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Revista LitCult
ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





ANTÍGONA: PERFORMATIVIDADE DE PROTEÇÃO E LIBERTAÇÃO – Leandro Nazareth Souto




 
 

Leandro Nazareth Souto

 Universidade Federal de Uberlândia

 
 
Resumo: O estudo em questão tem por objetivo apresentar e desenvolver uma análise sobre a performatividade de Antígona, personagem central da maior das tragédias escritas por Sófocles por volta de 400 a.C., apresentar as leituras ou releituras realizadas desta tragédia por Hegel, Lacan e Butler, feitas à luz do seu tempo e fundamentadas em suas teorias, bem como apresentar Antígona como figura literária, mas sobretudo como uma figura histórica extremamente atual.
 
Palavras-chave: Antígona; Hegel; Lacan; Butler; Literatura Antiga; Filosofia Antiga; Feminismo.
 
Abstract: The present study aims to present and develop an analysis of the performativity of Antigone, the central character of the greatest tragedy written by Sophocles around 400 BC, to present the readings or rereadings of this tragedy made by Hegel, Lacan and Butler in the light of his time with basis on their theories, but mainly to present Antigone as a literary figure and above all as a historical figure extremely up-to-date.
 
Keywords: Antigone; Hegel; Lacan; Butler; Ancient Literature; Ancient Philosophy; Feminism.
 
Minicurrículo: Leandro Nazareth Souto é mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia
ANTÍGONA: PERFORMATIVIDADE
DE PROTEÇÃO E LIBERTAÇÃO
 
 
Leandro Nazareth Souto
 
Universidade Federal de Uberlândia
 
Vede como, sem que sejam ouvidas as lamentações de meus amigos, como e por que leis sou levada a um covil de pedra, a um túmulo de nova espécie. Como sou infeliz! Nem sobre a terra, nem na região das sombras, poderei habitar, nem com os vivos, nem com os mortos”.  SÓFOCLES, Antígona.
 
O Clamor de Antígona é um grito, muito parecido como uma vocalização de um pássaro que projete seus filhotes. Tomando como base a questão da ave de rapina que protege seus filhotes, é preciso relembrar que a vocalização das aves está entre as manifestações da natureza que mais fascinam o ser humano, e, portanto, essa referência foi bem marcante, os pássaros vocalizam a todo instante, e não rara vezes vemos artistas, músicos e escritores colocando o canto das aves antropomorfizados em beleza, saudade e tristeza, as vezes também são identificados como veículo de interação social, alerta e cortejo, mas aqui nossa referência não fora de um canto belo e suave, mas sim de um grito, um grito que protege, que enfrenta o opressor e que liberta os que presenciam. Um grito de alarme é um fator de demonstração de perigo do indivíduo para ele mesmo, contudo, a “compreensão” que os demais indivíduos têm dessa vocalização faz com que esses também se coloquem em estado de alerta.
A primeira parte desse trabalho falará um pouco sobre a tragédia, pois ela tem sempre algo para nos ensinar, ela traz sempre um fundamentação teórica, ética, necessária. Antígona carrega toda uma historicidade que é importante postularmos, e para isso, é importante lembrar que o que importa em uma tragédia não é sua veracidade histórica, e sim sua verossimilhança, o que importa não é se ela aconteceu, mas sim que poderia ter acontecido, e, por isso, pode nos ensinar.
Antígona era filha de uma relação incestuosa entre Édipo e Jocasta, filho e mãe, que tinham além dela, mais três filhos, Ismênia, Etéocles e Polinice, sendo os dois últimos os personagens coadjuvantes que causam o problema central de toda a trama. Antígona já era considerada uma personagem forte nas outras tragédias de Sófocles, Foi a única filha que não abandonou Édipo quando este foi expulso de seu reino, Tebas, por seus irmãos, Polinice tentou convencê-la a não partir, enquanto Etéocles ficou indiferente com sua partida. Antígona acompanhou o pai até o momento de sua morte, retornando a Tebas posteriormente, vê seus irmãos brigando pelo trono, em um combate singular, onde ambos morrem.
Creonte, tio de Antígona herda o trono, pois é o parente mais próximo da linhagem de Jocasta, mãe de Antígona, e logo após a morte dos sobrinhos, manda fazer uma sepultura com todas as honras para Etéocles, sobrinho preferido, e não só deixa Polinice onde caiu, para que o cadáver ficasse exposto à putrefação e a dilaceração, exposto para que aves ou animais comessem, e proíbe todo e qualquer cidadão de Tebas a não tocar no corpo, proibindo o enterro ou qualquer ato de culto ou ritual fúnebre. Creonte entendia que isso serviria de exemplo para todos os que pretendessem ir contra o seu governo.
Antígona, conhecedora das leis da cidade e dos deuses, e ao mesmo tempo indignada, próprio da sua própria natureza, tenta convencer o novo rei a enterrá-lo, fala diretamente a Creonte de igual para igual, ato raro para um diálogo entre uma mulher e uma autoridade do governo, coloca em cheque questões da morta e da ética, e também da religião, pois, aquele que morresse sem os rituais fúnebres seria condenado a vagar nas margens dos rios do hades, sem poder ir para o outro lado onde estariam os bem aventurados. Mesmo com todos esses argumentos religioso Creonte não sede, Antígona apela sobre as leis da cidade, ele também não sede, logo, não conformada ela rouba o cadáver insepulto que estava sendo vigiado, e enterra Polinice com as próprias mãos, novamente em um ato bruto, natural e de protetora, no entanto, como em toda tragédia, algo trágico acontece, ela é presa enquanto enterra seu irmão.
Neste momento inicia para nós a grande reflexão da personagem Antígona, ela mostra sua voz a partir dos questionamentos sobre a sua desobediência, mesmo sabendo da ordem de Creonte ela deixou claro que não deixará o corpo do irmão sem os ritos sagrados, mesmo que tenha que pagar com a própria vida por tal ação, mesmo ao se orientar com a imã, ela reforça sua força e mostra-se insubmissa às leis humanas por estarem indo de encontro às leis divinas e a própria lei da família.
Creonte ao descobrir que a cobertura do morto não tinha sido obra dos deuses, mas de um ato de desobediência de Antígona, ele se rebela e começa então toda a argumentação e travamento de ideias, de um lado Antígona mostrando sua lealdade a família e a leis divina, do outro Creonte a visão do inquisidor que queria apenas ser respeitado acima de tudo para que sua palavra continuasse firme, rocha.
Creonte apela para uma saída de chamar Ismênia, irmã de Antígona, para ser interrogada sobre o fato, ela arrependida de não apoiado a irmã no início da tragédia, confessa o crime que não cometeu, mesmo confessando, Antígona continua firme em seu posicionamento e não admira a irmã, por este pseudo ato de coragem, e reafirma que é a única e real transgressora. Ambas são condenadas à morte.
Creonte condena a morte Antígona pelo ato, pela desobediência, mesmo sabendo da importância dela para a família e também para seu filho, pois eles iriam se casar, sendo assim é travado um novo diálogo, agora entre Creonte e seu filho Hêmon, porém no diálogo fica evidente o perfil do jovem rapaz, submisso às ordens paternas e sem nenhuma força política e revolucionária, porém, tenta mesmo respeitando muito seu pai, demonstrar ideias em defesa de sua amada, de que os cidadãos comenta pelas ruas que estão de acordo com a ação de Antígona, neste momento Creonte é afrontado pela sua autoridade e questiona o filho que se é por acaso a cidade que tem poder de ordenar o que o Estado deve fazer. O filho então tenta recorrer as honras devidas aos deuses e que o ato não seria prudente, mas o pai se mantém irremediável. A discussão chega ao ponto de Hêmon ameaçar se matar caso o pai não revogue a condenação, Creonte para mostrar seu poder, ignora o filho e manda prender Antígona em uma caverna escavada na rocha, só com o alimento indispensável, para assim ter um fim lento e doloroso, um ato cruel em sua época.
Um novo personagem entra em cena, Tirésias, um adivinho conhecido e respeitado por todos adverte Creonte do mal que irá se abater em sua vida devido a esta ação cega de matar Antígona, por um ato de coragem e de honra aos próprios deuses, ato este que deixaria os próprios deuses enfurecidos. Creonte mantém-se irredutível na frente de Tirésias, mas logo é convencido de que deveria libertar Antígona, sepultar Polinice, porém, como em toda grande tragédia que quer nos ensinar algo sobre ética e moral, Creonte não consegue se redimir, e as diversas mortes acontecem sem sua intervenção, Antígona, seu filho Hêmon, sua esposa Eurídice, e é obrigado ali a viver com o grande peso em sua vida: “o único culpado sou seu, e nenhum outro. Eu, só eu foi quem matou, miserável. Eu, falo a verdade. Já, guardas, levai-me daqui, tirai-me sem demora. Eu não sou nada, sou menos que ninguém. […] Que eu não veja a luz de novo dia. […] Tudo o que tenho nas mãos vacila, e sobre minha cabeça a fatalidade desaba, insuportável (1320-1345).
Uma vez abordada a grande tragédia passaremos a análise de Hegel, Lacan e Butler sobre esta grande personagem. Para Hegel, Antígona é uma grande personagem que traz uma referência de uma discussão sobre a própria ética, ele faz uma trajetória importante a partir da personagem para mostrar a transição da lei do parentesco para a lei do Estado, a primeira com viés particular, singular, e a segunda com viés universal, pública. Creonte representa, em Hegel, a lei do Estado (universal e pública) quanto Antígona, com toda a sua voz e performatividade debatedora, representa a lei familiar (particular e singular). Neste sentido Hegel vê o grande embate em Antígona, da lei familiar com a lei do Estado, embate este sobre valores, princípios morais, normas e justiça.
Para Hegel a ordem social só é inaugurada pela suspensão da ordem singular, seja ela da família (singular e privada) e a da igreja (singular e privada). Para ele, Creonte está defendendo a esfera política, que deve ser regida sempre pela universalidade, simplesmente por ser pública. Hegel associa Antígona a uma lei que não é nem familiar e nem do estado, uma lei do feminino, algo estritamente particular, portanto adverso ao público e universal, e sua condenação se dá por ir contra o Estado em favor de um interesse puramente pessoal e particular. Neste sentido, toda a sua coerência de querer dar um enterro digno ao irmão, em atender os interesses divinos e até mesmo os interesses da família não tem importância, se ela está descumprindo uma lei do Estado, nesta perspectiva vemos claramente na tragédia de Sófocles o que é viver sob as leis.
Para Hegel não há nenhuma justificativa para que Antígona descumpra a lei de Creonte, simplesmente pelo fato da lei que ela invoca seja esta familiar ou divina não pode ser conceitualizada como lei, por ser uma lei não escrita, e, portanto, fora do campo do direito público, ela não tendo razão para descumprir. Lembrando que para Hegel o indivíduo só atinge a sua moralidade no Estado. Entende-se por moralidade aquilo que permite um indivíduo seja um sujeito. Em uma visão bem aristotélica, sujeito é aquele que se faz moralmente pelo conjunto de suas ações. Para Hegel agir moralmente é o agir do discurso, não um agir qualquer, agir segundo uma eticidade, isto é, ações pautadas na liberdade realizada nas crenças e instituições.
Ética para Hegel é o conjunto de relações, familiares, civis, jurídicas, políticas, religiosas e estatais, é a lei do bem, e só se realiza se estiver ligada a um bel maior, para a religião (Deus) para Hegel (Estado). A dualidade entre Estado e Religião é fruto de consequências anteriores ao pensamento de Hegel, para ele o indivíduo poderia ter condutas morais quando está ligado a estruturas como família (particular) e religião (particular), e muito menos condutas éticas se estiver fora do Estado (universal). Em suma, para Hegel “o homem não pode alcançar uma atitude ética e consciente de si autêntica fora do Estado” (Hegel, Fenomenologia do Espírito).
O homem realiza a sua identidade enquanto cidadão, quando sai da esfera familiar para ingressar na esfera pública, no Estado. E quando o indivíduo deixa a esfera pública no ato de sua morte, ele retorna para o ceio de sua família, e, portanto, volta para o particular, esta é para Hegel o grande motivo da luta de Antígona pelo interesse de dar um enterro digno e segundo a lei divina para Polinice, ele pode ter sido inimigo do estado, mas para ela ele continua sendo seu irmão, seu amigo, não importando o que foi para o Estado. Em um determinado momento Creonte afirma que Polinice é inimigo de Tebas, e Antígona logo rebate dizendo que um morto não é inimigo de ninguém.
Um argumento interessante é abordado acerca da visão hegeliana da relação entre irmãos, nesta relação Antígona afirma que essa é a única relação que ela estaria disposta a salvar em sua vida, a de ter um irmão e honrá-lo, a relação de esposa, poderia ter outro marido, mesmo que não fosse o filho de Creonte, abdicaria do papel de princesa, filhos a mesma coisa, com Hêmon, ou com outro marido, poderia ter outro (s) filho (s). Mas com pai e mãe já mortos, lhe é impossível ter outro irmão, por isso a importância da honra e do enfrentamento para salvar sua vida. Nesta perspectiva Hegel enxerga em Antígona um dever sagrado, o de enterrar seu irmão.
Segundo George Steiner o ato de Antígona é o mais sagrado a que uma mulher pode aceder, simplesmente porque há situações em que o Estado não está em condições de abandonar a sua autoridade perante o morto. Há circunstâncias – políticas, militares, simbólicas – em que as leis da polis tornam extensivos ao corpo do morto os imperativos de honra (funerais solenes, monumentos) ou de punição que, de um modo geral, apenas tocam aos vivos. O que tem como resultado uma ruptura máxima e última entre os mundos do homem e da mulher.
Ao questionar Creonte, Antígona se faz cidadã. Neste ponto Hegel no texto Linhas fundamentais da filosofia do direito, postula que Antígona de Sófocles é enunciada como a lei da mulher, subjetiva, sensitiva, tendo assim um apoderamento da lei e da política da mulher. Ao ver a luta de Antígona não dá para não tomar partido, se tomamos o olhar pacífico de Hegel sobre toda a carnificina da tragédia de Sófocles como verdadeiro, nada compreendemos de moral e ética nas relações humanas e políticas, esta é a crítica de Derrida ao próprio Hegel, ele observa que na abordagem de Hegel, “a carnificina da peça de Sófocles é exibida”, mas, repentinamente, o olhar de Hegel foca uma cena totalmente apaziguada, enquanto nós observamos um embate violente de pensamento e de ruptura de postura a todo instante no momento em que a performatividade de Antígona se traveste carregada de proteção e libertação.
O segundo autor analisado será Lacan, este também possui um diálogo com a tragédia de Sófocles, Antígona, sobretudo nos seus estudos de 1959-1960, no seminário, livro 7 do livro A ética da psicanálise, ele irá abordar nesse seminário basicamente o problema ético da tragédia. Ele ao contrário de Hegel, que o governador está apenas defendendo o Estado, para Lacan, a figura de Creonte representa, assim como os muitos modelos políticos do mundo de sua época, algo tirano, sem discernimento e equivocado ao agir por impulso sem respeitar as leis da família, dos deuses e da cidade.
Em Lacan, o Estado não aparece em suas discussões sobre Antígona. Seu foco está no parentesco, ne estética sobre o belo, na análise sobre o desejo, desejo este ponto central de toda a discussão, o desejo em toda as suas esferas, na ordem, na família e no erótico, e também o sacrifício do próprio desejo, somos seres para a morte, toda esta simbologia mais tarde será criticada por Butler, afirmando que em função do simbolismo de Lacan a discussão torna-se “rigorosamente dissociada da esfera do social, apesar de constituir o campo estrutural de inteligibilidade no qual o social nasce”. (Butler, 2014).
 
Em suma, a dimensão simbólica está separada da dimensão social em Lacan, aquilo que é universal na cultura é entendido como regras simbólicas ou linguísticas, que, a princípio, codificam e sustentam as relações de parentesco. Em Lacan, o domínio da lei universal, abarcando uma regra cultural eterna, é a “base para a noção lacaniana do simbólico e para as tentativas posteriores de separar o simbólico tanto da esfera do biológico quanto do social”. (Butler, 2014).
Sendo o desejo tema central da reflexão de Lacan, e desejo e morte estão estritamente ligados em sua filosofia, temos na tragédia de Sófocles um desejo que é transformado ou levado a uma pulsão, pulsão de morte, por ser uma tragédia que precisa nos ensinar muito sobre ética. Em Antígona vimos na primeira parte do trabalho, todos morrem, com exceção do velho profeta Tirésias e do guarda, a morte triunfal da personagem central e de todos em sua volta pelo erro de Creonte, filho e mãe, mostra bem esta pulsão, de que somos todos seres para a morte.
O mesmo desejo que impulsiona a morte é o desejo que faz com que Antígona enfrenta Creonte, em nome do desejo e a partir de sua decisão em nome da lei da família e dos deuses ele enfrenta a lei do Estado. Ao enfrentar, ao questionar e dar voz a muitos da cidade, ao ponto dos cidadãos nas ruas comentarem da coragem e clareza de suas decisões, Antígona já prefigura a sua morte antes mesmo de morrer, neste sentido, a morte vivida de forma antecipada, em todo diálogo vão, em toda discussão sem perspectiva de mudança, já é uma vida antecipada até a própria sepultura.
Antígona ao reforçar a lei da família, a lei dos deuses em relação ao lei da cidade começa a questionar e mostrar a distinção entre governo e o Estado, um governador causar a morte novamente a um cadáver para ela, para além do sentimento para com o irmão é algo sem fundamento, ela mostra que a exposição do corpo do irmão e a proibição dos ritos de passagem é uma segunda morte, afirma ela “não queiras matar quem já morreu. Que bravura há em exterminar um cadáver”.
Antígona para Lacan é uma personagem ímpar, marcada pelo desejo e desejo que a leva ao extremos, desejo que clarifica a sua própria presença no mundo, afirma ela: “não fui gerada para odiar, mas para amar”, sua trajetória de apoio a Édipo na saída da cidade já prefigura esta existência ímpar e autêntica, esse amor, para Lacan, de forma visível se dá pela proteção e amor pelo irmão, pelo parentesco, e ao mesmo tempo há uma forma invisível, um amor erótico e até mesmo incestuoso, repetindo o ato dos pais, desejo este que leva a uma pulsão de morte e o desejo da própria morte.
Para Lacan, Antígona rompe com todas as barreiras pelo desejo, amor pelo irmão, amor de proteção e de libertação, por este motivo, é vista como gloriosa, atos acompanhados de louvor popular, vista como senhora de sua própria lei, figura máxima do belo, aquela que não sede a lei imposta sem fundamento e contra a sede do seu desejo. Para Laca, a função de todo esse desejo deve permanecer, numa relação fundamental com a morte.
Por fim, entraremos nas reflexões de Butler sobre Antígona e seu debate constante com Hegel e Lacan, autores que abordamos mesmo que de forma sucinta seus pensamentos sobre a tragédia de Sófocles. Simplesmente o título do seu livro já nos chama a atenção sobre as questões que serão postas, O Clamor de Antígona: parentesco entre vida e a morte, o foco principal da obra é mostrar o empoderamento da mulher de sua época, atual, na voz e em toda a performatividade de Antígona, esse empoderamento traz em si o verdadeiro poder da mulher, quando ela se empodera, isto é, toma para si o poder, sua vida e suas ideias são libertadas por si só, sem a necessidade de consentimento ou liberação de outrem.
Na tragédia de Antígona percebemos esse empoderamento já no início do seu debate com Creonte, quando alguém ou principalmente uma mulher está sendo acusada ou recebendo alguma sanção por algo que fez e na sua fala ela diz: “sim, eu confesso!”, esta fala é de quem está se submetendo a autoridade que está agindo sobre ela, ao contrário, quando sob a mesma acusação, ela se empodera e diz: “não negarei o meu feito”, este ato corajoso, ato de proteção e libertação, ela não está se submetendo mesmo não negando o ato do fato acontecido. Do ponto de vista da performatividade, começamos a perceber que Antígona está se revestindo de atitudes, antes presentes só ou quase sempre no universo masculino, seja rebeldia, seja o enfrentamento da autoridade, por mais que percebemos que a inteligência sempre foi percebida nas mulheres, a estas não era dada a voz no discurso de determinadas causas, por exemplo, no discurso político ou até mesmo na defesa de si e dos seus.
Butler ao contrário de Hegel e Lacan, não está fazendo o caminho tradicional de mudança de pensamento, mostrando a personagem recorrendo as leis da família, dos deuses para questionar as leis do Estado, ela não está preocupada em mostrar a incoerência de Creonte com a lei divina, mas, sobretudo, mostrar a sua transgressão em relação a lei de parentesco, seja na vida e na morte, lei reservada a família, e é justamente essa argumentação que desestrutura toda questão de gênero durante a tragédia de Sófocles.
Butler define Antígona como uma figura feminina que desafia o Estado através de uma poderosa sequência de argumentos reflexivos e linguísticos, quer evidenciar esse lado político, deixado de lado nas leituras de Hegel e Lacan, ela não fala apenas em um ato de rebeldia ou loucura, ou de revolta ao Estado (Hegel) ou por desejo/pulsão de morte (Lacan), ela é uma figura política, alguém que desafia Creonte, descontrói seus argumentos, sabendo de todas as implicações e problemas que enfrentaria por tais atos. É uma mulher que está além das discussões tradicionais da passagem da pré-política a política, ela está lutando e dando voz libertadora a uma lei de parentesco, esta como a esfera das condições de possibilidade da política e de reformulação das leis da cidade/Estado.
Butler quer mostrar, sobretudo, a indagação sobre a legitimidade da justiça imposta pelo governante ou Estado, questionar as bases sobre as quais a moralidade e posta na sociedade e como esta cultura histórica influencia na construção e leis em que a figura feminina é cada vez mais marginalizada, silenciada e cercada de vários limites de representação e representatividade. Por isso, é tão importante a questão do empoderamento e da performatividade, no momento em que Antígona sai de sua condição de mulher silenciosa e fala diretamente a Creonte, ela se torna viril, masculina, ou se performativa como tal, ao mesmo tempo, ao dar ouvidos a ela, Creonte, se desmasculiniza, e mais adiante, após refletir sobre a sua incoerência volta atrás e tenta salvar a própria condenada, neste sentido, nenhum dos personagens se mantém nos papéis originais de gênero, a performatividade é protetora quando se fundamento no cuidado, na proteção e na garantia de cumprir os rituais familiares e divinos, mas, sobretudo, sua voz, seu gripo, é libertador, na medida em que desestabiliza todo o jogo de gênero e as leis mal fundamentadas, logo, o grande ato de Antígona não é de ação de enfrentamento e rebeldia cega, mas um ato de linguagem, um ato de raciocínio que desestabiliza o que está posto e que não tem fundamento.
É o afrontamento e a rebeldia que dá voz a ela, mas são seus argumentos, sua linguagem e reflexão que permite que a sua voz seja libertadora e transformadora, ao dialogar com Hegel e Lacan, Butler propõe a resolução questões fundamentais na elaboração das regras/leis, a obediência a elas, bem como as alterações que podem propor no campo simbólico, que, por sua vez, é constitutivo do campo social, precisa haver, segundo Butler uma implicação social de tudo aquilo que é proposto no campo simbólico. E que no ceio familiar, é importante reforçar que o parentesco se dá através da linguagem e discurso e não simplesmente no modelo tradição de pai, mãe, filhos e irmãos.
A grande pergunta que fazemos hoje é: quem são as “Antígonas” de hoje? Com que voz afronta as leis que as marginalizam? Ainda usam de performatividade para serem ouvidas? Em seus discursos e nos tons de suas vozes se transvestem de uma masculinidade para serem ouvidas? Esta voz de hoje depois de toda uma luta do feminismo e das exclusão das deturpações questões de gêneros, ela é ouvida? Pouco ouvida? Ainda incomoda? Ao longo da história e atualmente vemos muitas manifestações das novas “Antígonas”, analisando o tempo histórico e as ações ainda nos perguntamos se suas ações são constituídas de uma performatividade autêntica, feminina e libertadora ou ainda se reveste de todos os trejeitos masculinos para serem ouvidas em uma sociedade machista?
Talvez não tenhamos todas as respostas, talvez enxergamos em alguns exemplos uma performatividade protetora e libertadora estritamente feminina, mas em outras vezes vemos apenas uma “casca” feminina rechegada e travestida de uma masculinidade para ser ouvida. O que importa para nós e para a história, é reconhecer cada uma dessas mulheres fortes que enfrentam as autoridades estabelecidas, sejam elas, autoridades da casa, da sociedade ou da religião, para colocar suas ideias e rompendo com todos os padrões culturais e sociais pré-estabelecidos, isso, no ocidente, no oriente, precisamos de mais “Malalas” para lutar e enfrentar as forças talibãs para dar voz para as meninas que querem o direito de estudar no oriente médio, queremos mais “Dilmas” a fim de lutar contra todo tipo de golpe, opressão e retrocesso político no Brasil e América Latina, precisamos de mais “Hannah´s Arendt´s” para denunciar toda a banalidade do mal e o autoritarismo ainda presente, precisamos de mulheres capazes de ser elas mesmos, imponderadas de autoridade de si, de sua consciência, do seu corpo, da sua linguagem a fim de discursar a favor de uma racionalidade para que possamos superar toda e qualquer questão de gênero que vem sendo posta pelos políticos retrógados, precisamos de homens e mulheres fortes capazes de quebrar com toda a falsa ideação de configuração de família e parentesco, para que as crianças de pais e mães homossexuais possam ser livremente reconhecidos como família, precisamos de mais “Antígonas” para questionar e dar a todos o entendimento de que ninguém, nem instituição alguma, familiar, religiosa ou o Estado tem poder sobre a vida dos indivíduos.
A tragédia fica para trás, mas a história não, os personagens daquele palco, naquele espaço e tempo dão lugar a novos nomes e novas realidades, novas reflexões precisam ser postas, novos confrontos precisam ser traçados, novas autoridades devem ser questionadas, para que nunca nos darmos como mortos ou vencidos. No início da tragédia Antígona já se declara morta, e, mesmo assim, veja tudo o que fez, tudo o que questiona, veja a ressonância que teve a sua voz, o poder que teve suas palavras, sua linguagem e seu discurso. Antígona é, sobretudo, uma personalidade histórica, pois dá força a todas as mulheres que se sentem mortas em suas casas, em seus empregos, em seus relacionamentos abusivos, a todas as mulheres que ainda precisam se esconder atrás de uma figura masculina, seja ela mesma transvestida ou de outrem que pensa ter autoridade sobre elas. Antígona é uma mulher histórica para fazer com que todas as minorias que se sentem marginalizadas e desprotegidas, possam ter em que buscar força e veneração. Depois de Antígona nenhuma mulher pode se contentar em ser enterrada viva ou não ter o direito de enterrar e lutar pelos seus.
Depois Antígona não se pode se contentar com o a expressão recorrente de que tanto faz viver ou morrer. É preciso se apoiar em sua figura forte, protetora e libertadora para que tenhamos sempre forças para lutar, pode-se até morrer, mas esta morte não será em vão, a autoridade pode até permanecer injusta, mas sempre terá espaço para a denúncia da injustiça, para lutar contra a falsa autoridade, e os falsos paradigmas, pode-se tentar calar a voz, mas será precisa sempre o enfrentamento para que não seja em vão todas as lutas de tantas mulheres que fizeram a diferença na humanidade nas mais diversas áreas do saber e do viver.
 
 
 
 
BIBLIOGRAFIA:
 
BUTLER, Judith. O Clamor de Antígona: parentesco entre vida e a morte. Tradução André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
 
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Hetnz Efken. Petrópolis, Vozes, 1992.
 
LACAN, J. (1959-1960/1988). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.




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