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Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





MISOGINIA E ABUSO: O GRITO DA MULHER EM YO NO SOY BONITA – Ricardo Augusto de Lima




 

Ricardo Augusto de Lima

Doutorando em Letras – Estudos Literários, UEL

 
Resumo: Angélica Liddell (1966) é hoje um dos nomes mais conhecidos do teatro espanhol e europeu. Suas performances, sempre carregadas de um tom violento e autobiográfico, dão ênfase à misoginia e ao machismo. A partir da peça Yo no soy bonita (2004), pretendo evidenciar como a violência no espetáculo narrada e o tom confessional se somam para criar um grito que denuncia a violência contra a mulher e contra a criança-menina.
 
Palavras-chave: Angélica Liddell; Dramaturgia; Teatro autoficcional; misoginia.
Resúmen: Angélica Liddell (1966) es hoy uno de los nombres más conocidos del teatro español y europeo. Sus actuaciones, siempre cargadas con un tono violento y autobiográfico, dan énfasis a la misoginia y al machismo. A partir del espectáculo Yo no soy bonita (2004), pretendo mostrar cómo la violencia en el espectáculo narrada y el tono confesional se suman para crear un grito denunciante de la violencia contra las mujeres y las niñas.
 
Palabras-clave: Angélica Liddell; Dramaturgia; Teatro autoficcional; misoginia.
 
Minicurrículo: Ricardo Augusto de Lima é bacharel em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina, onde defendeu a dissertação de mestrado intitulada Estas três paredes do meu apartamento: intertexto, ruptura da ilusão e autoficção como recursos metateatrais em O Homem e a Mancha, de Caio Fernando Abreu. É doutorando também na UEL em Letras, com pesquisa na área de autoficção, dramaturgia, escritas de si e metateatro. Mantém, com o nome de Ricardo Dalai, o blog Reticências.
 
 
MISOGINIA E ABUSO: O GRITO DA MULHER EM YO NO SOY BONITA
 
Ricardo Augusto de Lima
Doutorando em Letras – Estudos Literários, UEL
 
 
“Porque há o direito ao grito. Então eu grito”
(Clarice Lispector, em A hora da estrela)
 
Fredric Jameson (1996), ao analisar o conceito de “expressão” a partir do quatro O Grito, de Munch, afirma que existe uma separação entre sujeito interior e exterior e as emoções de cada um: da dor sem palavras do sujeito interior ao momento em que a “emoção é então projetada e externalizada, como um gesto ou grito, um ato desesperado de comunicação, a dramatização exterior de um sentimento interior” (JAMESON, 1996, p. 39, grifo nosso). Na peça Yo no soy bonita (2004), Angélica Liddell finaliza uma confissão com um grito um pouco abafado, mas, ainda assim, um grito: “Y aquella noche vomité” (LIDDELL, 2008, p. 22). Por meio de um discurso confessional e autoficcional, a dramaturga catalã atinge o espectador com o que há de mais violento na relação homem-mulher. Nascida em 1966, em Figueras, Espanha, Angélica nasceu Angélica González, mas assumiu o sobrenome Liddell em homenagem a Alice Liddell, menina que inspirou aquela Alice que cai na toca do coelho. Filha única de pai militar, escrevia pequenas histórias (geralmente trágicas e cheias de personagens) para fugir da solidão e da austeridade do ambiente militar.
Em 1993, fundou, com o amigo Gumersindo Puche, a Companhia de Teatro Atra Bilis. Em 2010, participou pela primeira vez do Festival de Avignon com a peça El año de Ricardo. Hoje, é um dos principais nomes do teatro espanhol e mundial, tendo recebido inúmeros prêmios, dentre os quais o Prêmio Nacional de Literatura Dramática, em 2012, com a obra La casa de la fuerza, e foi a primeira mulher a receber o Leão de Prata da Bienal de Teatro de Veneza, em 2013,
 
Per la sua capacità di tradurre l’arte performativa sulle scene teatrali. Per il suo teatro di resistenza. Per la qualità della sua scrittura, capace di trasformare i suoi testi in poesia che grida al mondo e alla sua stessa anima. Per il suo impegno come interprete e attrice. Per aver cancellato la linea divisoria tra diversi generi e stili d’arte, facendo sì che la miscela di parole, immagini, suoni, musica, gioco, il drammatico, il divertente e il tragico compongano un tutto. Per essere una delle artiste europee della sua generazione che ha avuto la maggiore diffusione nel mondo delle arti sceniche. Per la sua denuncia e l’attenzione continua alle debolezze dell’essere umano. Per la continua ricerca di comunicazione con il pubblico e per la ricerca della conoscenza di nuove culture e forme (LA BIENNALE, 2013, n.p.).
 
Suas peças, que escapam de toda dramaturgia convencional, sempre carregam um grito estridente e um tom memorialístico, no qual se recria o passado em cena, presentificando-o. Seu objetivo é evidenciar o podre, como uma poética do negativo ou, ainda, uma poética do mal, como fazia Jean Genet. Desta forma, temas como sexo, poder, loucura, morte, violência e estupro são recorrentes no cruzamento entre mitos clássicos (Édipo, Antígona, Medeia…) e mitos modernos.
A voz de Liddell surge em um momento no qual, segundo Maria Pilar Espín Templado (2011), se percebe a importância da mulher no mundo teatral não como atriz, mas como dramaturga, diretora e produtora, mundo este dominado, até a segunda metade do século XX, pelos homens. E a autora se pergunta:
 
¿Qué temas llevan a escena las dramaturgas españolas de las dos últimas décadas del siglo XX? ¿Dejan memoria de la sociedad actual, recrean su autobiografía, plantean un teatro comprometido o reivindicativo? ¿Podemos acaso hablar de denuncia y compromiso social en la dramaturgia femenina de finales de siglo XX? ¿Podríamos considerar el teatro de las dramaturgas actuales como testimonio de la desigualdad de género, como un teatro feminista? Y en definitiva: ¿marcan una dramaturgia diferente respecto de los autores masculinos de su generación? (TEMPLADO, 2011, p. 45-46).
 
 
O cenário no qual Angélica Liddell entra possui até então poucos nomes de destaque (Lidia Falcón, Carmen Resino, M. José Ragué-Arias, Lourdes Ortiz e Concha Romero são alguns deles). Essas mulheres abrem caminho no meio do contexto ditatorial franquista e encabeçam o boom da presença feminina na dramaturgia em meados da década de 1980 (TEMPLADO, 2011, p. 47).
A autora afirma que existem várias motivações na escrita dramática feminina, que vão desde sistematizar estudos e marcar presença feminina em festivais até, no caso de Liddell, de “una necesidad interior de algo revulsivo”.
 
(…) Cuando estas autoras optan por temas de carácter metafísico, político o social de amplio significado, su talante femenino en ocasiones se diluye en lo general de los planteamientos o por el contrario se inicia una corriente de ruptura política, caso de Angélica Liddell, cuya obra desarrolla un nuevo teatro político paralelo al de Rodrigo García, cuya marca más característica siempre ha sido la provocación (TEMPLADO, 2011, p. 49).
 
 
De uma maneira geral, os trabalhos dessas dramaturgas trazem uma temática ligada com a realidade e comprometida com ela, seja a realidade política, a social ou a individual, que se amplia no palco para atingir e englobar outras esferas. Não se trata, pois, do tradicional realismo teatral, ou seja, de um teatro que se esforça em imitar o real na fala, gestos e tipos de personagens a fim de evidenciar que aquela ação poderia acontecer na vida. Ao contrário, “su escritura surge para contestar a problemas del género humano y de la historia contemporánea como trama que explica la historia pública reciente” (TEMPLADO, 2011, p. 50).
Percebeu-se, desde a primeira aparição de Liddell, um diferencial na escrita dramática feminina em Espanha, assim como toda literatura dita “de minorias”. Anna Caballé, professora do Departamento de Filologia Espanhola da Universitat de Barcelona, afirma que, no caso da escritura autobiográfica, ou de cunho autobiográfico (autoficções, diários, cartas, ensaios, romances autobiográficos, peças de teatro, poemas etc.), parece ser evidente a diferença em relação ao cânone masculino, pois as escritoras não se inspiram nos moldes estabelecidos por ele. Segundo Caballé (2001), a aurorrepresentação feminina não é enfática como a dos homens, que querem reivindicar o conceito de sujeito e seu destino histórico. As mulheres tendem a se concentrar em um relato mais detalhado “de acontecimientos o situaciones vitales que han dejado una huella indeleble, una cicatriz. La autobiografía como un punto de salida antes que de llegada, una búsqueda moral, una interrogación a tumba abierta” (CABALLÉ, 2001, p. 6).
Ainda que se afirme, constantemente, a impossibilidade de um drama autobiográfico, José García Barrientos (2014) distingue alguns temas para uma nova modalidade teatral que cresce na contemporaneidade, o chamado “teatro do eu”: um interesse propriamente teatral; um interesse testemunhal, seja sobre a enfermidade, o sexo, a violência política ou de vítimas dos regimes militares latino-americanos; ou um interesse de identidade, do tipo sexual, social, étnico, cultural etc. “Todos los casos coinciden en utilizar lo autobiográfico para hablar de otra cosa, más general, que nos atañe a todos, y de la que el actor es solo un ejemplo” (BARRIENTOS, 2014, p. 134).
Por outro lado, enquanto a autobiografia teatral se apresenta como gênero impossível, a autoficção cênica (ou teatro autoficcional) se evidencia como tendência contemporânea nas Artes Dramáticas em peças que, evocando o passado, mesclam no espaço cênico (ambíguo por excelência) ficção e autobiografia, criando um discurso híbrido e metateatral. Assim, vamos recusar o conceito de teatro autobiográfico para aplicar este, mais maleável, de teatro autoficcional, visto que o espaço teatral e a figura do ator são, concomitantemente, espaço e corpo reais e ficcionais, promovendo um estar-não-estando, justificando por si só que o teatro é, desde sempre, mescla de ficção e real. Em outras palavras, arte ambígua cujo primeiro-motor é justamente a sobreposição das camadas de real e ficcional, ou seja, autoficcional. Desta forma, se anula completamente a necessidade autobiográfica da verdade.
Templado (2011, p. 52) afirma que três temas estão presentes na obra dramatúrgica feminina produzida desde o final do século XX: memória, compromisso e autoficção. Apesar das peças de Angélica tratarem da memória e, consequentemente, da autoficção, o conceito de compromisso nos interessa mais nesse momento, pois podemos entendê-lo de uma forma mais ampla: por compromisso, Templado entende
 
(…) no sólo el teatro escrito desde una actitud abiertamente comprometida como puede ser la de un teatro feminista, sino también como denuncia de una sociedad muy distante en la consecución de los derechos y de la igualdad de género, en este caso de las mujeres, sin que sus autoras estén afiliadas explícitamente a ningún credo concreto (TEMPLADO, 2011, p. 50).
 
 
Angélica Liddell não se liga a nenhum movimento e não se crê uma autora feminista. Não apenas ela, mas outras dramaturgas são reticentes em se ligar a algum movimento feminista, “seguramente por temos a perder oportunidades si se limitaban al gueto feminista” (TEMPLADO, 2011, p. 51).
Por outro lado, a geração de dramaturgas que iniciaram sua escritura dramática na década de 1980 apresenta traços de uma luta pelos direitos da mulher e, segundo Leonard & Gabriele (1996, p. 50),
 
Es la primera generación que asume de una manera totalmente integrada conceptos como el aborto, la separación, el uso de anticonceptivos, la libertad sexual, la homosexualidad masculina y femenina, la integración de la mujer en el trabajo, la presencia mayoritaria de la mujer en la universidad… etc. Y el arte es un espacio donde se refleja esa presencia siempre más evidente del elemento femenino.
 
 
Algumas delas, como Lidia Falcón, nascida em 1936, são não apenas escritoras, mas também advogadas e militantes. Falcón, por exemplo, funda o primeiro Partido Feminista Espanhol, em 1979, e participa ativamente das Primeiras Jornadas Catalanas de la Dona, em Barcelona, em 1976.
As peças de Angélica Liddell apresentam, também elas, esses três temas, mesmo que a dramaturga não esteja vinculada a nenhum partido ou movimento feminista. Ela trabalha abertamente com material autobiográfico, evocando sua infância, a relação entre pais e filhos, a maternidade e, sobretudo, a posição das mulheres na sociedade diante dos homens. Suas peças são, antes de tudo, um manifesto feminino ao mesmo tempo em que trabalham com questões sexuais traumáticas, pois, como ela afirma em uma de suas peças, “mi cuerpo es mi protesta contra mi generación” (LIDDELL, 2008, p. 9). Assim, podemos chamar seu teatro de autoficcional, pois temos um espaço exclusivamente ficcional, o palco. Entretanto, Angélica, em cena, não é apenas Angélica González, mas é também um ícone, um signo teatral, uma personagem. Ao mesmo tempo, evoca a todo momento a menina de nove anos que foi e que vomitou no final de um dia que parecia comum. Dessa forma, a menina Angélica, a atriz Angélica e a personagem Angélica se convertem em uma persona totalmente nova, inédita, incapaz de existir fora daquele espaço e daquele tempo da cena, mas também incapaz de ser uma ou outra coisa, apenas. Persona híbrida, participante de uma cena também híbrida e ambígua.
A obra Yo no soy bonita trata da natureza monstruosa e animal do homem. Nela, a dramaturga, que também é atriz e diretora, leva um cavalo para o palco, cuja presença é claramente gótica e metafórica: ele representa o homem, o falo gigante que quer penetrar a mulher sem importar-se com seu tamanho, sem razão, só instinto, só desejo.
Originalmente criada em 2004, é a terceira parte da Trilogia da Desobediência, composta por três “confissões”: Lesiones incompatibles com la vida (2003) e Broken Blossomns – Lírios partidos (2004). Angélica não enxerga seus espetáculos como peças convencionais, e não o são realmente. Ela os chama de “acciones/ações”, que recusam o formato de ação dramática com começo, meio e fim para expor uma situação-chave, central, e a partir dela conduzir o público à reflexão. São textos curtos, que se modificam em cada espetáculo de acordo com a performance de Liddell.
Yo no soy bonita tem como situação-chave a violência: um abuso sexual ocorrido na infância de Angélica por parte de um soldado que a ajuda a subir em um cavalo. A ferida, não (e talvez jamais) cicatrizada, é exposta de várias maneiras. Usando a 1ª pessoa do singular, Angélica conta sua infância sempre buscando a duplicidade: fazer da sua infância a infância de todos.
A primeira frase da ação já denota o medo feminino e a recusa de ser aquilo que a sociedade ordena que a mulher seja: “Yo no soy bonita ni lo quiero ser” (LIDDELL, 2008, p. 19). Entretanto, por não fazer parte da tradicional dramaturgia, o texto é curto (embora as encenações de Yo no soy bonita preencherem, em média, uma hora). Assim, a atriz altera o texto de uma encenação para outra. Um exemplo, em um espetáculo de 2008, disponível no YouTube, a atriz começa: “Yo tengo cuarenta y dos años”, depois de entrar, caminhar pelo palco, acariciar o cavalo, beber uma garrafa dentre as tantas que estão no palco de cerveja e arrotar. Assim, se prender somente ao texto dramático e/ou à encenação pode ser um descuido levando em conta a alta presença da performance espontânea de Liddell em cena. Nela, texto e cena se completam em uma difícil (ou impossível) separação.
Essa performance nasce do oferecimento do seu corpo como objeto de questionamento. A mulher que tem domínio sobre seu corpo e faz dele o que bem entender. Assim, como seu corpo é seu protesto, ela o castiga de diferentes maneiras como uma forma de desobediência, cujo sofrimento gera uma poética da dor e da violência contra a misoginia. Para tanto, o tom confessional/autobiográfico é necessário, pois assim a atriz descontrói qualquer possibilidade de engano e de ambiguidade.
A performatividade se manifesta de várias maneiras. Por exemplo, ela inicia o espetáculo com seis garrafas de cerveja no palco, que serão, todas elas, consumidas até o final da peça. Assim, ela atua enquanto o álcool produz efeito sobre seu corpo, embaralhando seus sentidos, tornando-a um ser mais próximo ao cavalo que está ao lado, e com quem ela interage em vários momentos. O animal, irracional, possui uma “atuação” incerta, instintiva, não previsível.
Em outro momento, inicia uma série de autoflagelação. Ela corta, com uma pequena navalha, suas pernas, criando um pequeno quadro barroco: o sangue vermelho escorrendo pela pele clara. Depois, enxuga o sangue com um pedaço de pão para comê-lo logo em seguida. Assim, o sangue regressa ao corpo, movimento inverso à menstruação.
Ou ainda quando ela, já embriagada pela cerveja, ferve um pouco de leite e mergulha sua mão no líquido fervente. O leite, signo duplo de maternidade e esperma, a fere, causando repulsa e relembrando a frase que a atriz inclui em vários espetáculos: “No quiero tener hijos” – que surge como outro protesto em relação à sociedade: ela, mulher, se recusa a ser mãe, papel muitas vezes imposto para a figura feminina em uma sociedade patriarcal. Uma vez bêbada e vestida como bufão, a atriz se aproxima de uma figura grotesca e animal a fim de provocar indignação do espectador. Não quer a beleza da arte e sua contemplação estética. Angélica busca, como já foi afirmado, a poética do mal, do cruel, da desobediência.
Dessa maneira, a atriz inverte os papéis e se inclui em outro nível de representação, acentuando sua vida e seu corpo no espaço ficcional do teatro. O corpo também é palco. O corpo também é texto.
Por exemplo, ao iniciar um diálogo com “el barquero”, Angélica suplica: “No me mates, por favor, no me mates./ ¿Qué le voy a hacer?/ Es un miedo de nacimiento./ Como una marca./ Un privilegio inverso (…). Mira, hacemos una cosa. Primero abusas de mí. Para eso estamos las niñas.” (LIDDELL, 2008, p.  21). Suplica tudo enquanto sua mão direita está entre suas pernas, tocando sua vagina, e fotografias de sua infância são projetadas em um telão. Nesse pequeno trecho podemos perceber que o barqueiro (isto é, o homem) oprime a figura feminina a ponto de ela nascer com medo de morrer e de ser usada. Ser mulher é, então, uma marca, “um privilégio inverso”, pois tal privilégio só dá direito à morte e ao uso por parte do outro: “primero abusas de mí. Para eso estamos las niñas”.
Essas imagens e esse texto introduzem o trecho, talvez, mais importante da peça, que a dramaturga denomina “Confesión”:
 
Éramos tres niñas. Teníamos 9 años. Obtenemos el permiso de nuestros padres para visitar las cuadras. Era normal. Frecuente. Los niños y las niñas podíamos visitar las cuadras cuando quisiéramos. Estaban al lado de nuestras casas. Eran las cuadras del cuartel. Vivíamos entre militares y caballos. Aquel día un soldado nos acompañó durante la visita. El soldado preguntó: “¿Queréis subir a algún caballo?” Nosotras contestamos: “Sí, a ése.” Era el caballo más bonito de la cuadra. El soldado aprovechó la situación. Empezó a sudar. Su cara se volvió roja. Soy la primera en subir. Para subirme al caballo el soldado me agarra de una forma extraña. Pone su mano gigantesca bajo mi sexo diminuto mientras me levanta en el aire. Intenta apartarme las bragas. Utiliza sus dedos para separar los labios de mi vulva. Aprieta. Duele. Mantiene su mano entre mis nalgas y el lomo del caballo. Mueve los dedos como gusanos. Noto sus uñas. El soldado aprieta con un solo dedo. Le digo que quiero bajar. El soldado aguanta un poco más. Se ríe. Aprieta mi vagina un poco más. Por fin el soldado me baja del caballo. Se pasa la mano por la nariz. Se huele los dedos. Sube a las otras niñas. Recuerdo la vergüenza. Teníamos 9 años. Cuando salimos de las cuadras estábamos serias. Calladas. De repente una dice: “¿A vosotras os ha hecho algo?” Yo digo que no. Me da vergüenza decir que sí. No. No. La otra dice que el soldado le ha hecho daño ahí abajo. Yo digo que no. A mí no me ha hecho nada. Me da vergüenza decir que sí. Nada. No sé. A mí no me ha hecho nada. Me encontraba mal. No se lo conté a nadie. Me marché a casa. Y aquella noche vomité. Y aquella noche vomité. Y aquella noche vomité (LIDDELL, 2008, p.  21-2).
 
 
O trecho deixa claro, devido à riqueza de detalhes (o suor do soldado, suas falas, sua mão gigantesca, o sexo pequeno, os dedos, os lábios, a dor, as unhas, a vontade de parar, o riso do soldado, sua força, o ato de cheirar os dedos, a vergonha sentida, o silêncio, o vômito), a lembrança do acontecimento, presentificando e, assim, tornando-o parte do aqui-agora de cena. Nesse ponto, a presença do cavalo vivo em cena corrobora para a presentificação do ato, que “coroa” uma série de infortúnios que Angélica teria sofrido ao longo de sua vida por ser mulher e por ser criança, “una niña”. A memória, embora de um tempo distante, parece estar viva, revelando toda uma infância sendo palco para abusos, como quando ela nos relata que um amigo da família comentou a seu pai que sua filha era uma “puta”. Tais relatos servem para situar a origem da violência contra a mulher, e não apenas a mulher-Angélica, mas todas as mulheres, pois, ao falar de si mesma, a atriz evidencia todo um sistema social patriarcal e misógino. Seu espetáculo surge, então, como uma forma de estabelecer um canal comunicativo entre a dificuldade de ser e de defender uma menina/mulher na sociedade patriarcal.
Nesse momento sua desobediência é necessária: ferir o próprio corpo como protesto à violência real, fora da cena, causada não por si mesma, mas por outro que se acha mais poderoso. Sua desobediência, por fim, pretende acabar com aquela vergonha sentida aos nove anos, que a fez calar. No aqui e agora do palco, a mulher não se cala e tampouco permanece inerte diante do abuso. A atriz se coloca como figura dupla, fiel e oferenda, faca e sacrifício. Ela é ao mesmo tempo aquele que oferece o sacrifício e a própria oferta, pois “en el tiempo de las muertes colectivas es necesario el sacrificio individual como rebeldía o barricada. El arte, sacrificio íntimo en un espacio público, es nuestra rebeldía. Gracias al sacrificio poético recuperamos la identidad que perdemos en el masacre” (LIDDELL, 2014, p. 99). Dessa rebeldia nasce a necessidade da autobiografia. O eu surge então não como narcisismo, mas como desejo: “Con el sacrificio queremos decir YO” (LIDDELL, 2014, p. 99).
Esse desejo de dizer “EU nasce do desejo de atestação de si, como escreveu Ricoeur (1990, p. 34-5): “L’attestation est fondamentalement attestation de soi. Cette confiance sera tour à tour confiance dans le pouvoir de dire, dans le pouvoir de faire, dans le pouvoir de se reconnaître personnage de récit, dans le pouvoir enfin de répondre à l’accusation par l’accusatif: me voici!” (RICOEUR, 1990, p. 34-5).
Nesse sentido, Angélica resgata suas memórias para converte-las em elementos estéticos dentro de sua poética dramática. A cenografia, que ela também assina em Yo no soy bonita, reafirma isso: uma vez diante do palco, o espectador é afetado pela pintura viva na qual ele é convertido.
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Pela imagem anterior podemos verificar que os elementos e objetos cênicos aproveitam o espaço horizontal do palco. Da esquerda para a direita, temos: uma pilha de colchoes, quadros, uma cadeira, as garrafas de cerveja, uma pequena mesa com um fogão elétrico, um coelho empanado e o cavalo branco. Assim, a proposta da cenografia é uma primeira comunicação visual com o espectador, que entra na sala e já percebe os elementos do palco. A importância da cenografia e do figurino se mostra também no fato de Angélica ser responsável por isso na maioria de suas peças. Ela escreve:
 
El espacio escénico debe ser también un espacio de tensión, debe ser despojado del concepto escenográfico-decorativo tradicional, más cercano del ornamento y el mobiliario que de lo realmente expresivo. El espacio escénico se despoja, pues, del diseño, esa trampa o mentira estética, para convertirse en un espacio de tensión moral. Los objetos, fuera de un espacio de tensión, son superficiales, artificiales e inertes, pero en el espacio escénico son las acciones las que dotan al objeto de culpabilidad y responsabilidad. Cuando el objeto y la acción se unen desaparecen el uno y el otro para dejar paso al sentido, es decir, al lenguaje. Se ha creado lenguaje. Nuestra misión es fabricar sentido dándole así la oportunidad a la revelación, haciendo visible lo invisible. Los objetos, enfrentados al espacio escénico, constituyen la anatomía física de la revelación. (…) (LIDDELL, 2014, p. 46).
 
A tentativa de representação autobiográfica aqui reforça a tensão em cena. Para Janaína Leite (2014, p. 86), dramaturga e pesquisadora brasileira influenciada pelo trabalho de Liddell, a ideia do tom confessional aqui nada mais é que “a tentativa de figurar a experiência vivida, sentida, sofrida”, mantendo assim “a tensão com o referencial real que a motivou”. O espaço de tensão, próprio do teatro, é reforçado pelo eu que o personagem diz, eu que é imediatamente reconhecido pelo espectador.
Essa tensão é reforçada pelo palco feito pintura viva, visto que ele aproxima o espectador do contexto em questão, criando aquilo que Boileau chamou de “ilusão referencial”. Em outras palavras, existe uma experiência da qual se pode falar, se deve falar (LEITE, 2014, p. 87).
Janaína Leite afirma que esse movimento de falar sobre si localiza a história passada do sujeito no palco, ao mesmo tempo que re-sente a ferida:
 
A história pessoal se abre para a experiência das mulheres em sua condição de oprimidas, mas retorna, na performatividade da cena, sempre para ela mesmo já que a artista cria uma cena de autoflagelo (…). É através da história localizada e re-sentida naquele corpo particular, naquela mulher que se encontra diante de nós, é que podemos viver a experiência, não de uma peça de denúncia como tanta as que existem sobre mulheres, mas de uma obra na qual nos tornamos testemunhas de um crime sofrido e para o qual não poderemos ficar indiferentes. A narrativa autobiográfica se atualiza de forma assustadora diante de nossos olhos a partir da performance de Liddell, frente à qual não há como nos posicionarmos como se fôssemos espectadores confortavelmente sentados diante de uma representação, nos colocando como testemunhas diante de um acontecimento (LEITE, 2014, p. 90).
 
 
O uso de temas autobiográficos em Angélica Liddell reforça o objetivo do seu teatro: falar da parte tóxica do homem (LIDDELL, 2014, p. 124). Entretanto, isso não quer dizer que seu teatro busque a purificação. Segundo a própria dramaturga, seu teatro busca o reconhecimento, uma união de sensibilidades, uma epifania individual diante de um acontecimento, pois o “teatro responde al concepto de sacrificio, pero no para purificarnos, sino para gozar de las tinieblas” (LIDDELL, 2014, p. 125). Desta forma, ao resgatar suas memórias e traumas, a dramaturga busca atingir o mais sensível de seus espectadores e da natureza humana em geral. Como toda arte de provocação, esse tipo de experiência artística deseja atingir o mais profundo da empatia. Enquanto muitos entendem a provocação como choque, o texto e a cena de Liddell buscam um olhar mais atento para uma experiência pessoal para que essa se converta em um reconhecimento cultural, político e social. Rompe-se os limites da cena para se aprofundar nos sentidos da miséria humana.
Uma vez mesclando vida e arte nessa proposta, se intensifica a tensão dramática e quebra-se a quarta parede teatral, isto é, a separação entre palco e público, criando uma cena metadramática capaz de produzir uma nova espécie de catarse: aquela que nasce da dúvida e do jogo entre real e ficcional e que questiona as noções de verdade, memória, passado, presente e teatro.
 
BIBLIOGRAFIA:
ALMELA, Margarita et al. (2011). “Prólogo”. In: ALMELA, Margarita et al. Ecos de la memoria. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia. p. 3-4.
BARRIENTOS, José-Luís García (2014). “Paradojas de la autoficción dramática”. In: CASAS, Ana. (Ed.), El yo fabulado. Nuevas aproximaciones críticas a la autoficción. Madrid: Iberoamericana. pp.  127-146.
CABALLÉ, Anna (2001). “Seguir el hilo”. ABC Cultural, 20 jun. 2001. p.  4.
JAMESON, Fredric (1996). Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática.
LA BIENNALE. (2013) “Angélica Liddell Leone d’argento per il Teatro”. Disponível em: <http://www.labiennale.org/it/teatro/archivio/festival-42/liddell.html?back=true>. Acesso em: 20 fev. 2016.
LEITE, Janaina Fontes (2014). Autoescrituras performativas: do diário à cena. As teorias do autobiográfico como suporte para a reflexão sobre a cena contemporânea. Tese. Universidade de São Paulo.
LEONARD, Candyce; GABRIELE, John. P. (1996).  Panorámica del teatro español actual. Madrid: Fundamentos.
LIDDELL, Angélica (2008). La desobediencia, hágase en mi vientre. Pliegos de Teatro y danza n. 26. Madrid: Aflera Producciones SL.
LIDDELL, Angélica (2014). El sacrificio como acto poético. Madrid: Editorial Continta Me Tienes, colección Escénicas.
RICOEUR, Paul (1990). Soi-même comme un autre. Editions du Seuil.
TEMPLADO, M. Pilar Espín (2011). “El teatro de denuncia social: un compromiso en las dramaturgas españolas de finales del siglo XX (1980-2000)”. In: ALMELA, Margarita et al. Ecos de la memoria. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia. p. 45-64.




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