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A sensível percepção de mundo em alguns poemas de Helena Kolody, de 1941 a 1951





Rosana Cássia Kamita

 
Helena Kolody nasceu em 1912 no Paraná. Primogênita de imigrantes ucranianos, ela mesma assim nos conta em seus versos:
Vim da Ucrânia valorosa,
que foi Russ e foi Rutênia.
Vim de meu berço selvagem,
lar singelo à beira d’água,
no sertão paranaense.
Feliz menina descalça,
vim das cantigas de roda,
dos jogos de amarelinha,
do tempo do “era uma vez…”
Exerceu apaixonadamente a profissão do magistério, a qual foi muito importante para sua formação e para a qual a Escola Nova de certa forma colaborou para seu pioneirismo e arrojo. A Escola Nova foi um movimento eclético e de origens muito complexas, mas é inegável que recebeu certas idéias pedagógicas, como as de Rousseau, que influenciaram uma época e cujos ecos ainda se fazem ouvir. São numerosos os pedagogos que, influenciados pela doutrina do Emílio , contribuíram na renovação dos conceitos e das normas educacionais. Um de seus princípios era o de que se houvesse um interesse vital, criar-se-iam, também, as técnicas próprias para satisfazê-lo: “Emílio aprenderá a ler quando receber cartas e sentir a necessidade de compreendê-las; todo o papel do mestre será ajudá-lo a encontrar os meios de satisfazer essa necessidade.” Esse naturalismo pedagógico leva à exaltação da natureza humana, de suas virtudes, sua bondade natural, seu poder; idéias importantíssimas em qualquer época, mas principalmente naquela, tão marcada por rupturas. É autora de numerosos livros, a maioria editada com seus próprios recursos. Antes dos seus livros, no entanto, seus poemas eram publicados em jornais e revistas. Seu primeiro poema intitulava-se “A Lágrima”. Ela contava então com 16 anos. Seu primeiro livro publicado intitulava-se “Paisagem Interior”, de 1941, e, após esse, muitos outros foram escritos.
A poetisa mostra-se sempre muito sensível em perceber o belo no que aos nossos olhos não passaria de singelo. Lendo seu poema “Infância”, o leitor é levado pela sinestesia dos versos e sente-se, por que não dizer, levado a evocações de sua própria infância:
INFâNCIA (1951)
Pão feito em casa,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.
No campo, recendente a camomila.
Alegria de correr até cair.
Do tempo, só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos…
Seu delicado olhar de poetisa percorre paisagens da natureza guardadas em sua memória, parte de seu cotidiano e que a inspirou em muitos de seus versos. Uma dessas imagens naturais refere-se ao Rio Negro, que aparece em símbolos e imagens em seus versos:
RIO DE PLANÍCIE (1941)
Minha vida é um largo rio de águas mansas
 
FIO D’ÁGUA (1945)
Não quero ser o grande rio caudaloso
Quero ser o cristalino fio d’água
No início de sua caminhada como poetisa, Helena Kolody deixa-se levar espontaneamente, seus versos refletem seu estado de alma, com tons oníricos e outros telúricos, repletos de vivas tonalidades emocionais. São justamente esses os versos tratados aqui. Sem o apego formal, passam a impressão de um relato de vida, feito de uma maneira extremamente doce, de olhos que perpassam paisagens, situações, sentimentos perante a vida. Em seu relato, ela diz que sempre gostou do novo, do que representava um desafio, que a impulsionava na juventude. Helena Kolody enfatiza a juventude, conta sobre como nessa época os jovens paranaenses se reuniam e liam sobre tudo em jornais e revistas, discutiam sobre o conteúdo dos mesmos e faziam críticas aos respectivos textos. Ressaltou também a importância de se viver com pessoas de sua própria idade. Seus versos encantam quem se deixa tomar pela emoção e coloca de lado, pelo menos por alguns instantes, o ceticismo:
SONHAR (1941)
Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Num vôo poderoso e audaz de fantasia.
ELOGIO DO POETA (1941)
Quando os homens viram os olhos do poeta,
Acharam em sua luz a luz do próprio olhar
E no seu sonho o próprio sonho refletido.
No ritmo de seu verso, então, reconheceram
A canção que cantariam, se soubessem cantar.
Música submersa, de 1945, traz poemas referentes à desumanidade da II Grande Guerra. Ocorre novamente a identificação da poetisa com a dor alheia, captando a ela e a sua mesma numa simbiose. E como ela mesma afirma, quando se é jovem sente-se com mais intensidade as emoções:
AMPULHETA DA HORA PRESENTE
A hora terrível passa,
Esmagando o coração da humanidade.
Helena Kolody relata um acontecimento que revela o poder da palavra e a responsabilidade gerada por ela. É a história de uma jovem depressiva que tentaria o suicídio. Antes do gesto trágico, abriu o livro que a poetisa lhe dera de presente. Leu um de seus poemas, “Prece”, e desistiu de seu intento. Helena Kolody escreveu vários poemas depressivos, mas por sorte não foi um desses o escolhido. Ela diz que depois disso seus poemas se tornaram mais abertos, mais otimistas. O poema “Prece” recebeu duas versões musicais e um “imprimatur” da igreja, e é lido como se fosse uma oração:
PRECE (1941)
Concede-me, Senhor, a graça de ser boa,
De ser o coração singelo que perdoa,
A solícita mão que espalha, sem medidas,
Estrelas pela noite escura de outras vidas
E tira d’alma alheia o espinho que magoa.
Para ela, o amor ficou sendo só um sentimento, um sonho, e Helena Kolody soube muito bem transformar esses sentimentos em palavras melodiosas, o que levou alguns poemas seus a serem musicados. São versos carregados de um lirismo puro, que embalam reminiscências de amores de outrora (até mesmo a própria palavra tornou-se antiga) quando não era vergonhosa a expressão verdadeira dos sentimentos:
CÂNTICO ( 1941)
A luz do teu olhar é a estrela solitária
Da noite deste amor, que é feito de silêncio.
VITÓRIA ÍNTIMA (1941)
Como a penumbra da noite,
A meditação desceu em seu olhar
E acendeu dentro de mim a lâmpada serena.
Em 1941 publicou seus primeiros haikais, sendo criticada com os argumentos de que aquilo não era soneto, não tinha rima, não era poesia. Mas gostava de desafios, por isso fazia haikais mesmo sendo criticada. No entanto, a crítica para Guilherme de Almeida já não era tão severa… talvez por ele ter colaborado para o abrasileiramento do haikai, como por exemplo atribuir um título ao terceto, definição de estrutura métrica e utilização de rimas, ou, por que não dizer? Ter composto haikais “parnasianos” .
Não participou do Movimento Modernista por ser retraída, mas buscava sempre manter-se informada e tinha consciência da modernidade de seus versos. Nessa época o Movimento Modernista buscava uma superação dos pressupostos que ancoraram a Semana de Arte Moderna. Alguns poetas já tinham trilhado um caminho diferente dos versos parnasianos, restando, pois, amadurecer as idéias já plantadas.
Em seu livro Música Submersa (1945), figura o haikai “Pereira em flor”, o qual foi elogiado por Carlos Drummond de Andrade, que diz ter ficado feliz com poemas como esse, “em que à expressão mais simples e discreta se alia uma fina intuição dos ‘imponderável’ poéticos”. Conheça-se o poema:
PEREIRA EM FLOR (1945)
De grinalda branca,
Toda vestida de luar,
A pereira sonha.
A respeito desse haikai, a poetisa relata como surgiu-lhe a inspiração para escrevê-lo:
“Eu morava na Rua Carlos de Carvalho. Uma noite, ao sair da casa de uma amiga, dei com aquela pereira completamente florescida, banhada pela luz da lua cheia. A beleza do quadro foi um impacto na minha sensibilidade. Fiz o poema bem mais tarde. Associei a pereira com uma noiva: a noiva toda vestida de branco, sonhando, com a pereira ao luar.”
Só voltou ao haikai quando Paulo Leminski descobriu-a como primeira pessoa a fazer este tipo de poesia de origem japonesa no Paraná. Tornou-se “haijin” (pessoa que cultua o haikai), com o nome artístico de Reika, concedido em 1993 pela sociedade japonesa, e que significa “perfume da poesia”:
ARCO-ÍRIS (1941)
Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino
que há pouco chorou.
PRISÃO (1941)
Puseste a gaiola
Suspensa de um ramo em flor,
Num dia de sol.
A poetisa escreveu:
“Antigamente eu me derramava em palavras. Um dia, o Dr. Andrade Muricy, um paranaense que era crítico de arte no Rio de Janeiro, aconselhou-me: ‘você vai muito melhor no poema curto. você quer encompridar e, às vezes, você dilui o poema ou se repete. você tem talento para a síntese’. Daí em diante, comecei a cortar os excedentes, deixando só o sumo, o essencial.”
Helena Kolody tem a capacidade de transformar em palavras as imagens captadas em sua existência, e mais, é capaz de reduzir essas mesmas imagens em poucas palavras, sem que elas percam sua magia. Seus haikais são relâmpagos de palavras, rápidos e luminosos. A poetisa consegue unir subjetividade e objetividade, numa viagem de versos repletos de significados.
Ainda em relação à sua face japonesa, há que se destacar sua incursão no tanka (poema japonés, com a mesma estrutura do haikai, acrescido de mais dois versos heptassílabos). Não pertencem, no entanto, à época aqui estudada. Apenas para que se conheça:
AQUARELA (1993)
Sol de primavera.
nêu azul, jardim em flor.
Riso de crianças.
Na pauta de fios elétricos,
uma escala de andorinhas.
Foi eleita para a Academia Paranaense de Letras aos oitenta anos de idade e a segunda mulher admitida no fechado círculo masculino. Ainda vive em Curitiba e alega que o sonho continua sendo sua matéria. Por essa alegação percebe-se a grandeza de suas intenções, o quanto acredita que o mundo moderno não possa sufocar os sentimentos mais nobres do ser humano, que apesar das vicissitudes não reduziu-se ainda a um ser robotizado e, espera-se, ainda tenha capacidade para perscrutar os seres e retirar uma essência do belo, na sua acepção mais ampla.
Muitas palavras tão carregadas de sentido na língua portuguesa são massacradas, de tal forma que perdem o sentido, chegando a tornar-se piegas falar em “amor”, por exemplo, graças a inábeis escritores, que pela sua falta de talento afugentam os leitores, os quais acabam se tornando traumatizados por este mau uso de palavras muitas vezes tão expressivas. Mas Helena Kolody faz o resgate dessas palavras e pelas suas mãos elas readquirem todo o seu verdadeiro significado.
Ela afirma que “São as palavras que decidem a sorte dos homens e o destino das nações.” Portanto, que sua palavra:
CONSOLE
Se a ambição da riqueza te extenua,
Olha o jogo das crianças na calçada.
Somente o jogo é seu, nem tem mais nada…
De riqueza não sei maior que a sua.
(Tesouro, 1951)
ENCAMINHE
Sonhar é Ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.
(Terceto final de “Sonhar” , 1941)
E seja uma luz no mundo, um instrumento de paz e fraternidade.
Ensina-me, Senhor, a palavra exata,
A grande palavra reveladora e fecunda
Que devo clamar, clamar e clamar
Para acordar, nos que adormeceram
A consciência do seu destino maior”
(Apelo, 1941)
Sem dúvida, acredita Helena Kolody no poder da palavra, e o poeta pode ser considerado o “escolhido” para fazer dela um instrumento de transformação do mundo. A responsabilidade é enorme, mas alguns artistas da palavra conseguem levá-la a contento e vão gravando pelo tempo sua idéias que geram novas idéias e assim sucessivamente num trabalho longo, árduo e necessário. Em “Canto místico” (1941), a poetisa confessa a insuficiência da palavra humana e a impotência pessoal diante do poeta máximo, o Universo, e diante de seu poeta, Deus. Seguem-se as duas primeiras estrofes desse poema:
Aqui estou, Senhor, no meio desta nave
Para cantar em teu louvor.
Minha voz é prisioneira da garganta:
Conhece a gama dos sons e não pode cantar.
Há vibrações sonoras em meus nervos.
Mas a voz ausentou-se de meu ser.
Helena Kolody é sem dúvida alguma um expoente na literatura paranaense, literatura essa que se encaminhou inicialmente de forma tímida. Citemos como exemplo os românticos, que não tiveram ali um público que os pudesse avaliar. No entanto, no Simbolismo escritores e público encontraram-s,e e a partir de então vivencia-se a literatura, que amadurece no Estado. Contudo, não podemos limitar sua obra apenas à esfera onde surgiu. Sua obra é merecedora de destaque em qualquer espaço, seja pelo seu pioneirismo e arrojo já citados, seja pela qualidade de seus versos, seja pelo impulso que promoveu nas letras paranaenses e muitos outros motivos que aqui poderiam ser listados. Portanto, que seus versos sejam lidos, apreendidos, analisados e principalmente, sentidos.
 
Referências Bibliográficas
BELLO, Ruy de Ayres. Pequena História da Educação. São Paulo: Editora do Brasil, 1978.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
Conversas por telefone com D. Helena Kolody.
CRUZ, Antonio Donizeti da. “Tankas e kaicais: uma leitura de Reika, de Helena Kolody”.
FRANCHETTI, Paulo. “Guilherme de Almeida e a história do haikai no Brasil”.
http://www.angelfire.com
http://www.morretes.pr.gov.br/artistas.htm
KOLODY, Helena. Sinfonia da vida. Organização: Tereza Hatue de Rezende. Curitiba: Letraviva, 1997.
—. Viagem no espelho. Curitiba: Criar, 1988.
LOBO, Luiza. O haikai e a crise da metafísica. Rio de Janeiro, Numen, 1992.
NASCIMENTO, Noel. “A propósito de Helena Kolody”.
REBOUL, Olivier. Filosofia da Educação. Tradução e notas de Luiz Penna e J. B. Penna. São Paulo: Nacional, 1978.




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