LITCULT

Revista LitCult
ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





A RAPOSA E O PERCEPTIVO: A MULHER NEGRA CHEROKEE EM THE SUBTERRANEANS, DE JACK KEROUAC – Sávio Augusto Lopes da Silva Junior




 

Sávio Augusto Lopes da Silva Junior

Universidade de São Paulo (USP)

 

 
RESUMO: Este trabalho pretende analisar o romance norte-americano The Subterraneans, publicado em 1958 por Jack Kerouac. Este estudo focaliza a visão que o narrador Leo Percepeid apresenta de sua amante Mardou Fox, personagem caracterizada por suas raízes africanas e indígena Cherokee que, além disso, está envolvida em uma cultura marginalizada ligada ao jazz bebop.
 
PALAVRAS-CHAVE: romance norte-americano; cultura afro-americana; jazz bebop; Jack Kerouac
 
ABSTRACT: This paper aims to analyze the North-American novel The Subterraneans, published in 1958 by Jack Kerouac. This study focuses on the vision that the narrator Leo Percepeid presents of his lover Mardou Fox, a character that is described as having African and Cherokee roots and that is also involved in a marginalized culture linked to bebop jazz.
 
KEYWORDS: North-American Novel; Afro-American culture; bebop jazz; Jack Kerouac.
 
MINICURRÍCULO: É doutorando no departamento de Letras da Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). É bacharel em Comunicação Social – Jornalismo – pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor do romance Deixe a Inglaterra tremer, publicado em 2013 pela editora Novo Século.
 
 
A MULHER NEGRA CHEROKEE EM THE SUBTERRANEANS, DE JACK KEROUAC
 
 
Sávio Augusto Lopes da Silva Junior
Universidade de São Paulo (USP)
 
Ao atribuir nomes fictícios às suas personagens, percebe-se que o escritor norte-americano Jack Kerouac (1922-1969) utiliza um jogo de palavras para caracterizar personalidades inspiradas em pessoas reais. Esse é o caso de Sal Paradise, que percorre as estradas em busca do paraíso, e Old Bull Lee, nome dado a William Burroughs, um dos integrantes da Geração Beat de mais idade – ambas personagens de On The Road. Em The Subterraneans, esse padrão também pode ser percebido. Leo Percepeid, o narrador, é marcado por ser perceptivo e capaz de identificar aquilo que é digno de atenção para o seu relato de memórias em meio ao cenário do bebop jazz, narrativa esta que constitui o próprio romance. Já Mardou Fox, a raposa, remete ao termo foxy, uma mulher descrita como atraente, que é alvo da atenção de Percepeid e, muitas vezes, vista por ele como uma caça.
O romance The Subterraneans, publicado pela primeira vez em 1958, trata do envolvimento do narrador Leo Percepeid – codinome de Jack Kerouac – e Mardou Fox, integrante genuína da cultura do bebop jazz, marginalizada e de origens afro-americana. Em meio ao cenário boêmio de North Beach em São Francisco, Percepeid permeia uma cultura que lhe é estranha, visto que ele é integrante da classe média branca norte-americana. As diferenças sociais e culturais do casal criam uma constante tensão, relacionada à marginalização vivida por Mardou Fox e a cultura a qual ela faz parte.
A relação entre Mardou Fox e Leo Percepeid é ambígua e marcada pela oscilação entre o amor e o ódio. Em sua primeira impressão de Mardou, Percepeid se sente atraído por sua aparência exótica – em uma forma de fetiche primitivista, conforme aponta Jon Panish (2011). Mardou Fox é uma personagem de origens étnicas africanas e cherokee e integrante genuína da cultura bebop, estilo de jazz muito presente na obra analisada e famoso por sua agilidade que destoa do jazz comercial. A corrente bebop, por muito tempo, foi apreciada por um público muito específico e às margens da cultura oficial norte-americana, criando assim uma forma de cultura de resistência. Ao conhecer Mardou e seu estilo de vida ligado ao bebop, Leo decide conquistar a moça e submergir no universo subterrâneo do qual ela faz parte. Kerouac narra: “But eyeing her little charms I only had the foremost one idea that I had to immerse my lonely being (‘A big sad lonely man,’ is what she said to me one night later, seeing me suddenly in the chair.) in the warm bath and salvation of her thighs (…)” (KEROUAC, 2001, p. 7).
De início, a atração física é o que define o desejo de Leo por Mardou. Percebe-se o fetiche por sua pele negra e pela associação que o protagonista faz de sua ascendência com o imaginário selvagem que a sociedade conservadora norte-americana tem da cultura afro-americana. Contudo, nota-se que, ao aprofundar os níveis de sua relação com Mardou, Percepeid tem uma percepção mais ampla de sua cultura, deixando, em diversos momentos, o fetichismo de lado e envolvendo-a em uma relação de trocas interculturais:
 
Her little brown hand is curled in mine, her fingernails are paler than her skin, on her toes too and with her shoes off she has one foot curled in between my thighs for warmth and we talk, we begin our romance on the deeper level of love and histories of respect and shame (KEROUAC, 2001, p. 19).
 
É nestes momentos de intimidade que se percebe um crescimento do respeito que Percepeid tem por Mardou – mesmo que este seja oscilante. O estranhamento que Leo sente em relação às suas origens e cultura, contudo, voltam a surgir em diversos momentos da narrativa, demonstrando que a discriminação racial está mais enraizada em sua cultura conservadora do que Percepeid imagina. Leo percebe que Mardou jamais seria colonizada pela vida burguesa de classe média; sua cultura e suas origens étnicas são fatores que impedem a adequação da jovem negra a esse estilo de vida. Esse é o principal motivo de Percepeid ver o seu próprio conforto – tanto no cotidiano, quanto social – ameaçado.
A forma como o amor e ódio se misturam na descrição que Leo Percepeid faz de seus sentimentos por Mardou remete aos conceitos de “sagrado” e “maldito”. Segundo o linguista francês Émile Benveniste (1995), no latim, ambos os termos são designados pela palavra sacer. Dessa forma, há uma ambivalência nesses termos, existente, segundo Benveniste, devido às apropriações culturais feitas do termo no decorrer de sua existência:
 
(…) na Idade Média, um rei e um leproso eram ambos, ao pé́ da letra, “intocáveis”, mas isso não quer dizer que sacer encerre dois sentidos contraditórios; foram as condições da cultura que determinaram, em face do objeto “sagrado”, duas atitudes opostas (BENVENISTE, 1976, p. 87).
 
A característica de “intocável” do rei leproso sugere dois sentidos: o de “sagrado”, devido à sua posição privilegiada e relacionada à divindade, por isso, o rei não deveria ser tocado; e a de “maldito”, devido à sua doença contagiosa e nesse caso, também, não deveria ser tocado. Contudo, o exemplo dado não pressupõe dois significados ao termo; foi a cultura em que ele foi usado que criou duas atitudes opostas diante do ser sagrado. Da mesma forma, Mardou também é sagrada e intocável para Leo Percepeid. Por um lado, ela é divina, por ser uma representante da cultura bebop, a qual Leo tanto admira e, por isso, encontra-se em um pedestal e não deve ser tocada. Por outro lado, é uma figura marginalizada, vista pelo senso comum como uma ameaça e por Leo Percepeid como um empecilho para uma vida confortável e, por isso, também não deve ser tocada. Nesses casos, o valor dado ao sagrado também é culturalmente determinado e ambivalente.
Ao colocar em dúvida os valores de Mardou, Percepeid menciona o seu bem-estar (well-being), termo utilizado com frequência no decorrer de The Subterraneans e que remete à qualidade de vida proporcionada pelo American way of life da década de 1950. A proximidade com Mardou é um fator que impede o deleite deste bem-estar e, portanto, há necessidade de uma escolha entre os dois universos: a subcultura marginalizada e o prazer da vida estável. Sobre o seu bem-estar e a presença de Mardou, Percepeid relata: “(…) as tho never I was straight with her, but crooked – never away from my chimerical work room and comfort home, in the alien grey of the world city, in a state of WELL-BEING” (KEROUAC, 2001, p. 34). Essa escolha entre o bem-estar e a marginalização implica em constantes avaliações de Mardou, sua cultura e seu caráter. Por esse motivo, ocorrem frequentes oscilações na perspectiva que Leo Percepeid possui da vida ao lado de Fox.
Em um momento de excitação, Percepeid compartilha com Mardou a admiração e o seu afeto por suas raízes africanas e destaca o essencialismo, a pureza existente em sua cultura, mencionando que ela seria a mulher essencial e original:
 
“Honey what I see in your eyes is a lifetime of affection not only from the Indian in you but because as part Negro somehow you are the first, the essential woman, and therefore the most, most originally most fully affectionate and maternal” – there now is the chagrin too, some lost American addition and mood with it – “Eden’s in Africa,” I added one time (…) (KEROUAC, 2001, p. 79-80).
 
O trecho citado mostra que Percepeid percebe claras distinções étnicas e culturais entre ele e Mardou. Por vezes, ele a rebaixa e a enxerga como uma relação que o comprometeria de levar uma vida normal nos padrões do American way of life; em outros momentos, ele exalta essa diferença e a coloca acima de sua própria cultura, como uma forma de essencialismo. Esta menção à pureza da cultura africana e sua comparação ao Éden remete à visão essencialista que escritores afro-americanos contemporâneos à Jack Kerouac, como Amiri Baraka (1934-2014), têm de suas próprias raízes; e que está relacionada à ideia de que o ouvinte branco do bebop, por exemplo, é incapaz de realmente compreender tal expressão artística. Para as personagens de Amiri Baraka (1995) – como Clay, na peça Dutchman – os músicos bebop são reverenciados por muitos brancos de classe média. Contudo, não são compreendidos por estes, que só possuem uma espécie de fetiche primitivista por  aquilo que é estranho a eles. Há, segundo essa opinião, a ideia de que o bebop é próprio da comunidade afro-americana e impossível de ser assimilado por alguém que seja externo à ela. O que essa forma de essencialismo não prevê é o papel de desmistificador do American way of life que um relato como o de Jack Kerouac pode assumir, ao levar para o centro de sua narrativa a cultura do bebop e o racismo.
É perceptível que as dúvidas em relação ao caráter de Mardou são mais intensas na segunda parte da narrativa, quando Leo demonstra paranoia e ódio intensos pela mulher. Novamente, sua descendência africana e cherokee são determinantes para o sentimento que Leo tem por Mardou, contudo, este é revertido da admiração e fetiche por ódio. Logo em seguida ao seu instante de admiração, em um momento de ciúmes, Leo Percepeid, ao caminhar ao lado de Mardou nas ruas de São Francisco, revela sentimentos de ódio existentes em sua consciência e, neles, ressalta um preconceito racial enraizado na cultura a qual ele abomina, mas não consegue deixar de fazer parte:
(…) but now in my hurt hate turning the other way and so walking down Price with her every time I see a Mexican gal or Negress I say to myself, ‘hustlers’, they’re all the same, always trying to cheat and rob you – harking back to all relations in the past with them – Mardou sensing these waves of hostility from me and silent (KEROUAC, 2001, p.80).
 
Mardou aceita a hostilidade em silêncio. É possível reparar, com essa forma oscilante com a qual Percepeid trata Mardou, que há uma relação de imposição do protagonista sobre sua companheira; um posicionamento de Percepeid em relação às etnias marginalizadas nos Estados Unidos nos anos 1950, que remete às relações entre imperialistas e colonizados, conforme apontado no trecho citado acima. Portanto, cabe aqui discorrer um pouco sobre a forma como a Geração Beat, em especial Jack Kerouac, vê as minorias de seu país e a maneira como eles lidam com o contato junto às culturas que lhe são estranhas. Esse é o caso de grupos citados no trecho acima e que estão muito presentes na literatura beat: mexicanos e afro-americanos, principalmente.
Em seu trabalho intitulado The Transnational Counterculture, em que aborda a relação entre a contracultura beat e a expressão do realismo mágico no México, Daniel Belgrad relata as diversas passagens dos beats pelo México e afirma: “Clearly Mexico was an important literary influence as well as a significant life event in the development of the Beat subculture” (BELGRAD, 2004, p.28). Em sua análise, Belgrad (2004) não descarta a possibilidade de uma relação de déspotas/colonizados entre, respectivamente, beats e México. O autor levanta fontes que interpretam os relatos da presença dos beats em terras mexicanas como uma afirmação do imperialismo, afirmando que William Burroughs, Jack Kerouac e Allen Ginsberg se portavam como déspotas, nessas ocasiões. Analisando suas fontes, o autor afirma:
 
They praised Mexico for its low cost of living and reveled in the ready availability of teenage prostitutes and illegal drugs (heroin and marijuana), a phenomenon inseparable from Mexico’s political and economic “underdevelopment” in comparison to the United States (BELGRAD, 2004, p. 29).
 
Contudo, Daniel Belgrad (2004) não considera a teoria anti-imperialista o foco de sua análise, visto que esta desconsidera a relação intercultural entre os beats e a cultura mexicana. Dessa forma, o autor apoia a hipótese de uma relação de trocas entre as duas culturas e considera, tanto a Geração Beat, como o Realismo Mágico mexicano, formas de oposição ao capitalismo corporativo pós-guerra, que, durante a década de 1950, conquistava cada vez mais espaço nos Estados Unidos e no México. Belgrad afirma: “As part of a transnational counterculture that inherited the mantle of the postwar avant-garde, the Beats in Mexico should be understood as cultural allies of the Mexican Magic Realists, rather than as agents of American imperialism” (BELGRAD, 2004, p. 30).
Cabe frisar, além disso, que a afinidade entre a Geração Beat e a cultura afro-americana, especialmente o bebop, relatada em The Subterraneans, também promove uma relação intercultural e, conforme já mencionado, criou-se uma expressão literária que se opõe ao imperialismo corporativista norte-americano do século XX. Ao contrário de apreciar a sua suposta posição social superior, Percepeid não é conivente ao racismo e à dominância da cultura de classe média; ao contrário, o racismo existente em níveis profundos de sua consciência é o motivo da sua angústia. Percebe-se, na narrativa de Jack Kerouac, o anseio pela institucionalização de uma comunidade alternativa, uma realidade idealizada, em que a relação de Leo Percepeid e Mardou Fox fosse possível.
Além disso, Leo Percepeid é um protagonista com características de um anti-herói, visto que assume constantemente seus erros, fracassos e arrependimentos. Dessa forma, é possível que Kerouac coloque sua própria contradição na relação de Percepeid e Mardou. Dificilmente Jack Kerouac conseguiria retratar o preconceito vivido por integrantes negros da cultura bebop na década de 1950, caso a relação entre Leo Percepeid e Mardou Fox fosse totalmente harmoniosa e Leo não vivesse em constante conflito entre a cultura mainstream norte-americana e a subterrânea do jazz bebop. Nesse sentido, a ambivalência presente em Percepeid é fundamental para o ideal contra-hegemônico manifestado em The Subterraneans.
Para analisar a relação entre os beats e a cultura mexicana explorada por eles, Belgrad (2004) resgata o termo fellaheen proposto pelo historiador e filósofo alemão Oswald Spengler (1880-1936), que se relaciona com grupos que permanecem não afetados pelos grandes movimentos históricos e que, também, facilmente se aplica à contracultura situada nas margens sociais que sobrevivem ao impacto da modernização. Segundo Daniel Belgrad (2004), os beats viam os índios mexicanos como uma subclasse de fellaheen e, por esse motivo, identificavam-se com eles. Os fellaheens para Jack Kerouac e a geração beat são aqueles considerados por eles companheiros de marginalização, como, por exemplo, comunidades afro-americanas, mexicanos vivendo nos Estados Unidos, índios norte-americanos, artistas de rua. Em suma, grupos que sobrevivem à opressão da cultura dominante do consumo, mesmo que estes tenham sofrido mudanças no decorrer de suas existências. A geração beat e seus fellaheens muitas vezes compartilham espaços e, dessa proximidade, surge o convívio. Este é o caso de North Beach, região de São Francisco descrita em The Subterraneans, onde diversos grupos marginalizados convivem em um ambiente boêmio.
Em The Subterraneans, esse tipo de identificação ocorre entre Leo e Mardou devido às raízes culturais de Fox e as experiências na estrada de Percepeid; em ambos os casos há a adoção, mesmo que por vontade própria, de um estilo de vida marginalizado que foge aos parâmetros da vida americana e do progresso. Percepeid comenta sobre a forma como ele se identifica com Mardou e suas experiências, o que o levou a entender o que ele tem de semelhante com a companheira:
 
Concern for her father, because I’d been out there and sat down on the ground and seen the rail and steel of America covering the ground filled with the bones of old Indians and Original Americans. – In the cold grey fall in Colorado and Wyoming I’d worked on the land and watched Indian hoboes come suddenly out of brush by the track and move slowly (…) (KEROUAC, 2001, p.18-19).
 
Tendo isso em mente, podemos dizer que Percepeid vê Mardou como uma companheira fellaheen e se identifica com a sua origem – um povo que vive de forma muito distinta do padrão modernizado dos Estados Unidos. Sendo assim, o fato de a personagem conviver e se interessar por culturas que fogem aos padrões do American way of life pode ser visto como uma contraposição à cultura dominante. Apesar de Jack Kerouac e seus fellaheens das culturas minoritárias coexistentes nos Estados Unidos na década de 1950 resistirem à intensa instauração do American way of life, não se pode dizer que estes se opõem à modernização, conforme aponta Belgrad (2004). Acredita-se que a Geração beat vê o contágio das culturas sobreviventes e minoritárias como uma característica da modernização, a qual proporciona oportunidades para que artistas de vanguarda apropriem-se dessas culturas para a criação artística. Dessa forma, através de relatos literários como The Subterraneans, busca-se uma institucionalização desse aspecto da modernização. Além disso, diversos efeitos dessas mudanças são apropriados pela literatura beat de forma a criar expressões como a prosa espontânea, um estilo de escrita moderno por excelência, presente em The Subterraneans.
Outra dimensão marcante na relação de dominante e dominado entre Leo e Mardou é a sexualidade. De acordo com Daniel Belgrad (2004), para os beats, sexo era um símbolo natural de comunhão e cita o exemplo de The Subterraneans, em que Kerouac iguala os conceitos de sexo e comunhão na relação entre Mardou Fox e Leo Percepeid. Para exemplificar, Belgrad cita o seguinte trecho da obra: “(…) the intimacies of young lovers in a bed, high, facing eye to eye, breast to breast naked, organ to organ, knee to shivering goose-pimpled knee, exchanging existential and lover-acts for a crack at making it (…)” (KEROUAC, 2001, p.7). Considerando que o sexo é uma forma de comunhão entre Mardou e Leo, novamente, se percebe a imposição de Leo sobre sua parceira. Devido ao fato de Mardou ter passado grande parte da sua vida sexualmente inativa, Percepeid impõe-se de forma a reeducá-la afetivamente e sexualmente, remetendo novamente à sua imagem de déspota. Percepeid relata:
 
Never did she use the world love, even that first moment after our wild dance when I carried her still on my lap and hanging clear to the bed and slowly dumped her, suffered to find her, which she loved, and being unsexual her entire life (except for the first 15-year-old conjugality which for some reason consummated her and never since) (…) (KEROUAC, 2001, p. 16).
 
Devido a essa peculiaridade de sua relação, em alguns momentos da história, Percepeid demonstra o desejo de ser o mentor sexual de Mardou, de guiá-la na forma como ela poderia obter prazer na relação. O seguinte trecho exemplifica esse desejo: “We hugged, we held close – it was like love now, I was amazed – we made it in the living-room, gladly, in chairs, on the bed, slept entwined, satisfied – I would show her more sexuality” (KEROUAC, 2001, p. 32).
Se Percepeid é o mentor de Mardou, no que diz respeito à sexualidade, Mardou, por sua vez, é quem tem o maior entendimento acerca do jazz bebop e o auxilia a compreender o estilo musical. Contudo, por ser membro enraizado nessa subcultura, Mardou não partilha da mesma excitação e atração pelo desconhecido que Percepeid. Pelo contrário, em uma conversa sobre o bebop, a jovem negra demonstra-se indiferente à expressão musical. Kerouac narra: “(…) Mardou, who, impressed, forewarned, understanding everything, makes solemn statements about bop, like, ‘I don’t like bop, I really don’t, it’s like junk to me, too many junkies are bop men and I hear the junk in it’” (KEROUAC, 2001, p.84). Além disso, Mardou viveu a marginalização ligada ao estilo de vida do bebop, diferente de Percepeid, que tem aquele cenário como uma forma de evasão da vida normativa.
Dessa forma, Mardou é entendedora do bebop e, por isso, não se comove tanto com o estilo. Mesmo demonstrando certo descaso com o estilo, Fox está em posição superior quanto ao entendimento da música e isso a coloca acima de Percepeid no quesito inserção à cultura bebop, visto que ela é uma integrante genuína do meio em que ambos frequentam. É interessante destacar que Mardou compara o bebop ao lixo, que, para Kerouac, é um lixo merecedor de ser coletado e colocado no centro de sua narrativa. Leo Percepeid, ao contrário de Mardou, enxerga o bebop como uma recém-descoberta fascinante e, em resposta ao descaso de Mardou pelo estilo, responde: “(…) ‘But you never like what you come from’ (looking at Mardou). – ‘What do you mean?’ – ‘You’re the child of Bop, (…)’” (KEROUAC, 2001, p. 84).
A visão que Percepeid tem de Mardou e do bebop é de que ambos têm a mesma origem, uma forma de essencialismo que remete às narrativas de Amiri Baraka (1995) sobre o bebop. Devido ao fascínio pela origem de Mardou e por considerá-la “a filha do bop”, Percepeid vê Fox como uma companheira fellaheen e, assim, estabelece um relacionamento de natureza intercultural – semelhante à relação que Daniel Belgrad (2004) analisa entre a Geração Beat e a cultura mexicana. É através da relação entre Mardou e Percepeid que Kerouac obtém êxito em retratar a geração bebop subterrânea. Ao colocar Mardou e o universo cultural a que ela pertence no centro de sua narrativa – mesmo que haja tantas controvérsias na relação entre ela e o narrador, abordadas anteriormente –, Jack Kerouac cria, assim, um relato que vai além da memória oficial criada pelo imaginário normativo norte-americano; uma memória que busca os descartes dos arquivos oficiais e que tem como objetos principais, nesse caso, Mardou Fox e a cultura do bebop da qual ela faz parte.
 
 
REFERÊNCIAS
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