LITCULT

Revista LitCult
ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





A PROBLEMÁTICA DA SECA NO CEARÁ REFLETIDA EM O QUINZE – Yls Rabelo Câmara, Yzy Maria Rabelo Câmara




 

Yls Rabelo Câmara

Universidad de Santiago de Compostela

 

Yzy Maria Rabelo Câmara

Universidad John Kennedy

 

 
RESUMO: Neste trabalho buscamos mostrar a realidade obscura que há por trás da indústria da seca no sertão nordestino. Assim, no levantamento bibliográfico que efetuamos, inicialmente apresentamos os campos de concentração que foram construídos como campos de contenção. Em seguida, voltamos nosso olhar para a contextualização dos mesmos e o reflexo da calamidade da seca em O Quinze (1930), obra-prima desta que é uma das escritoras brasileiras mais importantes de todos os tempos, a segunda mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras: Rachel de Queiroz.
 
Palavras-chave: Seca, Campos de Concentração, Nordeste Brasileiro, O Quinze.
 
ABSTRACT: This paper aims to show the dark reality existing behind the drought industry in the Brazilian sertão. Thus, in the bibliographical survey that we reviewed, we first focus on the concentration camps that were built as containment places. Later, our attention is turned to their contextualization and the reflection that the drought calamity had on Rachel de Queiroz’s masterpiece O Quinze (1930). She is one the most important Brazilian writers of all times, and the second woman to be elected to the Brazilian Academy of Letters: Rachel de Queiroz.
 
Keywords: Drought, Concentration Camps, Northeastern Brazil, O Quinze.
 
MINICURRÍCULO: Yls Rabelo Câmara é licenciada em Letras Português-Inglês, tem especialização no Ensino de Línguas Estrangeiras – Inglês – pela Universidade Estadual do Ceará, e é Mestra e Doutora em Filologia Inglesa pela Universidad de Santiago de Compostela. Lecionou idiomas em cursos livres no Brasil e na Espanha, e atualmente na graduação e na pós-graduação em universidades do Ceará e do Piauí.
 
MINICURRÍCULO: Yzy Maria Rabelo Câmara é licenciada e bacharel em Psicologia pela Universidade de Fortaleza e bacharel em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará. É mestra em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará e doutoranda em Psicologia Social pela Universidad John Kennedy, de Buenos Aires. Foi professora em IES cearenses e piauiense e atualmente leciona no Centro Educacional Estácio do Ceará.
 
 
A PROBLEMÁTICA DA SECA NO CEARÁ
REFLETIDA EM O QUINZE
 
Yls Rabelo Câmara
Universidad de Santiago de Compostela
 
Yzy Maria Rabelo Câmara
Universidad John Kennedy
 

  1. MEDIDAS INEFICAZES CONTRA A SECA NO NORDESTE

Tal como afirmam Oliveira (1994) e Silva e Bastos (1986), sempre houve dois “brasis” dentro do mesmo Brasil: um próspero, refinado e litorâneo; o outro, rudimentar, inculto e sertanejo. Conforme Câmara e Câmara (2015), a economia nordestina sempre esteve baseada na agricultura e na pecuária. Infelizmente, tanto uma quanto a outra vêm sendo prejudicadas pelas secas sazonais próprias da região.
Entre o final do século XIX e o início do século XX, as secas e os flagelados delas surgidos cristalizaram-se na memória dos brasileiros como uma simbiose atrelada à decadência. Em contrapartida, de acordo com Castro (2010), o século XIX, impulsionado pela Revolução Industrial, trouxe consigo ares de modernidade, requinte e cultura para quem não conhecia as agruras da fome causada pela longa estiagem. A cidade de Fortaleza, na época, experimentava, segundo Silva e Bastos (1986), o descompasso que a maioria das demais capitais brasileiras vivenciava: ainda que buscassem a evolução, estavam fincadas na pobreza de uma parcela considerável de sua população e, no caso das capitais nordestinas, dos habitantes do sertão. O atraso socioeconômico era pautado na política oligárquica que reforçava a condição miserável do binômio clientelismo-coronelismo em detrimento do sertanejo, que, quando muito, apenas dispunha da agricultura de subsistência.
Aliada ao sistema hegemônico do governo de então, como defendem Câmara e Câmara (2015), a Igreja atuava na manutenção da ordem, mas se encontrava também em crise naquele momento, mais propriamente desde que se iniciara a projeção de ideologias marxistas, positivistas, liberais e maçônicas, além do fortalecimento do Cristianismo rústico, que incentivava a construção de açudes, cacimbas, cemitérios, capelas e “casas de caridade” através da presença de líderes influentes como Antônio Conselheiro e Padre Cícero.
Diante deste cenário, Farias (1997) afirma que a seca significa para o sertanejo um período de descontinuação. Para aplacar os efeitos drásticos da estiagem, levas de nordestinos migram de seus territórios de origem para outros menos inóspitos em busca de oportunidades de (sub) emprego, fenômeno que provoca desajuste social por impactar negativamente na economia (NEVES, 1995). A famigerada seca de 1877 (que se estendeu até 1879) foi de tal proporção devastadora que provocou o êxodo massivo de sertanejos cearenses, conforme Costa (2010) e Farias (1997), dos mais distantes e diversos municípios até a capital e a pé, com a esperança de melhores condições de vida. Neves (1995) coloca que, diante do crescente número daqueles retirantes, que já contabilizava um número quatro vezes maior do que a população de Fortaleza, o caos se instalou: saques ao comércio local, desordem, epidemias, delinquência e prostituição em troca de comida.
O poder público criou, então, estratégias de enfrentamento. Por trinta e oito anos, foram utilizadas tecnologias simples de distribuição de alimentos em locais reservados aos retirantes, que foram denominados “abarracamentos”. Segundo Neves (1995) e Farias (1997), além do envio de provimentos alimentícios, o governo promoveu ações isoladas e pouco efetivas de movimentos sanitaristas e, com o empenho da Igreja e de membros da sociedade local, buscou a moralização das condutas dos sertanejos. Houve também, por parte do poder público e da iniciativa privada, ações de isolamento, fazendo com que o retirante recebesse passagens para migrar país adentro e assim abandonasse os grandes centros urbanos.
O movimento migratório periódico de retirantes para a capital passou a ser constante nos momentos de intensidade das estiagens, conforme Barreto (1990) e Farias (1997), devido à falta de políticas públicas que dessem aos cidadãos condições mínimas de permanência e sobrevivência em seus territórios de origem. A partir do século XIX, com o fortalecimento de conhecimentos sanitaristas e sociais, passou-se a acreditar que o adoecimento físico e/ou mental estava diretamente relacionado com os miasmas, com os lugares infectos com as águas poluídas, segundo a perspectiva hipocrática do saber médico. Tal revelação provocou a necessidade de criação de mecanismos para conter a população que adentrava os limites da capital cearense à revelia, trazendo, com sua presença, micro-organismos malsãos.
No ano de 1859, Farias (1997) aponta que o engenheiro Adolfo Hebster elaborou a primeira organização urbana de Fortaleza, que comemorava a prosperidade da província e a ausência de três décadas sem o fenômeno da seca. Este movimento coincidiu com o momento histórico em que a capital buscava se inserir no padrão de aformoseamento característico da Belle Époque. Esta marcava o final do século XIX e o início do século XX com a construção de praças, jardins, ruas pavimentadas, transporte público (bondes), iluminação pública e domiciliar a gás, instituições públicas de asilos e hospitais.
Como era próprio do século XVIII e começo do século XIX, os párias sociais eram confinados em espaços de isolamento (Foucault, 2000), como uma tecnologia utilizada pelo poder público, com intervenção militar, para que a classe que estava emergindo não fosse atingida pela desordem dos menos válidos. À luz do que teoriza Castro (2010), os poderes públicos no Brasil se utilizaram de uma estratégia que já era conhecida, o abarracamento, adaptado ao cenário caótico imposto pela seca de 1915. Os retirantes provenientes das mais longínquas localidades cearenses foram abrigados não mais como na seca de 1877, mas amontoados em um espaço exíguo de quinhentos metros quadrados, coberto por cajueiros: o centro de concentração do Alagadiço. Assim sendo, a implementação de campos de concentração de refugiados foi a solução, no que se refere ao controle social, segundo Foucault (1996), encontrada pelo poder público para conter as levas de retirantes que invadiam e saqueavam agora a já aformoseada Fortaleza.
Destarte, conforme Castro (2010), o Presidente do Estado, Cel. Benjamim Barroso, tomou a iniciativa de construí-lo. Este nome deveu-se à distinção dos abarracamentos aleatórios, construídos em diversos pontos da capital pelos governos anteriores a 1915, e que formavam um amontoado de retirantes vulneráveis que expunham suas mazelas à população provinciana moralmente rígida e que para a qual, os miseráveis da seca representavam um fardo social muito pesado: o de fazê-la conviver com seres humanos em estado sub-humano.
O terreno destinado na seca de 1915 para acolher os retirantes foi estruturado para concentrar três mil homens, mulheres e crianças não higienizados e promiscuamente  amontoados no Passeio Público, área reservada ao lazer e à sociabilidade na Fortaleza de então. A justificativa adotada para a transferência dos flagelados para uma área nos arredores da capital foi, de acordo com Neves (1995), a de ser uma ação humanitária, onde seriam distribuídos alimentos e socorros diversos, prestados em um ambiente humanizado, pois, acima de tudo, urgia ao poder público, em sua política de controle social, livrar a cidade do enfeamento e da contaminação que vinha com os retirantes, assim como evitar a explosão demográfica deles na capital, trazendo consigo sua miséria para uma população que já se encontrava cultuando o belo e o fútil.
Mesmo havendo estradas de ferro ligando o interior à capital em 1915, construídas anteriormente pelas mãos dos próprios retirantes na estiagem anterior, muitos flagelados escolheram a alternativa de buscar trabalho nas construções da comissão de Obras Novas Contra as Secas, uma das políticas públicas emergenciais de combate à seca e aos problemas a ela relacionados. A construção dos açudes públicos das Obras Contra as Secas concentrava auxiliares técnicos, operários e seus familiares. Castro (2010) afirma que o serviço era difícil e mal pago para os flagelados. Mesmo que se praticasse a caridade cristã, por meio da doação de esmolas, havia, por parte de muitos “cidadãos de bem”, a abominação deste exercício, pois, para eles, a esmola poderia se tornar um vício. A recorrência a esta forma de socorro fazia com que muitos retirantes fossem vistos com reserva, como preguiçosos e aproveitadores.
Segundo Neves (1995) e Castro (2010), ficou confinada no campo de concentração do Alagadiço (um espaço destinado, em teoria, a três mil sujeitos) uma população desvalida de oito mil habitantes, em um vasto campo arborizado de cajueiros e mangueiras, ainda que sem qualquer condição infraestrutural, onde famílias inteiras se abrigavam do relento sob a copa das árvores ou em barracas rudimentares, sem conforto ou privacidade. Neste contexto, as condições sanitárias eram deploráveis e a alimentação, insuficiente. Com estes agravantes, a proliferação de doenças e os desfechos fatais eram constantes.
O memorável farmacêutico sanitarista Rodolfo Teófilo foi o grande ativista contra a construção e permanência de campos de concentração nos arredores de Fortaleza, em especial por sua larga experiência como agente no combate às epidemias urbanas, como a varíola. Conhecedor do fato de doenças infecto-contagiosas serem transmitidas por meio de ambientes insalubres e pouco higiênicos, Teófilo sabia, desde o princípio, que o quadro de explosão populacional no local representaria um risco potencial não apenas para os flagelados, mas também para os habitantes da capital e adjacências. Tentou, em vão, alertar o poder público sobre a precariedade e risco do campo de concentração do Alagadiço para a população citadina, mas seus esforços resultaram em uma luta inglória. Como ele mesmo defendia: “A primeira visita que fiz ao Campo de Concentração deu-me a certeza de que em breves dias teríamos ali um Campo Santo” (TEÓFILO, apud NEVES, 1995, p. 99).
Infelizmente, cumpriu-se seu vaticínio: as péssimas condições sanitárias, o amontoamento de corpos, a promiscuidade, a alimentação escassa, aliada à falta de qualidade da água potável, a proliferação de moscas enquanto agentes transmissores de doenças e a distribuição de leite adulterado para os infantes catalisaram a morte para retirantes em grandes proporções; em especial, os mais vulneráveis (idosos e crianças). Assim, ao invés de ser um campo de assistência aos desvalidos da Seca de 1915, o Alagadiço passou à nossa história como o macabro “Campo da Morte” pela facilidade com que a mesma se fazia presente no local e consigo levou milhares de vidas.
Parte deste cenário desalentador é plasmada com maestria por Rachel de Queiroz em sua obra primeira, O Quinze, publicado em 1930, e que desafiou as sociedades literata e leitora da época porque mostrou um Ceará que o Brasil se negava a enxergar. Sobre este tema versa a seguinte sessão.
 

  1. O QUINZE E O RETRATO DO CEARÁ NO ESTIO

Para Câmara et al. (2015), a estiagem no Nordeste é um fenômeno periódico que provoca o êxodo rural que impacta no social. As secas mais avassaladoras, responsáveis pela grande mortandade provocada pela fome e pelas doenças delas advindas, registradas com dor e presentes na memória dos nordestinos da época em que ocorreram e na de seus descendentes, são, em recorte: as de 1877-1879, a de 1915, a de 1934-1936, a de 1979-1985 e a que estamos enfrentando desde 2012.
Dentre estas, a de 1877-1879, afirmam Câmara et al. (2015), ainda no Brasil Império, provocou a migração forçada de parte dos cearenses afetados para a região Norte, mais amena e promissora. Destarte, os filhos do Ceará, junto com outros nordestinos, ajudaram a impulsionar o primeiro Ciclo da Borracha. Na tentativa de solucionar o problema da estiagem, retendo água em reservatórios apropriados, Dom Pedro II investiu na abertura de estradas e no estudo da geografia local por meio de engenheiros brasileiros e ingleses. Concluiu-se que a construção de barragens e açudes poderia ser uma solução cabível e exequível (SCOVILLE, 2011). Foi assim que surgiram projetos que foram executados a posteriori pelos subsequentes governos republicanos, com o Instituto de Obras contra as Secas (atual DNOCS), criado no governo de Nilo Peçanha.
Segundo Câmara et al. (2015), mais do que um problema geográfico-hidrológico, a seca é um problema de cunho político. As verbas destinadas a saná-la, desviadas para as contas bancárias de terceiros, evidenciam o desmando que sempre caracterizou a região Nordeste como berço de corrupção em um país onde, como bem definiu Antônio Delfim Netto: “o braço da justiça não alcança os homens de dinheiro”.
Como explicitamos na seção anterior, a partir da estiagem de 1915 vieram os campos de concentração ou os currais do governo, que objetivaram evitar que os flagelados seguissem ocupando e saqueando a capital cearense. Conforme Câmara et al. (2015), a Seca do Quinze foi o cenário para a implantação do primeiro destes campos, no Alagadiço, a oeste de Fortaleza, com cerca de oito mil pessoas mal alimentadas e mal cuidadas, vigiadas de perto por soldados nada complacentes, que Rachel de Queiroz plasmou n’O Quinze (1930). Repetindo o que ocorrera na Seca do Quinze, na seca de 1934-1936 os campos de concentração seriam novamente cogitados e implantados. Desta vez não somente no Alagadiço e no Pirambu, em Fortaleza, mas estendidos para outras regiões do estado, providas de estações de trem, como Quixadá, São Mateus, Quixeramobim, Ipu, Crato, Senador Pompeu e Cariús. Confinados, os retirantes seriam obrigados a seguir rígidas regras de conduta e não poderiam partir sem autorização (SCOVILLE, 2011). Um aglomerado de aproximadamente setenta e três mil pessoas seria reunido nestes redutos insalubres e, deste total, uma parcela seria utilizada nas trincheiras da Revolução de 1932, em São Paulo.
Podemos afirmar, à luz do que defendem Câmara et al. (2015), que Rachel de Queiroz transfere para O Quinze sua experiência pessoal de fugir com a família do sertão do Quixadá para as cidades do Rio de Janeiro, Belém do Pará, Fortaleza, Guaramiranga e, novamente Quixadá, quando da Seca do Quinze. O feito foi tão impactante para a autora que a levou a plasmar, em forma de livro, a bravura e a impotência do sertanejo frente às adversidades advindas com a seca e que o levavam a tomar atitudes desesperadas como, por exemplo, soltar o gado para morrer de fome e sede na caatinga por não poder-lhe mais dar de comer nem de beber. Pela ótica de Neves (1995, p. 95), podemos afirmar que: “O romance, sem apelar para a sociologia da literatura nem para a teoria literária, é uma representação do real sócio-histórico”.
Inovador por haver sido escrito por uma jovem de vinte anos, culta, desconhecida e transgressora, o livro fixou seu enredo em planos distintos, que tinham como pano de fundo a Seca de 1915, o eixo cidade-sertão e o binômio liberdade-confinamento. Retratando um Brasil que o Brasil desconhecia ou não queria conhecer, Rachel ousou distanciar-se do modelo de romance regionalista que então se produzia na literatura e, utilizando-se de uma linguagem jornalística, destituída de sentimentalismo, reportou ao mundo o drama de seus conterrâneos menos afortunados.
Conforme Andrade (2014), o livro é narrado em terceira pessoa por meio de um narrador onisciente e que não participa da história; a fome está presente em quase todos os vinte e seis capítulos sem títulos e numerados. O Quinze representa a persona do sertanejo sofrido na personagem Chico Bento, que junto à esposa e aos cinco filhos empreendem a marcha forçada de deixar a fazenda onde moravam em busca de sobrevivência, uma vez que Chico fora dispensado de seu serviço porque já não tinha mais como alimentar o gado da fazenda da patroa. O fato de migrar dentro da caatinga parecia-lhe penoso, mas se não chovesse até o dia de São José, 19 de março, este seria o seu destino, como o foi, tal como ocorreu com tantos outros chico bentos não somente no Ceará, mas no Nordeste de maneira geral.
Com algum dinheiro guardado com sacrifício, Chico compra mantimentos e uma burra no intuito de atravessar o sertão; almejava ir para o Norte, extrair látex, como tantos outros conterrâneos seus. Sem ter como embarcar no trem, os planos mudam e a família passa a trilhar o caminho a pé até Fortaleza. No entanto, a sombra do infortúnio os ronda roubando-lhes a esperança e o ânimo: o filho mais novo, Josias, morre envenenado ao comer mandioca crua e o mais velho, Pedro, foge com uns comboieiros de cachaça.
Como bem descreve Andrade (2014), o sertanejo não almeja ser retirante. Se assim se torna é por força das circunstâncias. Mesmo sentindo-se desgraçado, Chico Bento, representando o espírito do homem do sertão, demonstra generosidade, fé e resignação sem que com esta se abata a necessidade que sente de prover sua família. A trama é muito fiel ao espírito do nordestino que mora no sertão, agrário por natureza, e que somente parte em êxodo quando a terra que ama não tem mais nada a lhe oferecer. A família de Rachel de Queiroz, afortunada e abastada, teve como se deslocar de Quixadá para cidades mais amenas. Para fazer um percurso infinitamente mais simples e mais curto, Chico Bento e sua família tiveram que perder três de seus seis membros, passar fome, sede, vergonha e humilhação, bem aos moldes do que acontecia e segue acontecendo quando o assunto é a estiagem.
Tempos depois, com a ajuda de seu cunhado e já no campo de concentração do Logradouro, desvalido e desesperançado, Chico reconhece uma antiga vizinha que ali trabalha como voluntária, Conceição, sua comadre e protagonista de outro plano do romance, que lhe consegue trabalho na construção de uma barragem. À luz de Câmara et al. (2015), Conceição é o alter ego da autora que, morando em uma casa grande no bairro Alagadiço, frequentava o campo de concentração juntamente com as tias, como voluntárias. Além disso, Rachel e Conceição comungavam o gosto pela instrução, pela emancipação feminina e pela falta de identificação somente com a cidade ou somente com o sertão: pertenciam a ambos.
Declinando do casamento e da maternidade, Conceição se oferece para criar o afilhado Duquinha, o filho mais novo do casal. Este é um drama para qualquer mãe sertaneja: o dilema que a seca e a pobreza lhe impõem de ou criar o filho e possivelmente vê-lo morrer de fome ou entregá-lo a outra mulher, para que tenha melhor sina, e não vê-lo nunca mais. Sem escolha, Cordulina o dá à sua comadre porque sabe que com ela ele terá uma vida digna. Vendo a família diminuir e Cordulina desesperançar-se, com o fim da construção da barragem e já sem emprego outra vez, Chico volta a pedir ajuda a Conceição, que o desaconselha a ir para o Norte, mas rumar para São Paulo. Ela consegue passagens de navio para que a família se traslade e inicie ali uma nova história.
Em linguagem simples, Rachel de Queiroz descreve neste seu primeiro livro e, sobradamente, sua obra-prima, um dos mais graves problemas sociais de seu tempo, a Seca do Quinze e, com ela, o descaso do governo para com os retirantes da seca, a corrupção por trás das pseudo ajudas subornadas, a necessidade de evitar que os flagelados alcançassem Fortaleza, a exploração de pessoas miseráveis em trabalhos forçados e tudo à sua revelia, quando o que eles mais queriam era estar em suas terras ou nas terras por eles arrendadas, trabalhando honestamente se não fosse a seca. Rachel toca também em um ponto nevrálgico em O Quinze quando se refere ao sonho dos retirantes em terem uma vida melhor no Norte, trabalhando com a borracha, ou em São Paulo, trabalhando nas fazendas cafeicultoras.
Em outras palavras, a então jovem, inexperiente e já excelente escritora imprimiu sua marca nesta, que é considerada sua obra magna, e legou-nos o retrato cruel do Ceará sedento de chuva e de justiça.
 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Passado mais de um século desde a seca do Quinze, o cenário político mudou, mas não o suficiente para solucionar o problema das estiagens nordestinas, que inspirou Rachel de Queiroz a escrever seu primeiro romance, nem para acabar com a indústria da seca – corrupta e vergonhosa. Antes, as ações governamentais visavam beneficiar o patrão e encurralar os flagelados e/ou fazê-los trabalhar nas frentes de obras e migrar para outras regiões do país, onde sofreriam o preconceito de haverem nascido no desgraçado Nordeste. Hoje, com a implementação de políticas públicas voltadas para o campo, o cenário é outro, não tão inóspito como outrora, ainda que muito mais poderia ser feito se contássemos com menos corrupção e mais ação. Poderíamos estar em melhores condições, pois nos sobram as boas intenções, mas nos faltam Chico Bentos, Conceições e Racheis de Queiroz.
 
REFERÊNCIAS
 
ANDRADE, J. T. de. Aspectos políticos e sociais em O Quinze, de Rachel de Queiroz: uma análise representativa sobre o personagem Chico Bento. Trabalho de conclusão de curso, João Pessoa, Universidade Estadual da Paraíba, Departamento de Letras e Humanidades, Curso de Licenciatura Plena em Letras, 29 p., 2014.
BARRETO, E. Arquitetura do poder: reflexão crítica da estrutura sóciopolítica e econômica do Brasil. 11ª ed. Fortaleza: Edição do Autor, 1990.
CÂMARA, Y. R.; CÂMARA, Y. M. R.; SOUTULLO, M. R. O Quinze: revisitando a importância de Rachel de Queiroz para a cultura cearense, a Literatura Brasileira e o feminismo no Brasil do Século XX, Revista Entrelaces, Ano 5, no 6, 2015: p. 116-130.
CÂMARA, Y. M. R.; CÂMARA, Y. R. Canudos revisitado: uma breve análise do que foi a utopia de Antônio Conselheiro, ameaça à consolidação do poder da república no final do século XIX, Revista Entrelaces, Ano 5, no 5, 2015: p. 5-19.
CASTRO, L. de. As retiradas para os campos de açudagem na seca d’O Quinze, Revista Historiar, ano 2, no 1, 2010: p. 97 -122.
FARIAS, P. de. História do Ceará: dos índios à geração Cambeba. Fortaleza: Tropical, 1997.
FOUCAULT, M. A história da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2000.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996.
NEVES, F. de C. Curral dos bárbaros: os campos de concentração no Ceará (1915 e 1932), Revista Brasileira de História – Contexto, v.15, no 29, 1995: p. 93 – 122.
OLIVEIRA, J. H. C.; CAMPOS, N. L. B. História do Brasil: de Pindorama ao Brasil atual. Coleção 2º Grau. Fortaleza: Colégio GeoStúdio, 1994.
QUEIROZ, R. de. O Quinze.  Rio de Janeiro: Editora do Brasil, 1930.
SILVA, F. de A.; BASTOS, P. I. de A. História do Brasil: colônia, império e república. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Moderna, 1986.




CONTATO



litcultnet@gmail.com



litcultnet@gmail.com

© Todos os direitos reservados