LITCULT

Revista LitCult
ISSN 1808-5016
Revista Mulheres e Literatura
ISSN 1808-5024





NOVAS CARTAS E DEPOIS: AINDA CONTRA A PERIFERIA DO FEMININO – Tatiana Pequeno da Silva




 

Tatiana Pequeno da Silva

Universidade Federal Fluminense

 
 
RESUMO: O objetivo do presente trabalho é discutir e problematizar a produção poética de mulheres a partir de um recorte que leva em consideração as literaturas de língua portuguesa numa perspectiva comparada. Com efeito, pretende-se trazer à leitura a poesia de duas autoras tanto brasileiras (Mônica Menezes e Rita Santana) quanto portuguesas (Maria Sousa e Margarida Vale de Gato) e ainda as vozes de Paula Tavares e Odete Semedo como eco de muitas Áfricas representáveis. Para tanto, serão utilizados materiais teóricos que (re)pensem o feminino e a ideia de menoridade literária enquanto temática e autoria, a partir do que propõem Deleuze & Guattari em Kafka: para uma literatura menor e  Gayatri Spivak em Pode o subalterno falar?, dentre outros.
 
PALAVRAS-CHAVE: gênero; Literaturas de língua portuguesa; literaturas africanas, literatura brasileira.
 
 
ABSTRACT: This text intends to discuss and to question the poetic production of women in Portuguese literature from a comparative perspective. It proposes two readings by two Brazilian poets, Monica Menezes and Rita Santana; two Portuguese poets, Maria Sousa and Margarida Vale), and the writings of Paula Tavares and Odete Semedo as representative voices of African literature. In order to do (re)think the female as theme and as authorship it will employ theories by Deleuze and Guattari and by Gayatri Spivak, among others.
 
KEYWORDS: Gender; Portuguese literature; African literatures, Brazilian literature.
 
Minicurrículo: Tatiana Pequeno da Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. É Professora de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense (Niterói/ RJ, Brasil) e membro da equipe brasileira de investigação do projeto internacional “Novas Cartas Portuguesas – 40 anos depois”, liderado pela Professora Ana Luísa Amaral, da Universidade do Porto. Possui graduação, mestrado e doutorado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e é autora do livro de poemas Réplica das urtigas (Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2009).
 
 
 

NOVAS CARTAS E DEPOIS: AINDA CONTRA A PERIFERIA DO FEMININO

 

Tatiana Pequeno da Silva

Universidade Federal Fluminense

 
 
O legado deixado por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa não consiste apenas na concretude da obra reificada em livros. Antes, a herança que nos chega é a de uma concepção revolucionária do discurso feminino diante de um cenário aceito, àquela época, como distópico porque autocrático, totalitário e intolerante. Muitos poderiam objetar que as Novas Cartas Portuguesas são um livro datado. Aliás, sobram lugares comuns quando o assunto é a leitura de um lugar feminino na e para a literatura, certamente porque este ponto, nem de longe pacífico, desloque pressupostos simbólicos e reificados de poder frente ao cânone masculino, eurocêntrico e heterossexual.
Pensar, quarenta anos depois, numa obra de língua portuguesa que estabeleça diálogos ou simplesmente reverbere os sinais daquele fogo epistolográfico assinado pelas três autoras é confirmar a necessidade de discussão sobre a permanência de um discurso que não se institui como exercício a pretexto de vingança ou de nostalgia, como se verifica na primeira carta. Com ela, iniciamos esta pequena reflexão: “E de nós, o que faremos?” (NCP, p. 9). O que foi feito e o que fizemos de nós nestes quarenta anos que nos distanciam do projeto político denominado Novas Cartas Portuguesas? Decididamente, há o que comemorarmos em tempos de recorrentes feminicídios? O que é um corpo como o de Eliza Samúdio, dessacralizado e dado aos cães, por exemplo? Quantas Marias da Penha tiveram suas colunas e os seus eixos quebrados para que enfim uma lei que as protegesse fosse promulgada? Quantas travestis, transexuais e outro@s quaisquer com identidade de gênero feminino precisarão sucumbir para que ser, estar ou sentir-se mulher não seja algo menor? Em que medida a literatura repercute as implicações do gênero no seu discurso?
Contemporaneamente poderíamos observar na obra de duas poetas portuguesas uma enunciação que, embora não esteja mais conectada ao princípio revolucionário ou reivindicatório das lutas femininas, necessariamente assume uma reflexão sobre este gênero. Neste sentido, os livros de poemas de Maria Sousa e Margarida Vale de Gato tratam de um enfrentamento cujo principal cenário evoca, desde os seus títulos, uma diferença (e, portanto, uma nomeação) de locução. Mulher Ilustrada e Mulher ao Mar são, respectivamente, livros de poesia que reelaboram um discurso que rediscute os sentidos e os efeitos da crise, conforme se verifica no poema de Maria Sousa:
 

a mulher

organiza as sombras para evitar o escuro

na pele sente o medo

é prudente na batalha com as perguntas

que pousam no dia

(SOUSA, 2013, p. 26)

 
A poesia, nesse caso, é um espaço no qual a linguagem flui, espécie de fonte por meio da qual o exercício de uma potencialidade lírica se desdobra, dando azo a uma vida interior que deve não apenas “organizar” as sombras para não formalizar seus escuros como também acessa a “prudência” nos embates diante do silêncio crescente e difícil. Assim, no poema a seguir, de Margarida Vale de Gato, intitulado “Coping”, é possível também encontrar como matéria poética uma reflexão sobre os lugares previsíveis atribuídos ao feminino:
 

Ficar quieta é técnica que já

aplico com rigor, e no preciso

sítio em que pulsa paraliso

tudo, quem está morto livre está.

Creio que começou quando cedeu

o avô. Alguém disse: afinal

o coração não aguentou. Eu

pensei: mais vale declinar o abalo.

Mas também não cheguei nessa altura

até ao fim. Escangalhei-me na novena

aos degredados filhos de Eva.

Iniciei-me então nos barbitúricos

e hoje passo bem melhor. Às vezes

é um jogo, em que recorro ao coito

antes da apanhada, e se esgoto

essa via, dedico-me à mimese,

diluo-me com os objectos, tudo

me toca mas nada dá por mim, tão

imóvel que me ignora a dor, não

há como acordar um corpo mudo.

Por exemplo agora que não veio

o homem, podia ter-me ferido

ou saído a buscar outro, e perdido;

mas pratico com vantagem a apneia

e a domesticidade. É pena

que me esqueça tanta coisa; foi

sorte saber da lamela – eia, pois,

advogada nossa – dormir serena.

(GATO, 2010, p. 39-40).

 
De sintaxe difícil, o poema cogita uma ladainha em que a oração católica “Salve Rainha” intervém na docilização do corpo que Foucault já investigava no Vigiar e Punir. Neste caso, para além de uma certa ironia adiliana, há também uma verticalização no tratamento de duas tópicas muito caras aos estudos de gênero: as relações do feminino com o doméstico e com a passividade. O sujeito lírico feminino pouco ou nada – talvez valha aqui um destaque à trapaça irônica que já identificamos – subverta o cenário para o qual a semântica deste poema se dirige, isto é, para o encontro com o sono e com o alheamento conforme se verifica nos belos versos: “diluo-me com os objectos, tudo/ me toca mas nada dá por mim, tão/ imóvel que me ignora a dor, não/ há como acordar um corpo mudo.”
Mais afeita à melancolia pode ser a lírica de Maria Sousa que, comprometida com o propósito de ilustrar a (in)definição da mulher, acaba por circunscrevê-la a uma dicção de enfrentamento da perda ou daquilo que Conceição Evaristo tão bem captou com o poema “A Noite não adormece nos olhos das mulheres”. A reiteração das abstrações na poesia de Maria Sousa pode ser estratégia para nominalizar o que, afinal, é falta ou objeto inominado. Portanto, quando a voz lírica do poema informa “sei que falar de ausência é chamar-te para o poema” (SOUSA, 2013, p. 33) esta evocação sinaliza a partilha difícil da “mulher que escreve” e “Ritualiza gestos em palavras e responde com/ perguntas onde os pássaros se encostam”.
Embora Margarida Vale de Gato e Maria Sousa tragam em seus títulos referências claras a uma perspectiva e de uma locução feminina, nítido fica que para ambas a experiência do feminino é com certeza bem menos engajada e combativa, como demonstra o poema “Ressabiadas”, da primeira: “Talvez lá no fundo acredite/ que os seres humanos são todos sensivelmente/ os mesmos em toda a parte, mas então/ necessariamente as mulheres são mais.”
Para efetuar a ultrapassagem das fronteiras seria interessante ouvir a formulação da indiana Gayatri Spivak que no importante Pode o subalterno falar? sentencia: “Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade.”. Para problematizar a questão da subalternidade feminina no contexto (pós)colonial é interessante exemplificar a poesia de autoria feminina com nomes contemporâneos que discutam, em alguma medida, a condição feminina mais ou menos expressa do ponto de vista do conteúdo na cena editorial. Para tanto, serão abordadas duas poetas baianas contemporâneas: Mônica Menezes e Rita Santana.
A poética de Mônica Menezes, publicada pela primeira vez sob o selo das Cartas Bahianas – edições comprometidas em lançar autores contemporâneos como Ângela Vilma e Kátia Borges, por exemplo –, pode ser pensada a partir de uma estética do mínimo que acaba por valorizar não apenas a singeleza estrutural de versos curtos, por exemplo. Por meio de seus pequenos Estranhamentos recorre-se a uma economia de afetos que orienta o “Amor, os territórios do desejo e uma nova suavidade”, a partir de uma singeleza que não abdica do vertical: “Poema quase seco: o extenso rio da minha infância/ tornou-se/ lama/ entre/ meus/ dedos” (MENEZES, 2010. P. 22).
Ainda que geminada a princípios orientais (do haikai e de certa poesia chinesa), a escrita de Mônica Menezes parece buscar a limpidez e a justeza como formas enquanto a temática convoca na sua perspectiva feminina um certo compromisso com um novo tipo de devir-mulher. Félix Guattari identifica esta necessidade a partir da recolha feita por Suely Rolnik em Cartografias do desejo:
 

A “nova suavidade” faz parte desse tema que estamos discutindo o tempo todo, que é o da invenção de uma outra relação com o corpo, por exemplo –, relação esta presente nos devires animais. Sair de todos esses modos de subjetivação do corpo nu, do território conjugal, da vontade de poder sobre o corpo do outro, da posse de uma faixa etária por outra, etc. Portanto, para mim, a nova suavidade é o fato de que, efetivamente, um devir-mulher, um devir-planta, um devir-animal, um devir-cosmos, podem inserir-se nos rizomas de modos de semiotização, sem por isso comprometer o desenvolvimento de uma sociedade, o desenvolvimento das forças produtivas e coisas assim. Quero dizer que, antes, as máquinas de guerra, as máquinas militares, as grandes máquinas industriais eram a única condição para o desenvolvimento. Era a força física, a força militar, a afirmação dos valores viris que funcionavam como garantia da consistência de uma sociedade. Sem elas, a devastação era total. Isso existe ainda na Rússia, em todos os países fascistas, nos EUA, etc. Mas hoje em dia as margens, as novas formas de subjetividade, também podem se afirmar em sua vocação de gerir o mundo, de inventar uma nova ordem social sem que, para isso, tenham de nortear-se por esses valores falocráticos, competitivos, brutais. Elas podem se expressar por seus devires de desejo (ROLNIK, 2005, p. 341-342).

Assim, investindo na poesia como território em que a prática do desejo acessa uma subjetividade menos assertiva porque atenta à brandura, ao trânsito e ao singelo, Mônica Menezes também repensa o feminino como condição. Vejamos o poema “Mulher”:

quis para mim a graça

do sonho de ser tua

e penteei meus cabelos

e pintei minha boca

e escolhi no espelho

meu melhor olhar de mulher

mas tuas mãos não são livres

teu coração já tem dona

e eu voltei para casa

menina

trazendo a máscara na mão.

(MENEZES, 2010, p. 16)

 
Semelhante à narradora do conto “Restos do Carnaval” de Clarice Lispector, o sujeito lírico do poema assinala que mesmo diante de uma identidade de gênero mais ou menos definida (que se verifica no título do poema), é possível operar devires outros que o uso da máscara operacionaliza. Não obstante, o verso “meu melhor olhar de mulher” liquefaz qualquer previsão sobre um feminino monolítico. Nesta poesia e mulher é, sobretudo, movência do desejo.
Na poesia de Rita Santana, entretanto, encontramos outros ecos que harmonizam identidades de força a partir do que pode ser entendido como uma poesia negra feminina: “Quilombola tecendo/ o algodão doce/ das dúvidas/ dos dias.” Nesse sentido, o título do livro aqui sugerido coincide com uma busca que parece ser consequência bem recente de liberdades conquistadas: Alforrias. Com efeito, os poemas de Rita Santana encenam um permanente estado de luta que não diz respeito apenas às identidades negra e alforriada, mas realoca os sentidos de um feminino resistente:

A noite acortinou-se sobre o meu sorriso

E nada mais seria, desde então:

Comunhão de corpos, inclusão de membros,

Festejamento de carnes,

Nem mesmo amplidão de águas.

Vi-me no falecimento das ânsias

A sangrar sobre o vinhaço.

Corria mansidão sobre o meu desespero

E em tempos desiguais o querer perdeu-se

No despenhadeiro da distância.

O gosto perverso da separação

Ventilou minha boca de mulher que ama.

Ninguém viu o sabor na língua.

Ninguém viu o sofrer dos dentes.

(SANTANA, 2012, p. 27)

Certamente a reflexão sobre o feminino não cede a espaços de periferia na poesia de Rita Santana, apesar de ser possível verificar em seu texto uma “Agrestidade” que recolhe para o poema uma tensão natural que necessariamente cria uma mudança, uma passagem. Esta “Agrestidade” ou “Acridez” são, com isso, elementos dissolvidos pela experiência poética que pulveriza qualquer indício de ressentimento, uma vez que à metade do poema a própria voz lírica areja o trabalho do luto, reelaborando a linguagem da falta: “O gosto perverso da separação/ Ventilou a minha boca de mulher que ama.”.
É importante destacar que a poesia de Rita Santana, marcada a partir de uma prática discursiva que reivindica lugares de fala, poderia autenticar certos lugares comuns que costumam negativizar quaisquer tentativas de empoderamento por parte do feminino, questão insistentemente pensada por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa nas Novas cartas portuguesas:
 

E nesta volta do amor à história e à política veio a visita de fundo ao nosso intercâmbio; porque desentulhamos o que de assustador temos para nós – e porque não “pacto com o demónio”, se dessacralizado, desmistificado, se soubermos “o diabo que temos na mão”? – e o que de assustador, monstruoso, equívoco, nos cometerão os outros – lembremo-nos, sim, que um negro extremista é já respeitável, mas que uma feminista é vituperada, assustadora do ainda indiscursível, incómoda, ridícula, mesmo para os cavaleiros bem pensantes de toda a libertação – talvez seja o primeiro caminho para desmontarmos nossas circunstâncias históricas e políticas (BARRENO, COSTA, HORTA, p. 108).

Rumo à África, uma das autoras que merece o nosso destaque é Odete Semedo, nascida em Bissau. Uma das obras mais relevantes da poeta é, sem sombra de dúvida, o “cantopoema” (p. 15) No fundo do canto (SEMEDO, 2007). Já no prefácio podemos encontrar elementos importantes a respeito dessa poética marcadamente testemunhal, apesar do tom lírico, às vezes (anti)épico:
 

Não será épica a minha poesia, pois não cantarei nem as armas nem os barões. Lírica? Se nem do passado consigo me lembrar nesta kambansa, e nem me despedi antes de partir por ser este momento tão macabro. Voltei para trás, voltei para dentro de mim, para encontrar algo que me fizesse entender o mundo de outras terras que não o da minha, voltei para trás tentando encontrar uma explicação para tudo aquilo que eu não conseguia entender naquele momento. Por que tudo isso? Qual o porquê destas páginas que se abrem ante os meus olhos? (SEMEDO, 2007, p. 15).

Intimista, portanto e testemunhal é o fundo do canto de Semedo que abdica do épico tradicional enquanto valoriza o detalhe, a compleição e o subjetivo em detrimento da grandiloquência, muito embora esta poesia seja fundamentalmente seja imagem da partilha do terror: “um grito/ um grito/ retumbante/ escancarou as janelas/ e eu chorei/ mais pelas mulheres/ que pelos segredos da vida (…) / irrompeu revoltado/ sem pedir licença (…) era fúria/ injúria/ raiva/ (sobre)vivência/ pobreza/ ódio/ ganância/ miséria/ Como são largos os passos do vaticínio” (SEMEDO, 2007, p. 58).
Na obra de Odete Semedo, quase sempre a pátria violada é imagem para a qual também se compreende o feminino. Tal procedimento parece importante de ser assinalado uma vez que se pensamos, conforme sugere o livro de Moema Parente Augel, em certa literatura guineense como um desafio a partir dos escombros e da ruína, talvez fosse conveniente analisar como o feminino aí opera e resiste:
 

Bissau não quis acreditar
no que via
no que estava a sentir

Bissau despediu-se de seus filhos
nua deitou-se de bruços
para receber chicotadas
para receber açoite
com ramos espinhosos
de nhára-sikidu

Bissau não quis acreditar

(SEMEDO, 2007, p. 49)

 
 
Por meio dos frutos lentos, a dicção feminina em língua portuguesa vai assumindo a partos largos as vertentes de quem pode falar e evocar as memórias amargas do corpo. Como sentencia Inocência Mata no prefácio da edição brasileira de Amargos como os frutos: “A figuração do feminino gera uma iluminação em que a escrita se transforma em iniciação à vida plena, para neutralizar o vazio que, no meio das vivências femininas, tem tendência a crescer insondável” (TAVARES, 2011, p. 12). Ou seja: é no alcance da escrita e na potencialização da voz lírica que a mulher ressignifica o mundo e seus territórios, aproveitando-se de tal experiência para elaborar a dialética entre silêncio e locução, livrando-se progressivamente dos vários assujeitamentos políticos por que passa.
O corpo que se imprime na poesia de Ana Paula Tavares é também uma cartografia telúrica da mulher que “esconde muito tímida/ o cerne encantado” (TAVARES, 2011, p. 41), onde a iniciação da palavra recorre aos corpos frutados mas não doces, de formas e cores que remetem sempre ao caroço, à origem da “Frágil vagina semeada/ pronta, útil, semanal/ Nela se alargam as sedes// no meio/ cresce/ insondável/ o vazio” (TAVARES, 2011, p. 31). Nesse sentido, enquanto aguardam as cerimónias de iniciação para cair, os frutos se sustentam por um caule gramatical cuja seiva irriga a ultrapassagem da palavra puramente comunicacional para aquela cuja língua é imagética, plural e insubmissa porque inapreensível:
 

Mukai (1)

Corpo já lavrado

Equidistante da semente

É trigo

É joio

Milho híbrido

Massambala

Resiste ao tempo

Dobrado

Exausto

Sob o sol

Que lhe espiga

A cabeleira.

(TAVARES, 2011, p. 89)

 
 
Ainda que não possamos categorizar tais textos escritos por mulheres como práticas excelentemente feministas (o que também exigiria pensar as diversas diferenças a partir de outras especificidades como o feminismo latino-americano, feminismo negro e um pós-feminismo que vem sendo configurado a partir de meados da década de 1990), pode-se afirmar que diante de uma história e de uma prática de silenciamentos, a própria constituição de uma poesia de autoria feminina valida o desfazer dos fios da espera. A escrita, neste sentido, reúne uma comunidade de mulheres. Possivelmente sem conhecer a máxima llansoliana que afirma serem leitura e escrita um chamamento ao combate, estes diversos nomes empenhados na transmissão de uma escrita marcadamente feminina porque orientadas por uma preocupação ontológica do feminino:
 

Seja qual for o meu destino, aí selei um contrato com o vivo, e dei o passo irreversível que tanto hesitei em dar para um texto capaz de conferir uma expressão actual a gritos humanos e não-humanos, abafados pelo “assim é” da história, do mundo, do poder de espezinhar.

Não quantas vezes sentada na minha cadeira a ouvir as discussões, dificuldades e dúvidas, senti finalmente que outros, a seu modo, entravam por uma porta não muito diferente da por onde eu entrara. Senti que se procurava a chave sob a maçã, o mistério não é o medo que tolhe os passos, mas a servidão que trazemos acorrentada às mãos e nos impede de tactear a chave sob a impotência e o júbilo de viver, senti-me estranhamente bem, sem o peso de carregar sozinha uma escrita que fez de mim um ser com aura, permitindo-me reatar o meu caminho para o humano, de ser alguém de único entre únicos também, únicos não querendo significar especiais nem revelados, mas tão-só responsáveis pelo dado indiscutível de que cada um é irrepetível, quer goste quer não. a perseverança dos outros deu-me coragem vi que não era uma singularidade vã.

(LLANSOL, 2002, p. 323)

 
Por meio de seus tão diferentes lugares-litorais do mundo, estas vozes procuram uma chave sob a maçã que não nos aparte da potência da diferença. Maria Gabriela Llansol, ainda que não seja uma escritora empenhada, entende que a literatura, a manifestação dessa voz é fundamentalmente interventiva no Mundo.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARRENO, Maria Isabel; COSTA, Maria Velho da; HORTA, Maria Teresa. Novas Cartas Portuguesas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka – Para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
GATO, Margarida Vale de. Mulher ao mar. Lisboa: Mariposa Azual, 2010.
GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias del Deseo. Madrid: Traficantes de Sueños, 2006.
LLANSOL, Maria Gabriela. O Senhor de Herbais. Lisboa: Relógio d´Água, 2002.
MENEZES, Mônica. Estranhamentos. Salvador: P55 Edições – Cartas Bahianas, 2010.
SANTANA, Rita. Alforrias. Ilhéus: Editus – Editora da UESC, 2012.
SOUSA, Maria. Mulher ilustrada. Coimbra: Edição: do lado esquerdo, 2013.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: EDUFMG, 2010.
TAVARES, Paula. Amargos como os frutos. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
 
 




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