., a filha de Victor Hugo, também consumida pela paixão, pelo abandono e pela loucura (HORTA, 2010, p. 145). A sublimação da perda ou a impossibilidade dela levará a personagem Constança H. a inventar histórias como se fosse outra e a “querer apagar o passado para que nunca tivesse existido”: “Constança pretende esquecer a memória, que para ela é uma farpa enterrada na carne a roer-lhe o sangue” (HORTA, 2010, p. 75). Consciente de que “o temor avassalador pela paixão, ou por aquilo a que a paixão poderá obrigar” – “uma “insubordinação submersa” – ou abrigar, acabará levando-a a caminho do abismo, uma vez que “não conseguirá voltar atrás” e nem “fugir da criança que fora”, marcada, para sempre, pelo medo, pela loucura da mãe, pelo abandono e pelo suicídio” (HORTA, 2010, p. 152). “Consciente da sua desagregação, da sua desorganização interior, do seu caos e da depressão cada vez maior” (HORTA, 2010, p. 136), Constança H. “ficará do lado das trevas, do negrume de si própria, tacteando por dentro dos seus sentidos e pulsões mais escondidos” (HORTA, 2010, p. 110). Aqui, vivencia “a noite escura da alma” de São João da Cruz e está a um passo da hybris ou desmedida da tragédia clássica. Eros (pulsões de vida) e Thanatos (pulsões de morte) coexistem na interioridade do sujeito. No espaço textual, várias palavras assinalam a paixão desmedida ou “insensata”, tais como: “voragem”, “fome”, “desassossego”, “veneno” e “vício” (“Henrique era um vício doloroso de suportar” (HORTA, 2010, p. 72). E, embora seja necessário esquecer, reluta diante do tratamento que lhe é imposto, pois “não quer conhecer de novo aquele espaço negro onde se afunda a caminho do nada” (HORTA, 2010, p. 57). O seu “corpo”, antes “úmido de prazer” é substituído por outro “seco”, “ferido” e “gretado”. E é interessante observar que a sensação de nihilismo existencial e a presença de determinados adjetivos, relacionados à constituição dos seres ou ao seu estado, também estão presentes no romance de Clarice Lispector. Em ambos os romances, o êxtase místico marcará a vivência das personagens femininas. Em Maria Teresa Horta, há visões dos anjos do Apocalipse, a visita de um arcanjo, o que estabelece uma analogia entre a personagem Constança H. e Teresa d’ Ávila – paradigma feminino de transgressão, sonhos e visões. A personagem G.H., de Clarice Lispector também passará pela experiência da náusea, da ascese e da perda da própria individualidade, pelo “momento do rapto da alma e do desprendimento do próprio Eu” (HORTA, 2010, p. 105), em um outro nível, como veremos mais adiante. Henrique, por sua vez, personagem de A paixão segundo Constança H., que “nunca conseguira explicar a si mesmo porque se deitara com outra” (HORTA, 2010, p. 130), movido pelo remorso e pelo vazio, pela ausência incontornável e insuportável do outro, suicida-se, após a prisão de Constança H. Seu corpo é encontrado pelos filhos que ficam petrificados diante da cena dos pulsos cortados e do sangue a escorrer da banheira. E o leitor pergunta-se: Como narrar o inenarrável, o inelutável e intrinsecamente cruel, as experiências traumáticas e eróticas plenas de “ardência”?
O romance de Maria Teresa Horta circunscreve-se, dessa forma, na crise da representação e na Estética da Crueldade: mostra-nos o derramamento de sangue verdadeiro e de situações sutilmente ou inelutavelmente cruéis, o excesso de sentimentos através da vivência do pathos e da hybris, a presença de repetições e paroxismos, na estrutura discursiva (capítulos que possuem ligeiras modificações ou são repetidos, na íntegra, ratificam as situações traumáticas fixadas na memória – mortes, abandonos e perdas irreparáveis), as múltiplas versões de um mesmo fato, exemplificando a indecidibilidade de uma escrita que transita no limite entre a realidade e o imaginário, pleno de alucinações e imagens fantasmáticas, inerente a um sujeito que “deixava que os sonhos chegassem para os apanhar de viagem” (HORTA, 2010, p. 299). E, ao final do romance A paixão segundo Constança H., lemos que “os sentimentos ultrapassavam o entendimento” e “nada se cumpria” (HORTA, 2010, p. 299). A personagem continua a simular que engole os comprimidos, escondidos debaixo do colchão e continua a ser, violentamente, injetada. “Os ferozes predadores do deserto do seu caos interior” (HORTA, 2010, p. 251) permanecem e a ardência do desejo não se reduz a cinzas. Façamos nossas as palavras de Marilena Chauí, em seu ensaio, “Laços do desejo”:
 

Seja como desejo de reconhecimento, seja como desejo de plenitude e repouso, o desejo institui o campo das relações intersubjetivas, os laços de amor e ódio e só se efetua pela mediação de uma outra subjetividade. Forma de nossa relação originária com o outro, o desejo é peculiar porque, afinal, não desejamos propriamente o outro, mas desejamos ser para ele objeto de desejo. Desejamos ser desejados. Donde a célebre definição do desejo: o desejo é desejo do desejo do outro (CHAUÍ, 1990, p. 25).

Constança H. deseja ser desejada por Henrique e enlouquece quando ele se aproxima de outra que precisará ser eliminada, por ela, simbolicamente. Afinal, “O inferno mesmo é o do amor”, [já] dizia Clarice Lispector” (HORTA, 2010, p. 133). O extrato abaixo, inserido no livro de Maria Teresa Horta, assim o confirma:
 

(Com os seus silêncios.

Constança ficava horas imaginando como po-

deria ter sido o desejo de Henrique pela outra.

Mas esquecia-se de tudo quando na cama fica-

vam agarrados os dois, os corpos muito juntos.

Colados.

Sentia como o pénis dele se entesava no calor

das suas coxas.

Com os seus silêncios ele defendia-se de Cons-

tança; da sua loucura?

Desmesura.

Constança olhava a nesga do céu cinzento pelas

grades estreitas da pequena janela.) (HORTA, 2010, p. 181).

 
Em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, deparamo-nos com o fluxo de consciência da personagem feminina que também vivencia o pathos (a paixão) e a hybris (desmesura ou desmedida), em decorrência do desencantamento do mundo. Ao buscar a sua “verdade”, a personagem G.H. conscientiza-se de que “havia fundado toda uma esperança em vir a ser aquilo que não era” e se pronuncia: “Até que ponto até agora eu havia inventado um destino, vivendo no entanto subterraneamente de outro?” (LISPECTOR, 1997, p. 39). Além disso, a “esperança” de uma vida anterior é posta em dúvida e abandonada, diante do exercício de uma “coragem” e de uma “curiosidade mortal”, ao deparar-se com o neutro e com o inumano, representados, a princípio, pelo desenho a carvão do contorno do corpo de uma mulher, encontrado na parede do quarto da empregada que se despedira, na véspera, e, logo depois, pela “massa amorfa” e “branca” de uma barata, esmagada pela cintura, na porta do guarda-roupa, e que acabará por colocar na boca, num “ato de gustação totêmica” (LISPECTOR, 1997, p. 109). Tal gesto será o “único a reunir o corpo e a alma” (LISPECTOR, 1997, p. 106) e a melhor “prova de transmutação” do sujeito em si mesmo, plena de redenção e de “transcendência” (LISPECTOR, 1997, p. 107). Segundo os comentários críticos de Benedito Nunes, implícitos à edição de A paixão segundo G.H. (ALLCA XX / Scipione Cultural), “uma das formas de comunicação vital, no texto clariceano, é a que se consuma pelo olhar. Existe, em sua visão de mundo, uma espécie de erótica (eros do olhar), que pode levar à vertigem, ao êxtase epifânico” (NUNES apud LISPECTOR, 1997, p. 38), em que o “divino” acaba por se aproximar do “real” (LISPECTOR, 1997, p. 107). O olhar, portanto, dirigido ao desenho vazio na parede e à barata (ambos, metáfora da própria mulher), permitirá a instauração do “inexpressivo”, “demoníaco” ou “diabólico”, capaz de “designar a busca secreta de G.H.” (NUNES apud LISPECTOR, 1997, p. 64-65). Implícito a isso, encontram-se a “orgia de ser” e o sentido do “inferno”, marcado pela “aceitação cruel da dor, [pela] solene falta de piedade pelo próprio destino; amar mais o ritual de vida que a si próprio – esse era o inferno, onde quem comia a cara viva do outro espojava-se na alegria da dor” (LISPECTOR, 1997, p. 78). Semelhante postura – a presença de uma “avidez colérica e assassina”, encontrada, também, em A paixão segundo Constança H., de Maria Teresa Horta –, transmuta-se, na ficção de Clarice Lispector, em uma “cólera sagrada e vital”, de ordem metafísica. Em comum, a “tentativa de violentação do próprio sujeito”, responsável por “aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência” (LISPECTOR, 1997, p. 96-97). Assim, a personagem clariceana, ao tocar na essência da barata, toca no que é “proibido” ou “imundo”, no “núcleo do vivo”, na “raiz”, no “neutro”, no “sem adornos”, o que permite à narradora estabelecer um diálogo intertextual, pelo avesso, com o Deuteronômio.[1] Em A paixão segundo G.H., o confronto entre as duas personagens – G.H. e a barata – acaba por estabelecer uma analogia entre elas: ambas são “várias em suas “cascas”, de que vão “se desvencilhando”, “neste percurso de desnudar-se até a sua essência máxima” (GOTLIB, 1997, p. 175). Em ambos os romances, os bichos (o cão e a barata) constituem uma “simbologia do Ser” (NUNES, 1969, p. 125).
A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, apresenta, portanto, a temática da “despersonalização como a grande objetivação de si mesmo”, o que “implica o encontrar ou reconhecer o outro sob qualquer disfarce” (LISPECTOR, 1997, p. 112). E, por isso, a personagem feminina “deseroiciza-se”, opta pelo ínfimo, assume-se como alguém destituído de um nome próprio e, “porque se despersonaliza, a ponto de não ter o seu nome, responderá a cada vez que alguém lhe disser: eu” (LISPECTOR, 1997, p. 112). Evidencia-se, assim, “o despojamento do EU e a renúncia da individualidade egoística” (NUNES, 1969, p. 111). Em A paixão segundo Constança H., vimos que o próprio nome, assinalado pela fragmentação presente na abreviatura, poderia ser estendido a várias mulheres, situadas em tempos e em épocas diferenciados, como atestam as enunciações discursivas inerentes às cartas. Revela-se, assim, na narrativa, a não contradição do ser-no-mundo, a constatação de que “todas as figuras humanas criadas pela romancista são sempre iguais, de que todas as suas personagens resumem-se em uma só personagem” (NUNES, 1969, p. 116). Isso permite-nos constatar que estaríamos diante do “amor do neutro – da coisa a que se reduzem todas as coisas” (NUNES, 1969, p. 111) ou todos os seres.
Segundo Benedito Nunes, em A paixão segundo G.H., “os seis travessões, que iniciam e finalizam a narrativa, marcam a ruptura de G.H. com o seu mundo” (NUNES, 1997, p. 9). “O silêncio, desistência da compreensão e da linguagem, é o termo final da aventura espiritual de G.H., que principia pela náusea e culmina no êxtase do Absoluto, indiscernível do Nada e tal aventura é a via crucis de uma paixão” (NUNES, 1997, p. 115). E como a personagem “só pode amar a evidência desconhecida das coisas” (LISPECTOR, 1997, p. 115), é inevitável a “ausência de compreensão daquilo que é dito”. E o romance, experiência-limite do sujeito e da linguagem transgressora, termina, enfatizando o silêncio, assinalado, graficamente, por seis travessões: “A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. – – – – – –” (LISPECTOR, 1997, p. 115). Tal recurso estilístico, segundo Benedito Nunes, indica os seis reinos de Salomão e marca essencialmente a oposição da criatura ao criador, em um equilíbrio indefinido.[2] Convém lembrar que, na ficção de Clarice Lispector, a paródia de textos bíblicos afirma a condição humana.
Parece-nos, portanto, que ambas as romancistas, ao levar ao limite a indagação sobre as possibilidades ontológicas da linguagem, acabam por revelar um preceito socrático: “a tomada de consciência de si através da consciência da significação das palavras” (PESSANHA, 1990, p. 110) ajuda os sujeitos a descobrir a “verdade de si mesmos”, necessária ao seu crescimento. Em ambas as romancistas, a questão da linguagem entrelaça-se com as duas formas de desejo, na ótica platônica: o “desejo-aspiração” e o “desejo-apetite”.
José Américo Motta Pessanha, em seu ensaio “A água e o mel”, inserido em O desejo, afirma o seguinte:
 

Assistimos, no interior da obra de Platão, ao confronto entre duas formas de desejo: de um lado, o desejo enquanto aspiração, enquanto anelo, a remeter a alma ascensionalmente, na direção de sua condição originária; de outro lado, o desejo enquanto apetite, que crava a alma no corpo, prendendo-o à horizontalidade da imediatez, do factual, do empírico. O primeiro é impulso de liberação, o segundo aprisiona. O primeiro é nostálgico anseio de retorno à incorporeidade pura, apontando para alhures; e o segundo persegue vorazmente, na sofreguidão do corpóreo, o aqui e o agora. Cada qual subentende um tipo de vínculo com a temporalidade e associa-se a uma espécie de memória. Mais: esse embate entre desejos voltados para objetos de diferentes naturezas – um, o claro objeto de aspiração, o outro, o obscuro objeto dos conturbados apetites – cria uma tensão permanente, que ultrapassa o nível psicológico e se desdobra nos planos epistemológico, ético, político, constituindo um dos focos irradiantes da sempre reaberta construção do platonismo (PESSANHA, 1990, p. 91).

Segundo Marilena Chauí, em “Laços do desejo”, ensaio inserido na coletânea acima citada, a própria origem etimológica da palavra “desejo” (do verbo desidero) acaba por instaurar o significado de desiderium, que “significa uma perda, privação do saber sobre o destino, queda na roda da fortuna incerta”, e ainda, “desejo ou apetite de possuir alguma coisa cuja lembrança foi conservada”. E continua: “O desejo chama-se, então, carência, vazio que tende para fora de si em busca de preenchimento, aquilo que os gregos chamavam “hormê”. (CHAUÍ, 1990, p. 23). No entanto, isso não anula “a vontade consciente nascida da deliberação”, vontade de se tomar o “nosso destino em nossas próprias mãos” (CHAUÍ, 1990, p. 22), o que pressupõe uma atitude ética e política. No entanto, Marilena Chauí, no ensaio referido, nos alerta de que “quando procuramos, nos primeiros filósofos modernos, a palavra que traduzimos por desejo, descobrimos que não empregam desiderium e sim appetitus, tendo como referência os vocábulos gregos oréxis e hormê” (CHAUÍ, 1990, p. 27). Detenhamo-nos em oréxis, vocábulo que nos irá permitir tecer uma consideração sobre o romance A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Vejamos:
 

Oréxis,ação de tender para algo ou alguém, donde apetite e desejo, vem de orégô,, tender, estender, dar, oferecer, estender as mãos para implorar e, na voz média, orégomai, significa estender-se, alongar-se com as mãos, tentar pegar, tocar com as mãos, visar e procurar atingir alguém para feri-lo (assim são as flechas de Eros-Cupido), lançar-se, expandir-se de alegria, aspirar (à verdade, à glória, à riqueza), puxar para si alguma coisa, donde desejar (CHAUÍ, 1990, p. 27).

No romance citado, “G.H, dialoga com um interlocutor imaginário” (o leitor?) “e, metonimicamente, esse interlocutor é identificado, ao longo da narrativa, com a mão que ela segura” (NUNES, 1997, p. 13). “Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria” (LISPECTOR, 1997, p. 13). Simbolicamente, tal frase está gravada no túmulo de Clarice Lispector, no Cemitério judaico do Caju, no Rio de Janeiro.  E, segundo Benedito Nunes, a “mão anônima” é a “mão do leitor” – “o suporte necessário de sua narrativa” (NUNES apud LISPECTOR, 1997, p. 105). Vejamos:
 

– Ah, não retires de mim a tua mão, eu me prometo que talvez até o fim deste relato impossível talvez eu entenda /. . ./ mas não retires tua mão, mesmo que eu já saiba que encontrar tem que ser pelo caminho daquilo que somos, se eu conseguir não me afundar definitivamente naquilo que somos (LISPECTOR, 1997, p. 48).

Pensamos que tal embate entre as duas formas de desejo (o “desejo-apetite” e o “desejo-aspiração”) está representado em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector e em A paixão segundo Constança H., de Maria Teresa Horta, através da via crucis das personagens femininas. Situadas entre a “casa” e a “cave” (espaços metonímicos representantes do metafórico social), descobrem que a trajetória existencial da via crucis “não é um descaminho”, mas uma “passagem única”, a “trajetória não é um modo de ir”, “somos nós mesmos”, em “meio ao esplendor de se ter uma linguagem” capaz de “anteceder a posse do silêncio” (LISPECTOR, 1997, p. 113). Essa trajetória é marcada pelos travessões (sinais gráficos de ausência), no texto de Clarice. Índices de que “é melhor silenciar acerca do que não pode ser expressado’? (NUNES apud LISPECTOR, 1997, p. 127).
Temos, assim, em A paixão segundo Constança H. e em A paixão segundo G.H., duas visões ou versões sobre a paixão, a partir da consciência reflexiva das personagens femininas que, movidas pelo desejo de ser e de “atingir a existência universal em sua nudez” (NUNES, 1969, p. 127), preferem “arder” a “durar”.
 
 
Referências bibliográficas
CHAUÍ, Marilena. “Laços do desejo”. In: CHAUÍ, Marilena (et al.). O desejo. Adauto Novaes (org.). São Paulo: Companhia das Letras; Rio de Janeiro: Funarte, 1990. p. 19-66.
DIAS, Ângela; GLENADEL, Paula (orgs.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004.
GOMES, Renato Cordeiro. Narrativa e paroxismo: será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade? In: Estéticas da crueldade. Ângela Maria Dias e Paula Glenadel (orgs.). Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004.
GOTLIB, Nádia Battella. “Um fio de voz: Histórias de Clarice”. In: GOTLIB, Nádia Battella (et al.).
HORTA, Maria Teresa. A paixão segundo Constança H. Lisboa: Bertrand Editora, 1994, 2010.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Edição Crítica Benedito Nunes (Coordenador). Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, São José da Costa Rica, Santiago de Chile: Scipione Cultural / ALLCA XX, 1997. (Col. Archivos, 13).
NUNES, Benedito. O mundo imaginário de Clarice Lispector. In: NUNES, Benedito. O dorso do tigre. Ensaios. São Paulo: Editora Perspectiva, 1969. (Col. Debates, 17). p. 93-142.
NUNES, Benedito. Comentários feitos na Edição Crítica. In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Benedito Nunes (Coordenador). Madrid, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, São José da Costa Rica, Santiago de Chile: Scipione Cultural / ALLCA XX, 1997. (Col. Archivos, 13). p. 6-115.
PESSANHA, José Américo Motta. A água e o mel. In: PESSANHA, José Américo Motta (et al.). O desejo. Adauto Novaes (org.). São Paulo: Companhia das Letras; Rio de Janeiro: Funarte, 1990. p. 91-124.
 
NOTAS:
 
[1] Veja-se a citação explícita em Levítico ou Deuteronômio: “E tudo o que anda de rastos e tem asas será impuro, e não se comerá.” (LISPECTOR, 1997, p. 47). Observe-se, agora, outra afirmação implícita no mesmo capítulo de A paixão segundo G.H., indiciadora da transgressão cometida: “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.” (LISPECTOR, 1997, p. 47).
[2]Segundo Benedito Nunes, tal “oposição” não configura uma contradição, mas, antes, “uma distinção”, o que remete para a origem da ambivalência do número seis e sua significação: bem ou mal; união com Deus ou revolta; número do destino místico; referenciado, no Apocalipse, como o número do pecado, representa o homem físico sem o seu elemento salvador, sem essa parte suprema de si mesmo que lhe permite entrar em contato com o divino.




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