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A ESCRITA DE SI E DO OUTRO EM “MISSING MEN – A MEMOIR”, DE JOYCE JOHNSON – Joana d’Arc Martins Pupo




 

 

Joana d’Arc Martins Pupo

Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná

 
 
Resumo: A escrita autobiográfica, as memórias e as histórias de vida foram os primeiros gêneros literários escritos pelas mulheres. As escritoras Beats também praticaram intensamente estes gêneros literários. O objetivo deste artigo é analisar o livro de memórias Missing Men de Joyce Johnson focalizando, primordialmente, a dimensão relacional através da qual a autora constitui essas memórias. Esta característica relacional se opõe aos moldes em que as autobiografias de autoria masculina são tradicionalmente construídas. A obra também revela a capacidade de construção de uma identidade feminina de escritora Beat emancipatória que está em consonância com os objetivos políticos dos estudos feministas da autobiografia.
 
Autoria: Joana d’Arc Martins Pupo é professora assistente do Departamento de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Ponta Grossa e Doutoranda no Programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná.
 
 
A ESCRITA DE SI E DO OUTRO EM
MISSING MEN – A MEMOIR”, DE JOYCE JOHNSON
 
Joana d’Arc Martins Pupo
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná
 
 
Introdução
Os gêneros textuais memorialísticos como diários, biografias, autobiografias, memórias e histórias de vida informaram e informam, de modos diversos, as mais diversas pesquisas nas Ciências Humanas, desde a antropologia, a historiografia, a sociologia, e os estudos literários.
Andreas Huyssen, em Present PastsUrban Palimpsests and the Politics of Memory (2003), afirma que a emergência da memória como uma preocupação política e cultural nas sociedades ocidentais foi um dos fenômenos políticos e culturais mais surpreendentes dos últimos anos, configurando-se como “uma virada para o passado que se coloca em forte contraste com o privilégio do futuro tão característico das primeiras décadas da modernidade do século XX” (HUYSSEN, p. 11). Para este historiador cultural e crítico literário, a obsessão pela memória é um sintoma significativo de nosso presente cultural. Para ele, “Nós precisamos tanto do passado como do futuro para articular nossos descontentamentos com o estado presente do mundo”1, ideia que também podemos identificar em muito das preocupações dos estudos feministas e, particularmente, na escrita autobiográfica feminista.
A autobiografia continua sendo um gênero literário central para a escrita contemporânea de mulheres por possibilitar o questionamento de vários aspectos “em relação ao valor e às limitações desta tendência em direção a autorrevelação literária” (FELSKI, 1989, p.86). Segundo Rita Felski, em On Confession (1989), este “ato de confissão” funciona como libertador ao revelar as dimensões que são políticas da experiência pessoal, por questionar as ambiguidades e contradições dos papéis sociais de gênero, ao mesmo tempo em que revela um importante sentido de identificação e solidariedade feminina, tão afim às demandas da práxis feminista.
Este artigo tem como objetivo discutir no romance de Joyce Johnson, Missing Men, a narrativa memorialista em relação com a construção da identidade libertadora de escritora Beat. Este artigo está subdividido em três partes. Primeiramente, discutirei sucintamente características particulares das autobiografias de autoria feminina. A seguir, procurarei situar o papel do gênero literário memorialista para as escritoras da geração beat. E, finalmente, procurarei demonstrar, em Missing Men, a característica relacional que essas memórias de Joyce Johnson assumem. Para tanto, utilizei três paratextos que compõem a obra: a epígrafe de Nabokov e o breve prefácio que antecedem a narrativa e, por último, o título que abre a o último capítulo do livro, Negative Space. Encerro, então, com breves considerações finais.
 
A autobiografia na escrita de mulheres
As mulheres dedicaram-se inicialmente mais à escrita de cadernos e diários episódicos uma vez que, historicamente, sua condição social e cultural de confinamento à esfera privada, sempre sob a tutelagem de uma figura masculina, não possibilitava que desenvolvessem uma tradição na escrita autobiográfica aos mesmos moldes daquela produzida por homens.  Privadas do “motivo central de uma autobiografia – o desejo de sintetizar, de ver a vida de alguém como um todo orgânico, de olhar para trás em busca de um padrão” (FELSKI, 1989, p. 86), e ainda sem ter as bases para assumir o individualismo radical de um eu masculino, que ocupava o lugar de representante da humanidade de modo universalizante – outra característica que marcava os fundamentos da emergência deste gênero literário –, as mulheres ao narrarem suas vidas produziram obras muito particulares e a serviço de suas próprias experiências, aspirações e valores.
Em primeiro lugar, portanto, como bem nos lembra Fatmagül Bertay2,  no artigo  Writing and Reading Autobiographies (1992, s/p.) pensar as autobiografias escritas por mulheres envolve “uma revisão de nossas crenças na verdade, no conhecimento, no eu e na linguagem – crenças que se originaram no Iluminismo e ainda são frequentemente tomadas como certas e que têm servido a cultura ocidental”. Há muito as teorias feministas, juntamente com outras teorias críticas, denunciaram a falência do sujeito uno cartesiano, cujo eu estável, permanente e volitivo acedia ao conhecimento da verdade através da razão. Mas não menos importante para a desconstrução dos arranjos de gênero, tarefa primeira de qualquer perspectiva da crítica feminista, é também a ideia da linguagem como transparente e neutra que subjaz e fundamenta tais concepções.
Assim, os estudos da literatura de cunho confessional produzidas por mulheres a partir da perspectiva da crítica feminista e dos estudos de gênero partem de insights e exigências muito diversos das teorias tradicionais de estudos das biografias e autobiografias, uma vez que estas “foram desenvolvidas dentro de um viés totalmente masculino e, muitas vezes, são de pouca serventia para a discussão de uma tradição autobiográfica de mulheres” (FELSKI, 1989, p.86).
Outro aspecto que é preciso considerar na leitura e interpretação das autobiografias de mulheres é que a distância que já existiu entre o tipo de autobiografias “públicas e sequenciais” escritas por homens e aquelas “desarticuladas e subjetivas” escritas por mulheres, diminuiu tremendamente devido a “uma subjetivização dos textos literários, originando-se de uma ruptura com normas genéricas” (op. cit., p. 87). Deste modo, as autobiografias contemporâneas, tanto de homens quanto de mulheres neste caso, ganharam formas que rompem os limites entre a ficção e a autobiografia, sendo o gênero autobiográfico hoje visto mais “como parte da esfera da literatura em vez de ser uma subcategoria da biografia histórica, como havia sido anteriormente visto” (SPENGEMAN, apud FELSKI, 1989).
Da perspectiva dos estudos de gênero, o que interessa no estudo da autobiografia é, particularmente, a relação que se coloca entre a experiência pessoal das mulheres e os objetivos políticos do feminismo. São inúmeras e diversas as implicações da prática da escrita memorialística de mulheres que vão desde os aspectos da produção – forma, estilos, conteúdo – até os aspectos dos modos de recepção das obras, tanto pela crítica especializada quanto pelo público leitor. Entre algumas dessas especificidades, está o fato de que a individualidade da mulher carrega um traço relacional muito forte. Ou seja, enquanto as autobiografias masculinas são marcadas por um ‘eu’ individual isolado, solitário, as autobiografias e memórias escritas por mulheres são construídas através de narrativas cujo foco oscila constantemente de suas vidas pessoais para a vida dos outros a sua volta. E este será um dos aspectos que exploraremos em nossa análise de Missing Men – a Memoir, de Joyce Johnson e que nos possibilita vislumbrar de que modo, ao narrar a si mesma, Johnson constrói uma clara visão da natureza relacional na construção das subjetividades e, principalmente, das identidades de gênero.
 
As escritoras beat e a escrita autobiográfica
Em se tratando da Geração Beat, as obras mais conhecidas são aquelas de autoria masculina dos ícones do movimento, como Howl (1956) de Allen Ginsberg, On the Road (1957) de Jack Kerouac ou Naked Lunch (1959) de William S. Burroughs. O fato é que durante este mesmo período, os ambíguos anos 1950, e pertencente a esta mesma geração, um grupo de mulheres não só compartilhava com estes autores as inquietações emergentes dos tempos de Guerra Fria como também experimentações literárias que pudessem traduzir seus anseios e visões da época. Ao estarem revolucionando suas vidas pessoais, elas antecipavam a segunda onda do movimento feminista que explodiria, juntamente com outros movimentos sociais pelos direitos humanos, nos anos 1960. Em sua maioria, eram mulheres brancas oriundas de famílias de classe média, algumas judias, que gozavam da estabilidade e prosperidade proporcionada pela posição econômica alcançada pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Sem se importarem com as comodidades e privilégios que perderiam, saíram de casa ainda muito jovens para viver experiências de liberdade inéditas para as mulheres de então. Escrever foi uma de suas ousadias libertárias. E o fizeram com altíssima qualidade.
As escritoras beats produziram os mais diversos gêneros literários, desde poesia, prosa, relatos ficcionais e não ficcionais, mas, segundo a Ann Waldman (apud MLAKAR, 2007), o gênero mais fortemente praticado foi as memórias. A quantidade de obras memorialísticas beat é tão grande que este passou a ser considerado um subgênero desta literatura. Estas obras vêm sendo produzidas por elas desde o final dos anos 60 e, dado que muitas dessas autoras continuam na estrada, prosseguem nos oferecendo novas perspectivas para compreendermos o chamado movimento beat. Sua autoria possibilita reinterpretarmos a natureza do movimento a partir de uma ótica mais abrangente e inclusiva, de um olhar para as relações de gênero, cujos estudos, com certeza, não deixaram incólumes os paradigmas que até então têm definido o movimento como tal.
Para as escritoras da geração Beat, as memórias, porque menos regulamentadas em sua forma e estilo do que as autobiografias, ao proporcionarem maior abertura e flexibilidade, se mostram mais adequadas à narrativa de suas experiências e de uma escrita que se projeta para o futuro. Entre as obras mais conhecidas estão Memoirs of a Beatnik de Diane DiPrima, publicada em 1969; Troia: Mexican Memoirs, de Bonnie Bremser do mesmo ano; Minor Characters – The Romantic Odyssey of a Woman in The Beat Generation, de 1983, e com o qual Joyce Johnson ganhou o National Book Critics Circle Award, entre outras.
Missing Men – a Memoir (2004) é uma das mais recentes obras de cunho autobiográfico publicada por Joyce Johnson e que pode ilustrar de que modo a escrita memorialística de autoria de mulheres é capaz de associar de maneira ideal a história pessoal e história social de uma dada comunidade. Mas, uma vez que qualquer discussão sobre história e trajetória de vida toca diretamente a questão da memória e da construção da identidade, este será o foco principal deste trabalho nesta obra de Johnson.
 
A Escrita de Si e do Outro em “Missing Men – a Memoir
Missing Men – a Memoir é o segundo livro de memórias de Joyce Johnson. Escrito pelo menos vinte anos depois de Minor Characters, suas primeiras memórias, Missing Men é curiosamente por ela dedicado a Peter Pinchbeck, seu segundo marido e de quem se divorciara passados trinta anos de sua escrita. Fato que talvez já nos indique o lugar que a autora escolhe reservar para os homens que, de uma forma ou de outra, se transformaram em ‘ausência’, mas paradoxalmente nunca deixaram de estar presentes durante toda sua vida posterior.
A epígrafe de Vladimir Nabokov escolhida pela autora para abrir o livro: “A busca de (…) padrões temáticos através da vida de alguém deveria ser, acredito, a verdadeira finalidade de uma autobiografia”3 (NABOKOV, apud JOYCE, 2004, p. 36) sugere que a realização de Missing Men significa a busca de Johnson pelos motes e recorrências que a constituíram e determinaram suas escolhas para uma reconciliação, presente e futura, com o outro e consigo mesma. Não é de um estatuto de verdade que se trata, mas de uma busca por coerência que a construção de sentidos através da narrativa memorialista possibilita. E isso exige um trabalho árduo.
As palavras de Nabokov lembram a sugestão de que “o verdadeiro trabalho da memória (…) não se limita à caça aos fatos, mas se dedica a explicar, a compreender, por meio de que engrenagens tudo aconteceu” (RICOUER, 2005, p. 2), e para quem a compreensão não impede de condenar ou louvar, mas “liberta as paixões da sua obsessão, que condena a memória a uma piedade imóvel” (RICOUER, 2005, p. 2). Há condenação e há perdão em Missing Men, portanto, mobilidade.
Piedade e perspicácia, cuidado e malícia, solidariedade e individualismo, compaixão e razão, desentendimento e tolerância parecem ser parte da rememoração que Joyce Johnson realiza em Missing Men, tendo os outros, particularmente os homens de sua vida, como referência. O que não quer dizer que as memórias das mulheres da família não ocupem aí um lugar também vital. Na primeira parte da obra, a narrativa revela que sua compreensão do lugar social e cultural reservado à avó, às tias, e à mãe na sociedade marcadamente patriarcal da época possibilita que Johnson se coloque no presente como contraponto às posições que essas mulheres ocuparam. Mas a Joyce adulta que rememora e narra o faz em duplicidade, conservando-se fiel às impressões da menina e adolescente Joyce e permitindo-se completar as lacunas da memória com referenciais adquiridos de suas experiências posteriores.
Ao mesmo tempo em que a dor do passado se reatualiza na dor em recordar o passado, narrar o que se recorda do passado traz a possibilidade de reinventar não a dor, mas um entendimento daquilo que pode já não doer mais. O título da obra traz a ausência, a falta, o vazio e, na maior parte do tempo, trata-se de uma narrativa suave e densa, mas melancólica. Coerente talvez com um texto que fala da morte. Todavia, o vazio deixado pela(s) morte(s) não desespera a mulher que conta. Não é a voz de quem não tem mais nada, mas a voz de uma mulher que segue em direção à vida, conseguindo, de certa forma, superar as perdas ou conviver com elas, transformá-las em outros caminhos para seguir na estrada.
Na continuação deste trabalho, restringiremos nossa leitura da obra tomando mais dois de seus paratextos4 como guia de nossa interpretação, a saber: o curto prefácio que inicia a obra, e, finalmente, o título Negative Space do último capítulo, momento narrativo em que o passado narrado se aproxima mais estreitamente ao presente vivido da memorialista. Esta escolha está relacionada à nossa compreensão da importância da estrutura da obra para o que acreditamos seja o significado da própria ideia de memória presente em Missing Men.
O prefácio que abre as memórias inicia com a intrigante expressão “Certa vez tive um marido”, expressão que imediatamente nos remete ao início das estórias infantis, passadas em tempos longínquos e lugares distantes, que tanto pode nos sugerir a ficcionalização desta memória quanto a desimportância do que se vai contar para este tempo, momento em que a narração se realiza. Entretanto, ao finalizarmos a leitura de tão breve prefácio, concluímos seu grande valor.
 
Certa vez tive um marido que começou a pintar quadrados obsessivamente _ três quadrados em relações cambiantes entre si no que aparecia uma base plana, um vazio colorido. Ele me explicou que o espaço negativo em seu trabalho era tão importante quanto o positivo, que cada um recebia sua forma do outro. O que o interessava era principalmente a tensão entre eles. Lembro-me de ter ficado fascinada com seu conceito de espaço negativo, apesar de que o termo negativo pareceu-me a palavra inadequada para algo que tinha uma presença tão importante.
Eu ainda era muito jovem então, muito jovem para olhar para minha história e ver o quanto minha vida foi ela mesma moldada por ausências _ primeiramente por acaso, ao final, talvez por escolha (JOHNSON, 2005, p. 39. Minha tradução5).
 
 
A autora faz um paralelo entre a pintura e o desenvolvimento de sua vida, apontando assim o tema central da construção de sua subjetividade. Os espaços positivo e negativo na pintura transformam-se em presença e ausência em sua experiência de vida. E podemos entender a interdependência entre os espaços da tela como a interdependência que se estabelece nas relações pessoais nos níveis tanto afetivo-emocional como no nível da natureza dialética da constituição dos sujeitos, a dependência do outro para a formação do eu – “cada um recebia sua forma do outro”. Por isso, podemos considerar, ainda, a imagem uma boa metáfora para a própria questão da memória na medida em que não há memória individual que não esteja imbricada seja na memória de outrem ou em uma memória social ou cultural. As relações entre os quadrados são também descritas como “cambiantes”, como será cambiante o significado dessas presenças e ausências na vida da autora.
A ideia de espaço negativo será retomada pela autora na parte final da obra, já presente no próprio título do Capítulo três Negative Space, trazendo de volta, desse modo, esta ideia de complementaridade. O espaço negativo é aquele necessário para compor o positivo. Mas apesar das memórias na obra seguirem certa linearidade cronológica, esta linearidade é constantemente entrecortada por observações e análises que se intercalam em idas e vindas no tempo. São memórias de outras épocas, outros lugares, outras pessoas, memórias que se interconectam e que vão revelando o funcionamento da narrativa, não como uma mera descrição de fatos passados, mas como a própria tessitura do passado, sua própria criação no presente.
A primeira parte da obra intitulada Samuel Rosenberg’s Daughters traz as origens de sua trajetória. É onde conhecemos a história da família materna, desde a chegada do avô, poeta e intelectual judeu, cujo suicídio aos trinta e sete anos, provocou a primeira e profunda ausência masculina na vida não só de sua mãe, mas na vida da própria Joyce Johnson. Deste avô, a autora herdará o talento literário e, ao tornar-se escritora, realizará aquilo de que o avô fora privado, cumprindo este mandato geracional. Este primeiro capítulo trouxe ainda a segunda grande ausência na vida da autora: a morte de seu pai, David Glassman, cuja vida fora igualmente marcada por ausências masculinas, com as mortes trágicas e prematuras do irmão e do pai.
A segunda parte, Red, White, and Black, narra a vida de Johnson, depois do fim da relação com Jack Kerouac, e seu primeiro e breve casamento com o pintor James Johnson, interrompido abruptamente com a morte precoce do pintor, tornando-se esta outra grande ausência masculina. Entretanto, ao manter o sobrenome Johnson por toda sua vida, Joyce reescreve permanentemente esta ausência em presença numa demonstração do quanto este outro também compõe sua identidade.
A terceira e última parte de Missing Men é a rememoração de seu segundo casamento, com Peter Pinchbeck, também pintor, época em que realiza o desejo de ser mãe, independentemente da franca oposição dele. A vida de Peter, outrossim, marcada tanto por uma mãe negligente quanto pela ausência completa do pai, indica a mesma recorrência da falta, do vazio. Johnson avalia estas causas como sendo decisivas para tê-lo tornado um homem esquivo a aproximações pessoais mais intensas e a relações afetivas mais profundas. Traço que, segundo ela sugere, talvez tenha colaborado para seu divórcio, somente cinco anos depois. Entretanto, Joyce permaneceria continuamente ligada Peter, ainda que de modo totalmente distinto do que ficara em relação ao primeiro marido. O primeiro parágrafo do capítulo logo nos permitirá vislumbrar tal situação.
 
Naquela primeira semana de setembro havia um ar diferente. O céu tornou-se de um azul imoderado, sem nuvens, sob um fundo ainda mais cinza. A luz derramava-se sobre o jardim evanescente, dourando as folhas que repentinamente tornavam-se secas, glorificando as samambaias que escureciam, tornando cada vermelho ou roxo ou amarelo cádmio resolutos e definitivos. Estava quente o bastante em Vermont para se sentar à varanda, e me lembro de quanto meus pensamentos se voltavam para Peter quando eu estava lá fora _ Peter em sua varanda em Catskills na minúscula casa da qual havia me mandado fotos em julho. Eu o imaginava, sentado, hipnotizado pela luz, observando-a iluminar, escurecer, iluminar. Por toda aquela semana, de um modo curioso, ele parecera presente, silenciosamente muito perto de mim. Talvez por esta razão eu tivesse perdido a noção de que ele deveria estar de volta a Nova York. À medida que os dias se passaram sem nenhum telefonema dele, não me ocorrera perguntar por que (JOHNSON, 2004, p. 2610).
 
 
É ao final da introdução desta terceira fase de suas memórias, ao narrar as típicas visitas de Pinchbeck a sua cabana de veraneio em Vermont, que encontramos a autora, na maturidade da vida – sensivelmente simbolizada na descrição da chegada do outono _ gozando a solidão e a liberdade de uma solteirice conquistada e agora escolhida. Surpreendemo-nos, então, com a constatação de Johnson, que fala então de outro tempo e lugar, de que teria sido capaz de compartilhar com Peter o tempo que lhes restaria da vida:
 
Voltando para casa pelas estradas de terra, eu sentava ao lado dele no escuro, mergulhada no cheiro salgado e de fumaça que era seu, e parecia encher o carro, repreendendo-o algumas vezes por ir muito rápido com tantos cervos nas florestas, soando para todo o mundo como se fosse sua verdadeira esposa, exceto que, uma vez em minha casa, íamos para nossos quartos separados, nossas camas separadas, e aquilo que efetivamente éramos um para o outro ficava claro uma vez mais. Eu ficava acordada, recostada aos travesseiros e o ouvia tossir ou virar ou mudar de posição, esperava então apagasse a luz. Eu ficava acordada, imaginando se o que eu sentia era o fantasma do desejo, decidindo com alívio que não era o caso. Talvez quando nós formos realmente velhos, eu pensava às vezes, Peter e eu terminaremos vivendo juntos, depois de tudo (JOHNSON, 2004, p. 2634. Negrito meu).
 
E havia reciprocidade neste sentimento ambíguo que se apresenta entre um desejo antigo e uma amizade que se constrói entre ambos no presente:
 
“Eu gostaria muito que você viesse aqui.”
Fico ouvindo com frequência estas últimas palavras de Peter. Elas pairam no ar como a fumaça de seu charuto cujo cheiro, às vezes, acredito sentir quando saio à varanda em Vermont. Não havíamos sido feitos para sermos marido e mulher, mas apesar de nossa separação insolúvel, eu sei que houve entre nós uma boa medida de reconhecimento e ternura (JOHNSON, 2004, p. 3619).
 
 
Considerações Finais
 
Em Missing Men – a Memoir, como quem fotografa6 a própria vida, a autora regula o foco de seu olhar, ora distanciando, ora aproximando o foco sobre si mesma. Ora apresentando-se como protagonista, ora escolhendo a posição de um minor character.  Ao narrar as suas memórias entrelaçadas às memórias vividas dos outros, Joyce Johnson nos ensina que o espaço negativo é aquele necessário para constituir o positivo, dando-nos a clara evidência da constituição dialética e relacional dos sujeitos.
Ao relatar não só as experiências conjugais de uma Joyce mais jovem, mas tendo narrado sua infância, a vida da mãe, das tias e da avó, também cria o panorama social que a moldara mulher. Entretanto, a autora não se limita a falar do passado, nos revela, do mesmo modo, a Joyce em idade mais avançada, madura e experiente, capaz de transformar a forte herança familiar de perdas e frustrações em um legado de relações não estereotipadas, de realizações pessoais e profissionais.
Contudo, ao rememorar como, mesmo próximo à morte, Peter não desistira de sua arte e de fazer planos para o futuro, a autora se obriga a pensar em sua própria solidão e finitude:
 
Ainda me pergunto se ele sabia que estava morrendo naquele verão. Primeiramente, a ideia de que ele sabia era insuportável para mim. Eu não parava de pensar que ninguém estava com ele, e na sua solidão eu vi a minha própria. Mas então, quando Daniel e eu estávamos vasculhando seus papéis, encontramos um recorte de jornal que ele tinha, obviamente, arquivado para referência futura em uma pasta marcada ‘Bungalow Deal’. Era um artigo sobre uma casa no deserto do Arizona construída a partir de materiais reciclados e de terra e de vidro, com um teto translúcido inclinado que trazia o céu ocidental para dentro. O interior – 25 x 100, como loft de Peter na Greene Street – estava atraentemente vazio, como que esperando para ser preenchido com inúmeras telas. Penso em Peter ali, naquele espaço, como quando trabalhava na mesa em seu bangalô, portas escancaradas em sua mente aberta para tudo o que ele pintaria a seguir.
Ele morreu antes de sua imaginação. Qualquer artista deseja tal fim. Eu gostaria de ter a sua sorte e a sua coragem (JOHNSON, 2004, p. 3.619. Negritos meus).
 
 
Na última página dessas memórias, Joyce Johnson fecha o círculo, consciente de que a morte é, também, o espaço negativo da vida, e acaba por confirmar que segue fiel a sua escolha: o que importa é fazer-se sujeito e seguir imaginando e escrevendo.
A coragem é dela. A sorte é nossa.
 
BIBLIOGRAFIA
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SMITH, Sidonie & WATSON, Julia (Eds.). Women, Autobiography, Theory: a Reader. The University of Wisconsin Press, 1998.
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NOTAS AO TEXTO
 
1No original: “We need both past and future to articulate our political, social, and cultural dissatisfactions with the present state of the world.” (HUYSSEN, 2003, p. 6). Todas as traduções dos trechos das obras em inglês são de minha autoria e responsabilidade.
2Diretora do Women’s Studies Research Center (KSAUM) e Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de Istanbul, autora de Being a Woman, Living and Writing (1992) e Woman and Religion (1998).
3No original: The following of… thematic designs through one’s life should be, I think, the true purpose of autobiography” (NABOKOV, apud JOYCE, 2004, p. 36).
4Trabalhamos em realidade a partir de três paratextos, o primeiro tendo sido a epígrafe de Nabokov, comentada anteriormente.
5No original: “I once had a husband who started obsessively painting squares – three squares in shifting relationships to each other on what appeared flat ground, colored emptiness. He explained to me that the negative space in his work was as important as the positive, that each took its form from the other. What interested him most was the tension between them. I remember being fascinated by his concept of negative space though negative seemed the wrong word for something that had so much presence.”
I was still young then, too young to look at my history and see how my life has shaped itself around absences – first by happenstance; ultimately, perhaps, by choice” (JOHNSON, 2004, p. 39).
6É importante lembrarmos que a obra é inteiramente ilustrada com fotos do arquivo da família de Joyce Johnson, num total de vinte e nove fotos.
 




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