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CATIVOS, MULATAS E CALHAMBOLAS – UM ESTUDO SOBRE A TEMÁTICA NEGRA NO ROMANTISMO BRASILEIRO – Walter De Souza Lopes




Resumo:
Nosso trabalho trata da poesia de temática negra, a partir do que Antonio Candido escreveu, quando de seu estudo específico sobre a obra poética de Castro Alves. Nosso interesse pauta-se no fato de que a escravatura e a abolição são assuntos que permeiam todo o final do século passado, sendo a Guerra do Paraguai um pequeno interregno a essa questão e a República, uma como quê conseqüência dessa.
Texto:

CATIVOS, MULATAS E CALHAMBOLAS –

UM ESTUDO SOBRE A TEMÁTICA NEGRA

NO ROMANTISMO BRASILEIRO

WALTER DE SOUZA LOPES(*)
DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA

orientado pela Profa. luiza Lobo – UFRJ/CNPq)

Nosso trabalho trata da poesia de temática negra, a partir do que Antonio Candido escreveu, quando de seu estudo específico sobre a obra poética de Castro Alves. Nosso interesse pauta-se no fato de que a escravatura e a abolição são assuntos que permeiam todo o final do século passado, sendo a Guerra do Paraguai um pequeno interregno a essa questão e a República, uma como quê conseqüência dessa.

Ainda seguindo os passos de Candido, buscamos em poetas desconhecidos ou famosos por outras especialidades (Bernardo Guimarães, Gonçalves Dias, Juvenal Galeno, Narcisa Amália) fazer um pequeno painel de como todo o Romantismo brasileiro (em todas suas fases, já que o século XIX é seu, e o século XIX é a questão social do negro, por excelência) está impregnado pela questão, seja em termos etnográficos, de costumes, seja em termos libertários.

Isso porque, como nos explica Antonio Candido, após ter transformado o agora praticamente desaparecido índio em quase um mito, o mesmo não seria possível de ser feito em relação ao cotidiano e inferior, segundo a nossa estrutura de castas, escravo negro. Assim sendo, e ressalvado um ou outro poema lírico, a questão negra surgiu primeiro para a consciência literária como problema social.

Isso nos faz lembrar que Sartre falava que a obra literária é um chamamento; que não se busca um leitor passivo; busca-se uma liberdade pura, o puro poder criador, a atividade incondicionada. Dizia também o autor de As palavras que “um dos principais motivos da criação artística é indubitavelmente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação com o mundo.”

Palavras com que Schlegel, por certo, concordaria, posto que ele mesmo já escrevera que poesia se faz com idéia, o modelo é apenas estímulo e meio para dar forma ao pensamento do que se quer representar. É pela idéia que se deve fazer poesia, arte. Não se vive na esperança, “mas na certeza da nova aurora da nova poesia.”

É desse papel social, de engajamento, que se investiu o poeta romântico. Desde Byron, desde Hugo, essa função estava sempre imersa em cada movimento ou palavra dos seus autores. E o principal inimigo, o principal embate que seria enfrentado pelo romântico era a tirania, a prisão, a escravidão.

Não havia como fugir: o momento histórico urgia que as consciências se voltassem para nossa realidade, a fim de conhecê-la, criticá-la ou o mais que fosse. A ingenuidade seria de ser esquecida, e o patriotismo, a antropologia, o abolicionismo, estarão na ordem do dia. Nossos poetas não podem mais fugir de sua missão histórica. Não que já não a tivessem. Mas agora ela é o cerne de toda a nossa vida futura.

Para essa explosão de temática abolicionista, foram necessários, é certo, anos de maturação. E precursores. Perdigão Malheiro e Tavares Bastos foram alguns desses arautos de uma nova época.

Perdigão Malheiro escreveria, por exemplo, sobre o escravo ante as leis positivas; lembraria também a escravidão nos índios; chamaria a atenção para os primeiros abolicionistas; bradaria: “Se Dante Alighieri tivesse vivido no século XVIII, colocaria o vértice dos sofrimentos inesquecíveis, o círculo de seu inferno, no porão de uma embarcação negreira, num desses núcleos de suplícios infinitos que apenas poderia descrever a poesia sinistra da loucura.”

Já Tavares Bastos, em suas Cartas do solitário, mencionaria a sorte dos africanos livres; o auxílio não muito desinteressado da Inglaterra no fim do tráfico dos africanos para o Brasil; as leis, os decretos e os avisos atenuando as agruras servis: escravos entrados de fora no Brasil ficam livres (1831); depósito dos negros, para posterior envio à África (1832); a carta que declara o negro livre, numa lata, suspensa do seu pescoço (1834).

Deixando os filósofos e os historiadores, e nos voltando para os poetas menores mencionados por Candido, lembramos que, a rigor, não existe efetivamente poeta maior ou menor. Sempre haverá a impossibilidade de se chegar a um acordo quanto a isso. Eliot chega a pensar nas possibilidades de definição para o poeta, ou poesia menor: que escreveram só poemas curtos; que estão inseridos só em antologias. Ele acaba por se ater a uma breve definição do que seria um poeta maior: “um poeta menor é aquele de cuja obra temos de ler uma boa parte, mas não necessariamente toda a obra.”

Esse seria, por exemplo, o caso dos “lamentos do escravo”, de Carlos Augusto de Sá; de João Salomé Queiroga e seus poemas em que surgem mucamas, feitores, escravos velhos já incapazes de trabalhar.

Voltando no tempo, descobrimos que já em Gonçalves de Magalhães encontramos referências à questão do negro. O poema é “A saudade”, e nele avistamos a nostalgia da pátria distante, que não produz apenas lágrimas, mas principalmente fel:

Ó terra do Brasil, terra de Pátria

Quantas vezes do mísero africano

Te regaram as lágrimas saudosas?

magoados acentos

do cântico do escravo

Ao som dos duros golpes do machado.

Não podemos esquecer de Joaquim Serra e seus poemas muito elogiados por Nabuco, como “o feitor”, “A desobriga”. – E tampouco devemos deixar de lembrar “Jovino, o senhor d’escravos”, de Trajano Galvão. Cesarina é perseguida pelo senhor, Jovino. Não o quer. É morta. O pai foge. O sedutor persegue-o. Lutam. O escravo mata o Senhor.

Do cantor dos timbiras e dos Piramas, conhecemos “A escrava”. Ela sonha com sua terra distante, no Congo; sonha com seu sol e suas areias escaldantes; sonhos que a áspera voz do seu senhor faz cessar.

O poema de Gonçalves Dias se inicia com uma epígrafe de Marino Faliero, relacionada a um tema tão caro ao poeta maranhense, o exílio. E é através do exílio que os espaços da distante pátria parecem ficar ainda maiores; onde as diferenças de religião e de cultura se acentuam.

Recorda ainda a escrava o seu amante perdido, ele, a quem ela o aguardava “debaixo da bananeira, sob um rochedo”. E quando ele chegava, audaz e corajoso, chamava-a para, juntos, sentarem-se sobre o cimo do rochedo. E Alsgá, a jovem princesa, segura e tranqüila em relação ao seu guerreiro, apenas lhe respondia : “Irei contigo, onde fores!”

E suas lembranças dela continuariam, se não viesse próxima a voz irritada do seu senhor; ainda chorando, a escrava (que não era mais Alsgá, porque escravo tem apenas o nome que seu senhor assim determina) voltou aos seus que-fazeres. Ainda que sempre exclamando, entre chorosa e saudosa: “Congo!”

Considerado por Manuel Bandeira melhor poeta que romancista, também Bernardo Guimarães escreveu sobre o negro. Em seu “À sepultura de um escravo” encontramos a homenagem ao cativo em seu único lugar de paz: o túmulo.

Somente à campa eterna o preto, agora livre dos ferros, pode dormir sossegado, debaixo da terra que sempre regou “de prantos e suores”. Fiel escravo, o Africano agora poderá descansar em paz:

Ó lúgubre aposento,

Deixai cair ao menos

uma lágrima

De compaixão sobre essa

humilde cova;

Aí repousa a cinza do Africano,

– o símbolo do infortúnio.

Poeta regionalista e sertanista, Juvenal Galeno escreveu também, e muito, sobre a escravidão. Em tom operístico, produziu obras que eram recitadas par a par com as apóstrofes vulcânicas do autor de Acachoeira de Paulo Afonso: “O escravo”, “A abolição”, “O abolicionista”.

Em “O escravo”, por exemplo, em tom melodramático e com a utilização de várias, e excessivas, rimas em “ar”, o poeta aponta o dedo em riste contra os carrascos, e, na pele do desventurado cativo, só deseja um fim para as suas desditas:

Desgraçado… oh, quanto custa

Esta vida suportar!

Carrascos… cruéis demônios

Acabai de me matar!

Qu’eu possa, qu’eu possa um dia

O meu tormento acabar!

Oh, que sorte! Oh, quanto custa

Esta vida suportar!

Mas há outros exemplos do estro poético abolicionista de Galeno. Lembremos, por exemplo, de “A noite na senzala”, que é o relato da flagelação de escravos, violação de mucamas virgens, venda de filhos arrancados aos braços maternos. Um tanto mais ameno, “A escrava” é a autobiografia em verso de uma cativa que os maltratos fizeram enlouquecer.

Há também “Escravo suicida”, aquele que não morre nem por melancolia nem pelo chicote do feitor, mas que protesta que já não quer sofrer e que vai suicidar-se.

Tão exaltado como altamente original para sua época, Sousândrade, também no assunto “escravo africano” deixou sua maca. Não só por Ter sido um dos primeiros a escrever sobre o assunto, mas também por Ter antecipado em mais de vinte anos os poetas abolicionistas.

Em Harpas selvagens, por exemplo, há por exemplo “A escrava”, no qual a linguagem é concisa, mas perfeitamente emocionante. É a impossibilidade de ver o sol nascer ou pôr-se; nesta hora em que contempla os astros e as estrelas é às ocultas de seus patrões, “eu vejo em tudo/ meus soberbos senhores.”

A escrava ama, mas sua condição servil não lhe dá oportunidades de demonstrar seu sentimento. Só lhe resta sonhar com os céus, ou talvez nem isso, afinal, até em Deus lhe falta esperança:

Do mundo o meu amor não se a‘imenta

Que não há liberdade: eu sonho os céus…

Mas, nos céus não há Deus… na minha vida

Não há nenhuma esp’rança!

Chega a aurora, e enquanto observa-a, ouve sons de chicote, ao longe. É o irmão gêmeo que é castigado (afinal, desejara a filha do senhor). – Foge para uma fazenda vizinha, mas aí encontra apenas a zombaria e o oferecimento de proteção apenas se aceitasse se deitasse com o senhor. Desesperada, retorna a sua antiga morada e confessa a sua fuga; porém não haverá misericórdia: escravo fugitivo tem de ser castigado:

Peada em duros nós, lhe começavam

Despir o corpo e o seio: ela tranziu:

Gargalhada infernal oblíqua ao mundo…

Emudeceu. Mistério!

E seu irmão gemeu no mesmo tempo,

Em seu túmulo o sol também fechou-se,

E todos para o Deus partiram juntos –

Crioula, escravo e sol.

Da poetisa fluminense Narcisa Amália, nascida em São João da Barra, terra de escravos e de fazedores de navios para apresá-los, temos vários poemas de índole abolicionista. “Perfil de escrava”, “Castro Alves”, por exemplo. “Miragem”, também. Nesse poema, os negros são comparados a um imenso oceano que se revolta, no verão.

Com epígrafe de Lamartine sobre os escravos e uma dedicatória a Celso de Magalhães, “O africano e o poeta” é mais um poema à beira do túmulo de um cativo.

Menciona o escravo assustado, escondido, no canto, tristonho, furtivo; que chora e se desgosta; que fala baixo; que desde sempre foi condenado, exilado e a quem só resta, como fuga, a própria morte:

Meu Deus! ao precito

Sem crenças na vida,

Sem pátria querida,

Só resta tombar!

Mas… quem uma prece

Na campa do escravo

Que outrora foi bravo

Triste há de rezar?!…

E aqui terminamos nosso trabalho, sempre lembrando, com Candido, que trazer o negro à literatura, como herói, foi um feito apenas compreensível à luz da vocação retórica daquele tempo, facilmente predisposto à generosidade humanitária. E que, a um olhar mais atento, seriam percebidas as resistências que o processo encontrava, não apenas no público, mas no próprio escritor.

Enquanto se tratava de cantar as mães-pretas, os fiéis pais-joões, as crioulinhas peraltas, não havia problema; mas na hora do amor e do heroísmo, o ímpeto procurava acomodar-se às representações do preconceito. Assim, os protagonistas de romances e poemas, quando escravos, são ordinariamente mulatos, a fim de que o autor possa dar-lhes traços “brancos” e, dessa forma, enfeixá-los nos padrões da sensibilidade “branca”.

Passando por cima de tantas barreiras sociais, psíquicas e estéticas, ainda assim percebe-se, de fato, a extrema idealização de traços físicos e morais com que o apresentam.

Mas, apesar de tudo, esta idealização foi porventura o traço mais original, mais importante e mesmo mais positivo da poesia negra. Realmente, e como Antonio Candido acentua, se o tom humanitário e reivindicatório representa, de um lado, um mecanismo de pensamento e de um sentimento já existentes na oratória, e largamente desenvolvidos nela; de outro, não implica fusão afetiva. É um ideal de justiça pelo qual se luta, sem completar a penetração simpática na alma do negro.

A idealização, porém, agindo no terreno lírico, permitiu impor o escravo à sensibilidade burguesa, não como coitado ou mártir; mas, o que é menos fácil, como ser igual aos demais no amor, no pranto, na maternidade, na cólera, na ternura.




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