Autor: José de Alencar
Título: Guerra dos Mascates
Idiomas: port
Tradutor:
Data: 28/12/2004
GUERRA DOS MASCATES
Capítulo I
A janelinha rebuçada do sótão da casa nova do Perereca
José de Alencar
A tarde do dia 1 de outubr
o de 1710 não teve coisa de maior.
Foi uma tarde como qualquer, em fazendo bom tempo. O sol tinha cara dos mais dias, aí pela volta das quatro horas que seriam então; nada mais, a não ser uma carapuça de algodão que lá as nuvens haviam encasquetado na cabeça do astro para guardá-lo de constipar-se com o relento.
E o mais é que assim encarapuçado, Febo, como ainda o chamavam então os poetas e os namorados, fazia a figura de um Xerxes trajado à moda do rei constitucional, de casaca e chapéu redondo.
O céu estava azul mais ou menos; o mar pelo mesmo teor; levanta-se a viração, e as árvores tinham o verde do costume, misturando com alguns ramos secos e fôlhas murchas. Também deviam de cantar pelos arredores alguns passarinhos; não falando das flôres que sem dúvida estrelavam o campo.
Agora, se era de cetim o manto do firmamento, e de safira a redoma do oceano, se as auras suspiravam amores nos seios das boninas, e arrulhavam saudades as rôlas melancólicas, enquanto as açucenas abriam as suas caçoulas cheias de perfumes, não sei eu: que não o diz a crônica.
Mas por isso não haja queixa. Tome cada um de sêdas, pedrarias, endechas, e fragrâncias, quanta porção queira, e vá enfeitando e arrebicando a minha descrição a seu gôsto. Eu cá prefiro a simplicidade, que é o mais cômodo de todos os estilos; basta ver que forra-se a gente ao trabalho de fantasiar, e deixar isso ao leitor.
Há nada como aquêle modo chão de principiar as histórias da carocha:- Foi um dia… E cada um que imagine o tal à sua feição, de inverno ou de verão, de outono a primavera, como lhe saiba melhor.
Pois era uma tarde… e a janela do sótão, na casa do Perereca, abria manso e manso fazendo uma festa, onde se mostrou a mêdo a ponta arrebitada do mais lindo narizinho retorcido de que há notícia desde Aglaia, a qual o tinha de primor, valha a fábula, como a graça que era do chiste e da malícia, donde veio chamarem-na os gregos de esplêndida.
Agora vejo que não se conhece ainda a casa, nem o lugar em que estava situada, sem falar de outras particularidades, que não deixam de ser curiosas, com especialidade o dono; pois, e não digo novidade, se em geral os prédios são coisa de seu proprietário, também donos há que são acessórios de sua casa.
Estamos em Recife.
Andando a rua da Praia dos Coqueiros, no bairro de Santo Antônio, quem ia naquele tempo do Colégio para as bandas das Cinco Pontas, quase a meio do caminho encontrava um vasto edifício que ficava fronteiro à barra; ainda a rua da Maré com sua casaria não se tinha prolongado até aquêle ponto da ribeira.
Larga e baixa, a casa terreira acaçapava-se entre o arvoredo do quintal que a beirava de um e outro lado; mas dava logo nas vistas pela especialidade da pintura extravagante com que a haviam lambuzado, pois outra qualificação não quadraria à incrível borradela.
Tinha cerca de quatro anos o edifício. Acabada nêle a obra de pedreiro e carapina, quando se teve de passar ao artigo pintura, vieram as tribulações para o dono, o digno Sr. Simão Ribas, mascate de pêso e marca entre os principais do Recife.
Não sei se já aí por essa monarquia doméstica tinham inventado o govêrno pessoal, e usavam as calças responsáveis meterem-se por baixo da saia inviolável. Cá, no meu alfarrábio, só vejo que houve muita resinga e alteração, acabando o batibarba ou questão de alcova, como de costume, com o triunfo completo da trunfa, que era então, como o coque é hoje, a coroa doméstica.
Sabidas as contas, decidira a Sra. Rufina Ribas que a fachada fôsse de uma côr farfante e para ver-se a léguas, lá do alto mar. Antes de surdir o navio pelo Lameirão, a dentro, queria a respeitável matrona que sua casa entrasse pelas vistas da gente que vinha da santa terrinha.
Nem por sombras ocorreu ao marido a idéia de opor-se à vontade de sua dona. Era um marido constitucional o Sr. Simão Ribas; e não há aí ministro cortesão, a que êle não levasse as lampas na arte insigne de fundir-se, como cêra, em figurinhas moldadas ao capricho mulheril. Não foram, pois assomos da resistência que perturbaram a paz doméstica; ao inverso, proveio tudo de excessos de zêlo e obediência.
Chamado a conselho o exímio borrador a fim de dar alvitre sôbre o caso, foi de voto que não havia como o zarcão, para fazer o gôsto à Sra. Rufina. Dito e feito: no dia seguinte amanheceu a parede assanhada com uma crosta do mais coruscante vermelho.
Muito ancho de si, o digno mascate já se regozijava ao agrado da querida metade, quando lhe veio ela deitar água na fervura. Esguelhando à parede um olhar impertinente, espevitou o nariz, torceu o beiço, e deu um muxôxo, que eriçou os cabelos ao marido.
Barulho no caso; nôvo apêlo ao borrador que guisou a combinação do verdete com o zarcão; e assim, de resinga em resinga, chegou-se àquele espalhafato de tôdas as côres, onde o azul brigava com o encarnado, o verde com o vermelho, e o roxo-terra com o amarelo oca. Era coisa indescritível, que o prospecto de algumas tabernas de hoje ainda não conseguiu imitar.
Nos primeiros dias estêve a casa de mostra aos basbaques e pascácios, que por lá iam, para se pasmarem diante daquela maravilha. Por um mês não se falou no Recife doutra coisa; até que um dia apareceu lá pela manhã escrito a carvão, na frente, êste dístico maligno- Perereca.
Lavou-se da parede a tisna, mas a alcunha ficou aí fisgada à casa, como se a tivessem gravado em bronze, Fôra o brejeiro de um rapaz que, voltando à ave-maria da escola e ouvindo cantar a rã numa touça de bananeiras, lembrou-se da semelhança que tinha com a frente da casa, e escreveu-lhe o nome na parede. Ao outro dia, antes que apagassem as letras, sucedeu passarem aí um frade, uma comadre e um soldado. Leu o franciscano em voz alta, se julgando a sós, e riu-se; ouviram-no os dois e atinaram com a graça.
Tanto bastou para que ao meio-dia se soubesse em todo o Recife do acontecimento; e, pelo plebiscito do motejo unânime, a casa sarapintada ficou sendo conhecida pelo nome expressivo de Casa do Perereca.
Cobria o edifício um telhado de altas abas e alto cocuruto, que lançava em cada quina uma ponta de barro com pretensões a figura de marreca. Nas duas faces laterais erguiam-se as águas furtadas do sótão, que rasgava duas janelas, uma para cada banda.
Na janela da direita, que durante o dia estava aberta sempre, de costume estendiam um cordel passado de uma à outra ombreira certa de chita de ramagens, que ao sôpro do vento desfraldava-se à guisa de estandarte. Quem tinha a dita de conhecer a Sra. Rufina Ribas, acertando de passar por aquêles sítios e dando com o espantalho da tal coberta, adivinhava logo que era da garrida matrona essa janela.
Tinha outro ar e outros modos a janela da esquerda. Começava logo por uma latada que lhe haviam armado em volta, e lhe servia como capuz, com ramadas do maracujázeiro entrelaçadas pelos escaques do caramanchel. Dava-lhe isso, à tal janelinha, uns biocos de freira, mas de freira môça e bonita, que lá do remanso do claustro enfia pela grade uma olhadela curiosa e ávida do burburinho do mundo.
Outra diferença vinha de estarem as adufas da direita sempre cerradas, em horas soalheiras; nisso pareciam-se com o cálice de certas flôres e com os cílios da juriti, que fecham-se pela muita luz e só abrem ao doce toque do crepúsculo. Todavia não eram elas tão recatadas do sol, que não se descerrassem lá uma ou outra vez, na calma do dia, sobretudo aos domingos, para deixar que entrasse algum raio fagueiro pela câmara do sótão.
No estreito eirado, rente com o peitoral, havia três vasos de barro onde cresciam várias plantas. A mão que reunira aí o alvo bogarim, a rubra cravina, o goivo amarelo e os bagos escarlates da pimenta êsse conjunto singular lhe estava denunciado a travessura. Se é verdade, e eu creio, que a alma imprime nos objetos que a cercam a sua própria feição, podia-se ver naquele grupo de plantas o enigma de um oração.
Não seria o alvo bogarim o reflexo da candidez, como as pétalas da cravina a imagem dos vivos rubores de uma petulante castidade? O goivo, ali na mansão da juventude, não exprimia a descuidosa alegria, que orvalha de risos até as horas aziagas? E naqueles bagos vermelhos e brilhantes de pimenta, não havia quiçá o emblema das unhas de nácar habituadas a insinuar no afago o belisco traiçoeiro?
Afinal de contas, quem sabe se apesar de tôdas as suas mostras encantadoras não estava a tal sonsa da janelinha enganando a gente quem passava, como certas môças do tempo de hoje, cujo fraco é porem-se às avessas; quero eu dizer, e sem malícia, que se empenham com todas as fôrças para fazerem-se outras, das que criou a natureza.
Assim tosquia-se, para fazer cachos, aquela que Deus ornou com a túnica mais bela, que é uma soberba madeixa. Se não a possuísse, havia de esmagar a cabeça com uma trouxa enorme de cabelos postiços. Estufa-se a magra com enchimentos para simular contornos, como a gorda se espartilha e acocha para figurar de esbelta. E nesse teor, enganando-se a si e aos outros, vai o mundo a rolar como uma bola que é, levantando êstes e abaixando aquêles, mas por fim esmoendo a todos.
Eis porque não seria caso de espantar, se naquela janelinha tão louçã viesse a aparecer uma velha encarquilhada, descobrindo-se afinal que o nosso narizinho retorcido não respeitável par de óculos de tartaruga.
Tudo pode ser.
Fonte: Alencar, José de. Guerra dos Mascates. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1969.