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AINDA SOB A MÁSCARA…




AINDA SOB A MÁSCARA…

Análise do conto “A causa secreta”, de Machado de Assis, publicado, pela primeira vez, na reunião de 16 contos da obra Várias histórias, em 1896. 

 

Cláudia Sabbag Ozawa Galindo

 

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

 
Como em tantas obras do autor, já desvendadas por Alfredo Bosi em A máscara e a fenda (1982), aqui também figura o véu da máscara, de Machado de Assis. Vamos encontrá-la mal ajustada e cambaleante na personagem de Fortunato. Fortunato Gomes da Silveira, como acode normalmente aos personagens de Machado, especialmente aos que tendem à maledicência, à arrogancia ou à crueldade, era um capitalista, solteiro, quarenta anos, morador de Catumbi. Este era o homem público. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria, pregados na cara magra e pálida onde havia uma tira de barba curta, ruiva e rara que ia de uma têmpora a outra, por baixo do queixo. Estas são as portas da alma. E era nela que o médico Garcia ambicionava chegar.
Como possuísse “(…)em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo” (p. 68) viu em Fortunato o objeto ideal do estudo minucioso. Este, a princípio, fez-lhe impressão a figura; pareceu-lhe, mais tarde, repulsiva ao mesmo tempo que dedicada; adiante, singular, sui generis; até à própria redução de Calígula. Este caminho percorreu Garcia, em que acuriosidade despertou a natureza sagaz, ávida de conhecimento e análise.
Desde que se viram à porta da Santa Casa, depois ao Teatro e, finalmente, quando se conheceram por conta de um acidente ocorrido com um vizinho do médico, com a proximidade advinda de um encontro em uma gôndola e de aí em diante, até à sociedade que instauraram em uma Casa de Saúde, Garcia procurava desvendar o segredo de Fortunato, as camadas morais de que se compunha, sua alma, enfim.
Fortunato foi se descortinando diante de Garcia, ou Garcia foi procurá-lo sob as cortinas aparentes da alma. Mas o ator social, ao desempenhar seu papel no cenário da vida, confundia as impressões do analista: “(…) a sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade” (p. 67), afinal, conviviam lado a lado a dedicação desprendida aparente e a indiferença fria pelo sofrimento alheio: “(…) Fortunato serviu de criado” aos cuidados do ferido, para depois Garcia o observar “sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido” (p. 67). Assim, de início, Garcia limitou-se “a aceitar o coração humano como um poço de mistérios”.
Foi somente quando Fortunato tratou com desdém e impaciência os agradecimentos do homem ferido por capoeiras a quem ele havia prestado ajuda e cuidados, é que Garcia se assombrou. E não menos surpreso foi que ele comparou “as mesmas chapas de estanho, duras e frias” que eram os olhos de Fortunato com os obséquios com que ele o tratou em sua casa. Conviviam a indiferença humana e o cuidado social no mesmo homem.
E talvez tenha sido este cuidado que tenha feito Fortunato ouvir “não com indiferença” a lembrança do auxílio ao homem ferido pelos capoeiras, contado por Garcia à Maria Luísa. Esta, por sua vez, esposa de Fortunato, portanto ainda mais próxima de sua alma, ouviu a história de compaixão e solidariedade do marido com espanto e “insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração (p. 69).
Este coração cuidava toda a gente ter descoberto e louvado, quando Fortunato e Garcia abriram a Casa de Saúde.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da Rua de D. Manuel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos famulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia (p. 70).
 
Já, então, Garcia se convencia da natureza generosa de Fortunato, quando passou a atentar-se à miúde à pessoa de Maria Luísa, esposa do sócio. Um abismo separava o casal, uma incompatibilidade moral distanciava os “olhos meigos e submissos” dela das “chapas de estanho, duras e frias” que eram os olhos dele. Bem sabem que os olhos são o espelho da alma. E a dele, aos poucos, consumia a dela, tragava-a. E ela sucumbiu. As experiências que o marido fazia, durante seus estudos de anatomia e fisiologia (“ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães”) (p. 71), certamente desencadearam a tísica na mulher, “compleição nervosa”(p. 71) que era.
Fortunato estudava, acompanhava as operações e curava os cáusticoscomo nenhum outro. Era a dor alheia que o acompanhava ou era ele que a perseguia. A primeira vez que Garcia o viu ele estava à porta da Santa Casa, local fundamentalmente de enfermos, depois na platéia de um dramalhão “cosido a facadas”, andando nas ruas distribuindo bengaladas aos cães, no socorro ao homem vítima de capoeiras e agora à frente da Casa de Saúde. Mais tarde faria experiência com gatos e cães, em seus estudos de anatomia e fisiologia.
Neste sentido, Fortunato pode ser uma menção a “afortunado”, detentor da fortuna. A fortuna, segundo o dicionário, compreende a casualidade e o destino, o bom êxito e o revés da sorte. Assim, reúne, simultaneamente, em gérmen e em potencial, a felicidade e a adversidade, a casualidade e o destino. Nas coxias, por trás das cortinas fechadas da alma de Fortunato, sob a máscara, encontramos na natureza do homem a felicidade na adversidade, o destino na casualidade.
Entretanto, Garcia somente atingiu o segredo de Fortunato tempos depois, em visita ao casal. Encontrou o amigo no gabinete, a esposa horrorizada.
“No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até à chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorrizado. (…)E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma cousa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato (…)” (p. 72).
 
Garcia, natureza curiosa da análise, “conseguia dominar a repugnancia do espetáculo para fixar a cara do homem” (p. 72) e concluir: “Castiga sem raiva (…) pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia pode lhe dar: é o segredo deste homem” (p. 73).
Só, então, quando já Maria Luísa tossia muito, “o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem”(p. 73). Já Garcia amava Maria Luísa e “o amor trocou a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar” (p. 74). No entanto, a doença tomou conta da mulher e o esposo que “recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher” (p. 74), “nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça”(p. 74) não pôde mais ajustar a máscara e a “índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura(…)” (p. 74) e saciou-se, ainda, da dor moral e apaixonada do médico, para além de qualquer ciúme ou vaidade: “Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa” (p. 75).
É neste sentido que Antônio Candido, em seu estudo Esquema de Machado de Assis desvenda a atitude de “condutor de marionetes” em que se transforma Fortunato:
“transformou virtualmente a mulher e o amigo num par amoroso inibido pelo escrúpulo, e com isto sofrendo constantemente; e que ambos se tornam o instrumento supremo do seu prazer monstruoso, da sua atitude de manipulação de que o rato é o símbolo (…) para indicar que o homem, transformado em instrumento do homem, cai praticamente no nível do animal violentado”(1970, p. 37)
 
Talvez Garcia não tivesse alcançado de todo a alma de Fortunato, a causa secreta que o alimentava de vida, na morte da vida. Fortunato era o ajuste mal acabado da máscara cambaleante. Note-se que, quando observado de perto, ou quando dava conta de si mesmo, sozinho, parecia saído de uma espécie de “transe”, de um lugar que ele pisava na solidão, ao voltar-se para dentro de si mesmo, ao mergulhar inteiramente nos chamados da sua natureza. No caso do rato, Garcia se deu conta de que Fortunato se distanciara do mundo ao redor:“Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido (…) Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida” (p. 72). Quando volta a si é que busca vestir a máscara novamente: “Fortunato encareceu a importancia do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo”. O mesmo ocorreu quando a mulher estava morrendo: “Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.” (p. 74).
Assim é que o homem interior convive com o exterior, o individual com o social. É através da máscara que o interesse pelo sofrimento se reveste, publicamente, em dedicação aos enfermos; que a fruição da dor alheia toma feição de cuidados, que a essência busca nova roupagem na aparência, mas que a natureza imperiosa à força e mal acomodada resiste ao ajuste perfeito da máscara e o homem transita cambaleante entre a alma e o mundo exterior. As vezes sobressaltado, às vezes voltando a si.
É por este viés que Antônio Candido afirma que, mesmo
“(…) os mais terríveis de seus personagens, são homens de corte burguês impecável, perfeitamente entrosados nos mores da sua classe”. Assim é que “Sob este aspecto, é interessante comparar a anormalidade essencial de Fortunato da ‘Causa Secreta’ com sua perfeita normalidade social de proprietário abastado e sóbrio, que vive de rendas e do respeito coletivo”. (1970, p.37)
 
E mesmo terríveis, sob as máscaras, encontram “Garcias” a lhes desvendar a alma, as camadas morais, para além da repulsa; e leitores para os tornarem públicos, para além da crueldade explícita. Os primeiros vestem a máscara social, nós a máscara do espectador.
 
 
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
ASSIS, Machado de (1997). “A Causa Secreta. In: Várias Histórias. São Paulo: Globo.
CANDIDO, Antonio (1970). “Esquema de Machado de Assis. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades.
BOSI, Alfredo (1982). “A máscara e a fenda”. In: ___________(org.).Machado de Assis. São Paulo: Ática.




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